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Crítica | The Wire não é a melhor série de todos os tempos, mas ainda tem coisas importantes a dizer

Se você ama seriados, em algum momento já deve ter escutado ou lido em algum lugar que The Wire era “indiscutivelmente” a melhor série de todos os tempos. Tendo liderado o ranking das séries mais bem avaliadas do IMDB por anos, era difícil tentar argumentar contra quem batia no peito orgulhosamente para apontar a genialidade do criador David Simon

Entretanto, embora ainda seja muito bem avaliada no IMDB, The Wire ou A Escuta como ficou conhecida por aqui, era um seriado de difícil acesso. Exibida irregularmente pela HBO com longos hiatos de dois anos entre algumas temporadas, sem prestígio sólido nas premiações do Emmy e Globo de Ouro e com uma inexistente base de fãs que elevavam o hype, era quase impossível ter acompanhado o período original de exibição entre os anos de 2002 e 2008.

Aproveitando os vinte anos de seu lançamento e a facilidade da HBO Max, decidi dedicar longas 61 horas para conferir a série na íntegra e cheguei a uma conclusão digna do detetive protagonista Jimmy McNulty sem precisar apelar para escuta alguma: The Wire certamente é a melhor série de todos os tempos na boca de quem a nunca viu. 

Entretanto, isso não significa que não haja características valiosas e pertinentes aqui, conseguindo trazer um importante nível de influência bem-vinda para o formato televisivo como o conhecemos hoje. É histórico e há vários motivos para tal.

Bem-vindo ao Jogo

É um antigo costume dizer que a realidade se mistura na ficção e vice-versa para quem trabalha na área. Geralmente, grandes nomes da ficção conseguem criar verdadeiros hits basicamente ao retratar eventos e histórias que presenciaram em suas próprias vidas. House of Cards é um belo exemplo disso com Beau Willimon adaptando em seu texto afiado muitas traições e trapaças que presenciou na época que trabalhava como assessor político.

Seguindo o exemplo, The Wire basicamente é uma autobiografia de David Simon que trabalhou como repórter investigativo do Baltimore Sun por anos trazendo nas manchetes a epidemia de caos, violência e tráfico de drogas que infestava – e ainda infesta, a cidade. Partindo de repórter para autor literário, Simon então empreendeu sua maior aposta: o pitching de uma série que seria seu magnum opus, eternizando e exibindo ao mundo a dureza da realidade de uma cidade abandonada ao relento. 

Conseguindo capturar a atenção da HBO que já havia notado o interesse crescente do público em histórias maduras de violência com abordagem realista através de Família Soprano, Simon elevou o jogo e definiu The Wire na pegada do hiperrealismo. 

Já para minimizar dificuldades em trazer o texto mais cru possível em todos os núcleos, Simon pediu a ajuda do seu amigo de longa data Ed Burns, que trabalhou por duas décadas como detetive de homicídios em Baltimore. Com o time completo, a criação da narrativa e dos personagens inspirados em muitas personas reais começou para resultar em um marco televisivo nos anos 2000.

The Wire, da forma mais resumida possível, traz um grupo de detetives da polícia de Baltimore criando a divisão de Crimes Graves, visando prender os maiores chefões do crime organizado usando apenas escutas telefônicas, sem disparar uma única bala contra os perigosos indivíduos.

Embora a série tenha cinco temporadas, cada uma possui seus próprios arcos enquanto deixa algumas pontas soltas para realizar uma macronarrativa – conceito que começava a ser explorado com David Chase e sua Família Soprano.

Entretanto, é preciso reconhecer que o formato narrativo que Simon empreende aqui é o que de fato se tornou a regra para outros grandes sucessos como Breaking Bad, Mad Men, Lost e até mesmo Game of Thrones que definiram o formato para quase todas as séries existentes hoje. 

Se valendo da cascata dos efeitos dominós, Simon então apresenta o perturbado protagonista Jimmy McNulty (Dominic Chase) que, cansado da violência rotineira da cidade e sabendo exatamente quem são os figurões do crime organizado, consegue apelar a um juiz local para pressionar a força policial a resolver o problema de uma vez por todas. 

