Dizem por aí que há dois tipos de nerd dentro da cultura pop. Aqueles que preferem Star Wars e aqueles que preferem Star Trek, ou Jornada nas Estrelas. Graças a circunstâncias do destino e pelo fato de eu ter visto a saga de George Lucas antes no SBT, acabei pendendo para a primeira classificação, da qual ainda faço parte com orgulho. Porém, eu nunca havia tido um contato forte com o universo de Gene Roddenberry, com exceção de inúmeras referências em Os Simpsons, Seinfeld e literalmente qualquer série de televisão, até o lançamento do filme de J.J. Abrams em 2009.
Seria a primeira grande excursão de Abrams no cinemão blockbuster, já tendo agradado com o eficiente Missão: Impossível 3 e a revolucionária série Lost. Havia a gigantesca responsabilidade de reacender a chama fraca da franquia, satisfazer aos fãs devotos e conquistar uma nova geração no processo. Não posso falar em nome da ala veterana, mas este Star Trek certamente acertou em cheio para mim.
Mesmo não conhecendo a fundo o universo das séries de televisão e dos longa-metragens originais, de cara já me apaixonei pela forma como Abrams e os roteiristas Alex Kurtzman e Roberto Orci reiniciaram a franquia. Não apenas um remake ou reboot, mas um longa novo que incorpora a viagem no tempo para criar uma realidade alternativa onde encontramos versões mais jovens dos personagens icônicos. É uma solução brilhante pois oferece a oportunidade de reinventar o universo ao mesmo tempo em que não joga fora os 50 anos de conteúdo que esta já rendeu, incorporando-os à trama na presença de um Spock envelhecido (vivido por Leonard Nimoy).
E o foco aqui reside justamente no vulcano (na versão jovem, Zachary Quinto) e na origem turbulenta do Capitão James T. Kirk (Chris Pine), desde o momento em que embarcam na academia de treinamento da Frota Estelar até a primeira missão que acaba por unir toda a tripulação da nave Enterprise: Uhura (Zoe Saldana), McCoy (Karl Urban), Sulu (John Cho), Chekov (Anton Yelchin) e Scotty (Simon Pegg). Em oposição a eles, temos o renegado Nero (Eric Bana) que parte atrás de vingança pela destruição de seu planeta.
É um filme totalmente dedicado a seus personagens, e talvez por isso funcione tão bem e tenha sido tão eficiente em falar com um novo público. Chris Pine está excelente na pele de um Kirk narcisista e que inicia a projeção desperdiçando seu dons e o legado heróico de seu falecido pai (um até então desconhecido Chris Hemsworth) em paqueras e brigas de bar na Terra, ganhando a partir daí um arco de desenvolvimento muito sólido que explora a imprudência e subsequente amadurecimento do futuro capitão da Enterprise. Pine é carismático e irônico na medida certa, e temos fogos de artifício quando contracena com Zachary Quinto, que surge inexpressivo na maior parte do tempo como Spock, mas aprendi que inexpressividade e calculismo são facetas definitivas do personagem. O mais interessante é ver o personagem falhar em manter o controle de suas emoções e se entregar a explosões de violência e melodrama, incluindo uma memorável pancadaria com Kirk.
Temos esse mesmo cuidado com o restante do elenco, que por sinal é uma verdadeira pérola em termos de casting. A atmosfera da academia dá margem a situações divertidas e fáceis de se formar interações e primeiros encontros entre os personagens, com Kirk conhecendo McCoy em uma nave de transporte a caminho da Federação (leia-se, no ônibus escolar), tendo o primeiro contato com Uhura em uma paquera de bar (leia-se, na baladinha universitária) e com Spock em uma simulação de teste impossível (leia-se, o professor exigente). O humor funciona para Kirk e suas interações, ao passo em que Sulu e Chekov são bem apresentados ao ambos cometerem alguns erros em sua primeira missão, com o primeiro tendo esquecido de acionar uma chave e o segundo ter dificuldades com o reconhecimento de voz em decorrência de seu carregado sotaque russo; mérito à excelente performance de Yelchin, que passa longe da caricatura em sua composição.
