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Crítica | The Flight Attendant: 1ª Temporada – A Comissária que Sabia Demais

É difícil fazer um bom mistério, ainda que seja muito fácil se interessar por algum, dada a natureza humana da curiosidade em torno do desconhecido. Alfred Hitchcock talvez tenha sido o grande mestre desse tipo de narrativa, tanto que seus grandes clássicos permanecem atuais e de muito fácil acesso para o público moderno. Ainda assim, é divertido encontrar as raras ocasiões onde uma obra contemporânea consegue aprender com os feitos do passado e criar algo novo. É o caso de The Flight Attendant, uma as produções originais do HBO Max.

A trama da primeira temporada começa de um ponto de partida digno das obras do Mestre do Suspense: a pessoa errada na hora errada. Conhecemos a comissária de bordo Cassie Bowden (Kaley Cuoco), uma jovem desequilibrada e baladeira, que acaba passando a noite com um de seus passageiros, o charmoso milionário Alex Sokolov (Michiel Huisman) após o desembarque em Bangcoc. Quando ela acorda sem memória ao lado do rapaz brutalmente assassinado, Cassie acaba em uma espiral para tentar descobrir o que aconteceu, ao passo em que luta para proteger sua própria vida.

Frenesi

Tal como O Homem que Sabia Demais e, principalmente, Intriga Internacional, o charme de The Flight Attendant está na comédia de situações. Uma comédia de cunho bem dark e irreverente, claro, mas que mantém o interesse do espectador justamente pelos absurdos – e pelo fator modernizante em relação a esses títulos. Se Cary Grant era um sujeito correto e perfeccionista antes de ser forçado a se tornar um espião, a Cassie de Kaley Cuoco é o mais distante que poderíamos esperar de uma protagonista desse tipo de história; e esse é um dos grandes motivos para o sucesso da trama, já que o mistério em si é bem básico.

E como falamos da presença protagonista de Cassie, é preciso falar de Kaley Cuoco. Pessoalmente, nunca fui um fã de The Big Bang Theory e passei longe de praticamente todos os episódios da série, não tendo muito contato com os dotes de Cuoco. Dito isso, a série da HBO Max é uma revelação: a atriz é extremamente carismática e divertida, balançando as inseguranças de Cassie com seu narcisismo auto-destrutivo que serve como um deturpado escudo para protegê-la de seus defeitos. Na performance de Cuoco, Cassie é engraçada e imprevisível, além de garantir também excelentes momentos quando a história trilha por caminhos mais dramáticos.

Cuoco também se beneficia daquele que talvez seja o melhor elemento da série toda: o palácio mental, que se revela uma solução elegante e criativa para se lidar com exposição e conflitos internos. Em um livro, a narração facilita o recurso de um protagonista conversar consigo mesmo, mas na forma audiovisual, a equipe do showrunner Steve Yockey elabora essas cenas em que Cassie conversa com uma versão imaginária do morto Alex: uma forma elegante de lidar com o desenvolvimento interno da própria personagem, além de manter o carismático Michiel Huisman em cena mesmo após sua morte. 

Técnica Sem Escalas

Tais cenas no palácio mental também trazem à tona o magistral trabalho técnico da série. Além da fotografia vibrante que aproveita o melhor das ruas e ambientes de cidades como Nova York, Roma e Bangcoc, a série se sobressai ao usar a luz e os adereços para expandir o conhecimento do espectador acerca de Cassie. Por exemplo, em momentos de tensão ou dúvida da personagem em seu palácio mental, as luzes reagem de forma diegética a seu estado de forma quase surrealista – e realmente admiro como a equipe de design de produção decora essas cenas com pistas e elementos importantes, como uma árvore de Natal montada a partir de garrafas de vodca vazias ou a seqüência em que os corredores de um hotel começam a girar, remetendo a cenas de A Origem de Christopher Nolan. Plasticamente, um grande triunfo e que ajuda a elevar a série, já que o mistério central realmente não é o grande atrativo.

Mas se há um nome dos bastidores que realmente precisa de um grande spotlight sobre sua talentosa cabeça é o compositor Blake Neely. Por anos responsável por dar vozes musicais às principais séries da DC na CW (um ofício realizado com competência, diga-se de passagem), Neely oferece um trabalho realmente impressionante ao se apoiar em um jazz cartunesco e que, novamente, remete às colaborações de Alfred Hitchcock com o genial Bernard Hermann. Desde o excelente tema de abertura (eu desafio alguém a apertar o Skip durante esses créditos lindíssimos que também deixariam Saul Bass orgulhoso) até as mais malucas reviravoltas e situações, a trilha sonora de Blake Neely é um dos mais trabalhos mais inspirados que já ouvi em qualquer série recentemente.

Os deméritos da série encontram-se justamente em sua necessidade de estar no formato televisivo: tudo o que não envolve a protagonista Cassie parece deslocado, e não chama tanta a atenção. Seja a subtrama  inconclusiva envolvendo a veterana comissária de bordo vivida por Rosie Perez se metendo com espiões norte-coreanos ou o próprio arco dos antagonistas genéricos por trás da morte de Alex (mas aqui, ao menos, temos a excelente Michelle Gomez em um papel que merece mais destaque no futuro), parece só uma distração para que a comissária de bordo central não resolva o mistério mais rápido.

Com 8 episódios que se movem de forma ágil, dinâmica e até em telas divididas, The Flight Attendant é um perfeito entretenimento. Traz a dose perfeita de novelesco e pulp, mas se beneficia das referências certeiras a Alfred Hitchcock e uma performance magnética de Kaley Cuoco. Por mais que eu não faça ideia de como uma segunda temporada poderia agregar à história, considerem-me embarcado.

The Flight Attendant – 1ª Temporada (EUA, 2020)

Showrunner: Steve Yockey
Direção: Susanna Fogel, Marcos Siega, Batan Silva, John Strickland, Tom Vaughan, Glen Winter, Silver Tree
Roteiro: Steve Yockey, Ryan Jennifer Jones, Ticona S. Joy, Meredith Lavender, Jess Meyer, Marcie Ulin, Ian Weinreich, baseado na obra de Christopher A. Bohjalian
Elenco: Kaley Cuoco, Michiel Huisman, Zozia Mamet, T.R. Knight, Michelle Gomez, Rosie Perez, Griffin Matthews, Colin Woodell
Streaming: HBO Max
Gênero: Suspense, Comédia
Episódios: 8
Duração: 40 min

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Publicado por Lucas Nascimento

Estudante de audiovisual e apaixonado por cinema, usa este como grande professor e sonha em tornar seus sonhos realidade ou pelo menos se divertir na longa estrada da vida. De blockbusters a filmes de arte, aprecia o estilo e o trabalho de cineastas, atores e roteiristas, dos quais Stanley Kubrick e Alfred Hitchcock servem como maiores inspirações. Testemunhem, e nos encontramos em Valhalla.

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