Em completo descrédito e falta de fé, o chefe de operações Rawls (John Doman) reúne então alguns dos nomes consolidados e promissores da força policial: o alcoólatra brilhante McNulty, os policiais osso-duro Ellis Carver (Seth Gilliam), Thomas Herc (Domenick Lombardozzi) e os detetives estrategistas Roland Prez (Jim True-Frost), Lester Freamon (Clarke Peters) e Shakima Greggs (Sonja Sohn) sob o comando do gélido e impassível tenente Cedric Daniels (Lance Reddick).

Através de um esforço hercúleo em angariar recursos e traçar uma rota para entender a rotina dos traficantes do oeste de Baltimore, a força-tarefa passa a acompanhar minuciosamente a rotina da gangue Barksdale, comandada pelo “self made” Avon (Wood Harris) e seu ajudante extremamente perspicaz Stringer Bell (Idris Elba) e seus subalternos, em principal o sobrinho de Avon, D’Angelo (Lawrence Gilliard Jr.).

Se tratando de uma análise sobre a série inteira que é uma verdadeira epopeia de múltiplos personagens recorrentes nos dois núcleos – o protagonista e o antagônico, é fácil se perder no meio dos anos de desenvolvimento que David Simon dedicou. É inegável, o homem tem um talento incrível em fundamentar bons personagens, interessantes, mas que sofrem com a proposta do realismo visceral.

Estabelecendo um elenco firme de personagens que o espectador acompanhará por uma boa quantidade de episódios, Simon se preocupa principalmente em trazer dois que são excelentes, além do pioneirismo em apresentar um retrato ousado para a televisão na época. 

São eles: o drogado sem-teto Bubbles que ajuda os detetives como um valioso informante, interpretado com maestria pelo negligenciado Andre Royo; e o traficante vigilante homossexual Omar Little cuja interpretação de Michael Kenneth Williams segue sendo uma das melhores da série. 

É uma pena, porém, que tendo tantos personagens majoritários importantes, pouquíssimos deles recebem um tratamento de um arco narrativo completo. Bubbles, felizmente, é uma exceção e consegue ter sua jornada de sofrimento vindo do vício das drogas se transformar em uma história de superação maravilhosa em um poderoso clímax na 5ª temporada. 

Outros personagens que sofrem uma nítida evolução narrativa são os detetives ‘Prezbo’ que, por causa de alguns eventos, passa de um policial inteligente, mas impaciente para virar um empenhado professor de matemática em uma escola pública sucateada na 4ª temporada e Ellis Carver que de novato se torna tenente, ainda íntegro, sem nunca cair na tentação fácil da corrupção que afunda completamente o seu amigo Herc, um policial dissimulado que sempre procura atalhos questionáveis para concluir a missão.

Em tese, no aspecto da 1ª a 5ª temporada, esses são os personagens desenvolvidos com afinco por Simon e Burns. O fato é que The Wire sofre com um problema muito comum em séries: ela dura mais do que deveria.

Sem meias palavras

Todas as temporadas, com exceção da quinta, duram treze episódios para se desenrolar até culminar em uma “vitória” da força-tarefa que sempre emanam uma sensação tóxica de derrota e fracasso.

Com isso, é um fato: cada temporada seria muito melhor digerida se tivesse de oito a dez episódios apenas. Me valendo do realismo da série, não há meias palavras: The Wire é uma série chata pra caralho. É um fato. Ela não é uma obra de entretenimento, mas um estudo quase acadêmico-sociológico sobre a falência completa de todos os sistemas em Baltimore, uma cidade-paciente terminal já em coma induzido em cuidados paliativos.

The Wire é pessimista ao extremo, mesmo que tente mostrar os esforços do “bem” vencer o “mal” e livrar o cidadão comum do sofrimento gerado pela violência do tráfico e das práticas da guerra às drogas que ainda domina o cenário americano até hoje. Logo, não espere que se trata da sua série de detetive criminal típica que vai te manter vidrado a cada acontecimento dos episódios.

Os minutos são preenchidos por diálogos burocráticos e muitas vezes de pouca relevância, apenas mostrando a convivência daqueles personagens em suas vitórias e muitas tragédias pessoais. Seja policial ou traficante, o paralelo traçado é sempre o mesmo: todos são miseravelmente iguais e totalmente reféns de seus próprios sistemas. 

Se existem piadas, são poucas e a ação é ainda mais rara que as piadas. Quando há uma batida policial com todos se preparando para prender os bandidos, Simon geralmente já corta para o resultado da ação, dando pouca importância para esses pormenores que são o pilar de qualquer dramaturgia audiovisual – isso será mais explorado no texto adiante. 