A Uhura de Zoe Saldana ganha um pouco de destaque a mais graças ao pseudo triângulo amoroso formado com Kirk e Spock, ainda que o primeiro não passe de um flerte aqui e ali. Muito da relação da oficial com o vulcano fica no subtexto, dando a ideia de um romance entre aluna e professor que acaba não ganhando o destaque esperado – o que prejudica um pouco os momentos mais dramáticos e intimistas entre os dois. E o Scotty de Simon Pegg é o último a ser introduzido, mesmo que por conveniência do roteiro e a necessidade de um Deus Ex Machina em um ponto chave do segundo ato. Porém, a performance de Pegg é tão divertida e tão vibrante que somos capazes de perdoar a falta de sutilezas.
A história que os abriga também é bem contada, agradando pela simplicidade e o fato de manter o foco em algo direto e sem muitas subtramas, garantido mais enfoque aos personagens. A presença do Spock Prime é chave para justificar o antagonismo de Nero e sua vingança, em um conceito simples e bem conciso de viagem no tempo. Todas as motivações do vilão de Bana são compreensíveis, ainda que o ator seja bem sucedido em criar um romulano ameaçador e cruel.
Já a direção de Abrams revela-se acertada, ainda que tenhamos ali um cineasta ainda experimentando diversas técnicas e trejeitos. Anos depois, teríamos a culminação de seu melhor trabalho como diretor em Star Wars: O Despertar da Força, enquanto aqui temos uma mise em scene que oscila entre planos longos, câmera na mão, uso um tanto descontrolado de planos holandeses e, claro, as famosas luzes de flare que iconizaram seu trabalho com o diretor de fotografia Daniel Mindel. As cenas de ação ganham muito na mão de Abrams, que revela-se um expert em efeitos visuais orgânicos e críveis, além de cenas de batalha e lutas que são capazes de empolgar e envolver – o salto da tripulação da Enterprise até uma perfuradeira planetária é um dos pontos altos.
E aí temos uma certa polêmica. Cenas de ação em Star Trek. Ainda que a série e os filmes tenham tido sua boa parcela de pancadarias (algo que descobri em uma bizarra e divertida pesquisa), este novo filme abre mão do aspecto mais cerebral que muitos dos fãs veteranos esperavam, apostando mais na fórmula blockbuster e, nas palavras de Abrams, “adicionando um pouco de Star Wars“. Entendo como pode ir contra as expectativas dos fãs, mas isso de forma alguma torna o filme ruim, já que não é um mero filme de ação burro na linha de Transformers. É uma aventura elegante e que mantém a inteligência ao respeitar o arco e as relações de seus personagens, resultando em uma catarse capaz de provocar lágrimas até mesmo nos não familiarizados com a franquia (guilty as charge), seja através da pirotecnia, da música de Michael Giacchino ou do famoso discurso final proclamado por Leonard Nimoy.
Star Trek é uma aula de como se reiniciar uma franquia, devendo ser um objeto de estudo nos estúdios de Hollywood que sofrem para trazer de volta suas franquias consagradas. Ao oferecer uma abordagem moderna e radical e um excelente tratamento com seus personagens multifacetados, J.J. Abrams conseguiu injetar nova vida à Enterprise e ganhou uma nova leva de fãs no processo.
Star Trek (Idem, EUA – 2009)
Direção: J.J. Abrams
Roteiro: Alex Kurtzman e Roberto Orci
Elenco: Chris Pine, Zachary Quinto, Zoe Saldana, Karl Urban, John Cho, Anton Yelchin, Simon Pegg, Eric Bana, Winona Ryder, Chris Hemsworth
Gênero: Aventura, Ação, Ficção Científica
Duração: 128 min