Então admito que agonizei por 61 horas até a série concluir e eu cumprir a minha missão autoimposta – com certeza uma neurose minha em completar o catálogo do meu site. Não foi divertido ver McNulty se embriagando um milhão de vezes ou ver Bubbles ser surrado à exaustão na 4ª temporada. 

Simon é prolixo até dizer chega e gosta de se repetir. Os diálogos, embora chatos, são realistas e o slang, a gíria das ruas usada pelos traficantes, é perfeito. O slang por sinal é uma ferramenta importantíssima para definir com proeza cada personagem antagônico como único e com seus trejeitos particulares.

Não há como confundir Avon com Stringer, Bodie com Poot, Proposition Joe com Cheese, Snoop com Chris ou Marlo. Todas as peças que realmente importam dentro do Jogo – como o crime organizado referente às atividades ilícitas, são distinguíveis entre si. O que prova como Simon é bom em criar personagens repletos de características marcantes, mas nunca tão bom em desenvolvê-los em uma narrativa em arcos.

Isso não significa que há uma falta de cuidado com a coesão da série. The Wire costuma fechar a maioria das suas pontas soltas com desfechos agridoces quando não verdadeiramente trágicos. Somente com uma história envolvendo o Grego na 2ª temporada que um fato importante parece ser esquecido completamente já que há sim um problema de planejamento a longo prazo. Sim, sei que é contraditório, mas lembre que já apontei que a série dura mais do que deveria.

Não me refiro somente a quantidade de episódios a cada temporada, mas sim das temporadas em si. A série possui dois finais facilmente identificáveis. O primeiro acontece na conclusão da arrastadíssima 3ª temporada que então traz arcos bem definidos para McNulty, Daniels, Kima e Lester, além de fechar com perfeição os arcos de Omar Little e toda a narrativa shakespeariana entre a disputa velada de poder entre Avon e Stringer.

Muita coisa se conclui muitíssimo bem no terceiro ano, mas Simon e Burns imploram a HBO mais dois anos e, por algum milagre, a emissora aceita mesmo com os números ruins de audiência. Acontece que, por mais que a 4ª temporada tenha o excelente núcleo infanto-juvenil destroçado na escola pública, as consequências de arrastar a trama são um tiro nas canelas na saúde geral da série. 

Já na 4ª temporada, fica nítido que Simon não sabe exatamente para onde ir. Investe por horas em uma corrida eleitoral insossa com Tommy Carcetti e diversos personagens secundários desinteressantes e faz Omar cair em um repeteco de ações sendo que a história de vingança já havia terminado com maestria no ano anterior. 

McNulty praticamente some da temporada inteira, com raras aparições, Kima se torna um peso em um drama familiar circular com a esposa, além de não haver apropriadamente uma investigação ativa. O foco é mesmo na ascensão de Marlo e sua psicopatia executada pelos implacáveis Snoop e Chris e no desenvolvimento excelente das crianças. Não fosse o setor antagônico mostrando a mudança da criminalidade após os eventos da 3ª temporada, não haveria salvação.

Por isso que muita gente aponta a 5ª temporada como a pior de todas, mesmo possuindo um episódio final de alta qualidade. Aqui, Simon deliberadamente destrói toda a evolução de McNulty em uma jogada insana envolvendo manufaturar um psicopata para conseguir desviar fundos da prefeitura e capturar Marlo Stanfield contando com a ajuda de Lester Freamon, o personagem que é conhecido por ser o mais sensato e íntegro do grupo.

Não que a história do serial killer seja por si uma ideia ruim, mas ela simplesmente é encaixada em um momento que sabota os anos de desenvolvimento narrativo do personagem. De ambos, por sinal. Um pelo retrocesso absoluto com McNulty caindo no alcoolismo de novo e outro por ser totalmente contraditório com a essência do personagem. É absolutamente ridículo e motiva bastante o espectador a querer jogar a série ao alto e desistir dela.

Paralelos na vida dos reis

Concluindo o segmento focado na narrativa da série, há alguns pontos que ainda merecem ser mencionados. O primeiro deles é o fato de Simon ter tentado de modo corajoso tornar The Wire em uma experiência de falsa antologia.

Embora exista uma macronarrativa que permeia principalmente as três primeiras temporadas, cada uma delas traz um arco distinto e original com uma investigação nova com Simon visando criar diversos paralelos inteligentes.

A primeira temporada, a mais ousada e vanguardista, traz o estabelecimento da Crimes Graves como uma força policial a ser respeitada e reconhecida, com a inteligência operando melhor que a brutalidade enquanto delineia as dificuldades e adaptabilidades dos Barksdale percebendo que estão sob vigília intensa da polícia.

As regras do jogo criminoso são definidas, assim como as regras da polícia. Soldados, mulas e traficantes muitas vezes encontram desafios e engolem sapos da mesma forma que os policiais e detetives de Baltimore, remoendo sentimentos profundos. Ambos os lados sofrem em suas vidas privadas, além do foco mais intimista na vida miserável a que alguns dos mulas são sujeitos.

Além disso, já aqui, há a descoberta complicada dos perigos de rastrear o dinheiro do tráfico que desemboca em negócios suspeitos com políticos e empreiteiros, colocando em cheque todo o sistema de justiça que vai julgar os criminosos. 

A segunda temporada, para mim a mais interessante por ser notoriamente a mais focada em entretenimento, mostra a rota da droga, ampliando o jogo da ponta final entre traficante e consumidor. Aqui, entra em cena o sindicato de estivadores de Baltimore e a família Sobotka, líderes sindicais, que sabotam os registros do porto para apagar os contêineres recheados de droga vinda do exterior.

Assim, com o jogo ampliado, o foco em pegar os fornecedores motiva uma nova investigação aliada a um caso de homicídio culposo envolvendo doze imigrantes mortas levadas em tráfico humano para se prostituir nos EUA. 

A segunda temporada se destaca por trazer muitos aspectos interessantes na narrativa, além de apresentar um rol de personagens relevantes com a chegada de Beadie como a nova ajudante e um papel mais expressivo de Bunk, melhor amigo de McNulty na Homicídios, dentro da investigação. 

O núcleo dos Sobotka também é bom, mas sofre com as intempéries surtadas de Ziggy, o personagem mais insuportável da série inteira. Fora isso, personagens que voltam a ser importantes como o Grego e Vondas são introduzidos aqui e conseguem transmitir sempre um ar de tranquilidade e ameaça ao mesmo tempo.

Por conta da má recepção envolvendo o desvio do foco dos Barksdale na segunda temporada, Simon opta por retornar a esse núcleo e realizar os desfechos necessários para diversos personagens que ficaram suspensos desde a primeira temporada. Volta a investigação para encerrar as atividades dos Barksdale de vez, com muito foco nas obsessões de McNulty e sua relação tóxica com o trabalho e nas soluções encontradas por Stringer para conseguir driblar as escutas telefônicas.

Ao mesmo tempo, além do foco narrativo dos Barksdale, Simon vai além e traz todo o desenvolvimento excelente da Hamsterdam, uma região abandonada de Baltimore que o major Colvin, pressionado pelos comissários a apresentar uma melhora em seus índices de distrito, decide criar. Uma zona sucateada onde o comércio e uso de drogas é liberado, uma verdadeira cracolândia. 

Simon traz então a crítica mais pungente ao sistema através da Hamsterdam, com uma fina ironia envolvendo a melhora substancial nos índices dos crimes violentos após o experimento social desesperado de Colvin com a polícia operando na completa ilegalidade para trazer paz às ruas da cidade. Nisso, é apresentado o antagonista das próximas temporadas, Marlo Stanfield. 

A quarta temporada traz o núcleo das crianças que vivem em meio ao tráfico de Baltimore, a perspectiva de vida que cada um tem, na luta diária dos professores em conseguirem dar educação da mais básica possível para adolescentes quase adultos e domar diversos impulsos violentos. Ao lado, há toda a campanha de Carcetti para prefeito, prometendo mudar a cidade e diminuir os índices de criminalidade – a crítica política é concluída na 5ª temporada com perfeição, apesar do núcleo ser um dos mais arrastados da série.

Já a última temporada traz novamente McNulty em seu retrocesso obsessivo em capturar os grandes traficantes, indo ao ponto de quebrar sua conduta e inventar um serial killer de mendigos em Baltimore para desviar recursos para a investigação congelada contra Stanfield por causa das burrices orgulhosas cometidas na administração de Carcetti envolvendo o orçamento da cidade.

Aliada a essa narrativa esquálida, há o pior núcleo da série até então: o dos jornalistas. Com Simon tentando retratar seus dias em uma redação de jornal, ele traz o editorial do Baltimore Sun e seus repórteres que passam a cobrir o serial killer inexistente através de um repórter antiético levantando a discussão sobre as fake news – isso em 2008, ou seja, o showrunner também é visionário já que a pauta é uma das mais faladas atualmente em 2022.

Com isso, Simon apresenta um bom conceito que ajudou a trazer ideias técnicas na construção de uma série bem orquestrada: o rodízio de personagens. Com tantos rostos entrando e saindo de cena, algumas vezes de modo definitivo, a contribuição do artista é inegável ao tornar mais claro o caminho das pedras para as mentes que viriam a criar Breaking Bad e Game of Thrones anos depois.

Dentro do Buraco

David Simon, assim como outros showrunners que entraram para a História da TV, conseguiu executar The Wire à ferro e fogo, pois a série mantém uma insossa unidade visual quase que do início ao fim.

A proposta hiper realista não cabe somente ao texto e aos personagens, mas sim em toda a ação, dramaturgia e cenografia da série. Na 1ª temporada, única por si só, Simon nitidamente assume uma postura de cinema de guerrilha por motivos bons: a HBO não ofereceu rios de dinheiro em uma aposta arriscada para uma série que dificilmente faria um público cativo.

Assim sendo, limitado ao máximo, Simon idealiza 90% da temporada rodada em locações. Toda a ação acontece nas ruas de Baltimore e a decadência suja da cidade pulsa em todo o canto. The Wire é Baltimore e isso é algo absolutamente mágico. A cidade é mal planejada e a narrativa se concentra em bairros nitidamente de baixa renda, sucateados, de estética pavorosa.

As cores são cruas, a luz é dura e naturalista e a câmera é conduzida pela mão. A primeira temporada emana o charme da Nouvelle Vague francesa ao extremo por essa estética fluída sobrepujada de realismo visceral. O mesmo ocorre com o trabalho no elenco.

Mesmo contando com os importantes nomes de Dominic West – destaque para a excelência do ator britânico em dominar o sotaque da cidade – e Lance Reddick, a maioria dos atores estavam iniciando suas carreiras. A série foi responsável em lançar Idris Elba no cenário audiovisual de maior abrangência, além de ter descoberto o talento excepcional de Andre Royo e Michael Kenneth Williams. 

Para personagens mais secundários, Simon decidia usar a própria população de Baltimore para interpretá-los. Há juízes, policiais, mendigos, crianças e até mesmo traficantes e ex-traficantes dando vida aos personagens. E acredite, o resultado é excelente, sem nunca quebrar a ilusão diegética. 

Entretanto, a estética vanguardista de Nouvelle Vague morre assim que a série recebe um vasto impulso no orçamento a partir da 2ª temporada, assassinando uma linguagem cinematográfica que a tornava de fato única. 

Contando com nada menos que 27 diretores, com até mesmo um dos gigantes da TV, Timothy Van Patten, toda a linguagem cinematográfica pós primeira temporada é extremamente rígida, seguindo as regras mais básicas possíveis da linguagem clássica. 

Assistir The Wire é como ver uma exposição de animais empalhados com boa execução. É interessante, mas se torna uma experiência chata depois de alguns poucos minutos. Para piorar, Simon rejeita absolutamente a ideia de usar trilhar musical fora da diegese. Em 99% dos casos, a música só existe em tela através de um dispositivo que justifique a existência da mesma.

Isso resulta em coisas interessantes na primeira temporada, com uma “perseguição” a Avon centrada somente na “ecolocalização” do som das músicas altas que ele ouve no carro nos bairros fantasmagóricos da cidade. Mas é só. 

O mais frustrante disso é notar que Simon e toda a equipe de diretores é calejada e sabe bem como usar o recurso quando há a permissão de realizar uma sequência em montagem, geralmente no final da temporada, mostrando diversos eventos paralelos embalados por uma excelente canção – o melhor exemplo disso é a sequência que encerra o último episódio.

Mas não é somente na música que Simon castra toda a liberdade criativa possível: a montagem é igualmente afetada. Não existe montagem paralela na série. A sequência de acontecimentos se dá cena a cena, com início, meio e fim nunca interrompidos para então a narrativa prosseguir e ser pautada da mesma forma robótica – o ritmo da série é realmente abissal por conta dessa postura inflexível.

A dramaturgia também sofre com a restrição completa. Seja na frivolidade dos assassinatos e da violência que ocorre, nas raras cenas de ação, na própria execução do exercício da escuta – e olha que dá para fazer coisas incríveis com essa temática, vide o quase perfeito A Vida dos Outros – no tráfico de drogas, nos jogos políticos, até mesmo na própria execução dos diálogos. 

Simon não deseja ousar artisticamente para quebrar o realismo almejado. É inegável, The Wire possui sim uma estética única, mas acompanhá-la por 61 horas não é uma tarefa fácil. Sendo honesto, se trata de uma privação sensorial e isso é um assassinato contra uma arte movida a imagens e sons no mais perfeito exercício criativo humano. 

Para não ser injusto, em toda a série, existe sim uma cena que se destaca de tal forma das demais que ela se tornou um referencial. Obviamente, ela acontece na primeira temporada. Nela, Bunk e McNulty investigam um assassinato já frio, com as pistas contaminadas, para entender a balística. 

Aqui, o texto, as atuações e a encenação trabalham junto para um resultado genial que qualquer espectador consegue compreender o que ocorreu na morte da vítima. E o mais impressionante disso é que os diálogos revolvem somente nas variações da palavra fuck.

Se não acredita, veja por si mesmo:

Tudo no jogo. Nada fora do jogo.

Depois de eu me estender até além do limite com esse texto, me tornando um prolixo hipócrita que condena a burocracia textual de David Simon, é óbvio que The Wire não é uma série qualquer, ordinária.

David Simon trouxe uma contribuição magnífica para o gênero e para a TV como um todo. Até hoje Law & Order e CSI são crias diretas da influência de The Wire e não seria exagero notar que há influências da série em True Detective, outro hit policial investigativo da HBO. E a miríade de tantos núcleos distintos que passam a interagir uns com os outros é um belo ensaio do jogo político visto em Game of Thrones

Ao longo das cinco temporadas, Simon cria uma rede fabulosa de personagens interpretados com perfeição pelo elenco nada menos que excepcional que consegue conferir originalidade mesmo trabalhando com diversos estereótipos do gênero. 

Nessa rede imensa de personagens, digna dos mapas investigativos que Lester monta para ilustrar o esquema criminoso, é fácil ficar maravilhado e perdido ao mesmo tempo. 

The Wire exige uma paciência zelosa e uma atenção do espectador que não é requerida até mesmo no cinema contemporâneo. Logo, não é uma experiência divertida ou até mesmo rápida, mas certamente é enriquecedora. Há críticas sociais e políticas pertinentes até hoje, vinte anos depois da concepção da série, com o problema das drogas e da guerra contra elas infestando cidades no mundo inteiro. 

São Paulo e Rio de Janeiro não estão muito longe desta Baltimore dos anos 2000 que, infelizmente, não parece ter melhorado desde então, afinal são dilemas sociais que parecem não ter solução. A cada vitória, uma derrota diferente.

A Escuta (The Wire, EUA – 2002 a 2008)

Showrunner: David Simon
Direção: David Simon, Timothy Van Patten, Joe Chappelle, Clark Johnson, Ed Bianchi,
Roteiro: David Simon, Ed Burns, Joy Kecken
Elenco: Dominic Chase, John Doman, Deirdre Lovejoy, Wendell Pierce, Lance Reddick, Sonja Sohn, Seth Gilliam, Clarke Peters, Andre Royo, Idris Elba, Michael Kenneth Williams, Jim True-Frost, Jamie Hector, Felicia Pearson, Chad L. Coleman, Tray Cheney, Michael Kostroff, Robert F. Chew
Emissora: HBO
Episódios: 60

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Publicado por Matheus Fragata

Editor-geral do Bastidores, formado em Cinema seguindo o sonho de me tornar Diretor de Fotografia. Sou apaixonado por filmes desde que nasci, além de ser fã inveterado do cinema silencioso e do grande mestre Hitchcock. Acredito no cinema contemporâneo, tenho fé em remakes e reboots, aposto em David Fincher e me divirto com as bobagens hollywoodianas.

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