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Crítica | The Witcher: 1ª Temporada – Uma Adaptação Medíocre

2019 foi um ano oscilante para a Netflix: na mesma medida que nos entregou inúmeras obras-primas cinematográficas, como o drama História de um Casamento e o instantâneo clássico O Irlandês (que entrou para a história como um dos melhores filmes já produzidos), também falhou em produzir certo conteúdos originais – como comédias românticas adolescentes que reciclavam a mesma fórmula vencida e séries que definitivamente não mereciam continuação (como a insossa e desnecessária Insatiable). De qualquer modo, a plataforma permanece como uma das gigantes de streaming e alguns projetos anunciados ganham a nossa atenção e prometem entregar muito mais do que conseguem.

Foi isso o que aconteceu com The Witcher. A famosa trama arquitetada pelo romancista Andrzej Sapkowski ganhou uma legião de fãs desde o seu lançamento e inclusive faz parte do segundo ciclo da explosão da literatura fantástica ao lado de, por exemplo, George R.R. Martin (o autor da aclamada As Crônicas de Gelo e Fogo). Para levar o expansivo e visceral mundo de Sapkowski para as telinhas, Lauren Schmidt Hissrich teria um complexo trabalho a realizar e, para além disso, deveria se manter fiel tanto à própria estética criativa quanto à história explorada nos livros e na premiada série de games.

O resultado não foi nada menos que frustrante: apesar da belíssima transcrição que Hissrich fez do perigoso e inebriante Continente, o pano de fundo por vezes se desmanchou em linhas narrativas saturadas de personagens descartáveis (ou que seriam melhor utilizados em ciclos futuros) – isso sem falar em sequências inteiras que não deveriam existir ou então que foram colocadas no lugar errado e na hora errada. Ao menos o ritmo da obra engata após as convencionais apresentações dos protagonistas (mesmo saindo de nenhum lugar a lugar nenhum e provando que o público acompanhava a uma antológica jornada tour-de-force).

Geralt (Henry Cavill) é um witcher, um caçador de monstros cuja estrutura corporal e psíquica foi modificada através de mutações propositais e que lhe deram habilidades muito maiores que um ser humano normal, aumentando sua força, sua percepção, sua bravura e sua velocidade. Entretanto, o guerreiro foi privado de uma infância normal e, por isso, não tem uma relação “amigável” com outras pessoas – que normalmente o encaram como um ser demoníaco, fruto do pecado e que não deve ser confiado. As coisas mudam quando ele cruza caminhos com outras figuras totalmente fora do padrão: a maga Yennefer de Vengerberg (Anya Chalotra) e a jovem princesa refugiada Cirilla (Freya Allan).

Por muitos anos, as fórmulas fílmicas foram criticadas por seguirem um padrão excessivamente problemático e familiar para os espectadores – levando-nos a pensar na falta de capacidade cognitiva de compreender algo diferente e original. Hissrich, dessa forma, abriu espaço para promover uma desconstrução dos engessados conceitos supracitados, abolindo inclusive o materialista conceito de “cronologia”. Afinal, até meados do terceiro capítulo, temos certeza absoluta de que os três arcos protagonistas irão se juntar mais cedo ou mais tarde em uma convergente reviravolta ou algo do tipo, amarrando as pontas soltas e caminhando para um competente season finale; porém, não é isso o que acontece: na verdade, o trio em questão se situa em linhas temporais diferentes cujas delineações brincam com as ideias de passado, presente e futuro – ou ao menos tentam fazer isso.

A verdade é que a série exala com incrível potencial e, num amador equívoco, se desenvolve numa zona de conforto que, ao mesmo tempo, busca explicar tudo o que existe no universo apresentado. Não é à toa que a sensação inicial é episódica (uma ironia cômica, se não fosse infeliz), colocando Geralt acima das outras personagens em aventuras pontuais que forçosamente se entrelaçam na “batalha final”; mais do que isso, o roteiro não sabe equilibrar a dosagem cênica dos personagens principais, por vezes se esquecendo da importante representação de Ciri, ou então nos envolvendo na poderosa e arrepiante transformação de Yennefer apenas para reinventar um cânone pré-estabelecido.

Apesar dos múltiplos erros, a produção acerta em aspectos imprescindíveis para o envolvimento da audiência: desde a perfeição dos cenários até a performance de seus atores, é inegável dizer que o show pensa com exímia cautela na atmosfera de cada uma das cenas, ainda que recorra a certas obviedades: mesmo não se comparando ao nível de construção de outras investidas contemporâneas, The Witcher faz bom uso das cartas que lhe foram dadas e diferencia os múltiplos caminhos que nossos “heróis” trilham. Ademais, Chalotra nos rouba a atenção por uma atuação narcótica e agonizante – e que detém o único sólido desenvolvimento desse primeiro ano.

A nova série da Netflix deve agradar aos fãs por sua fidedignidade aos livros originais e por seu tom mais dark e mais satírico em relação a outras iterações fantasiosas. Todavia, ela perde-se em tantas questões banais que transforma-se em um amontado de histórias sem coesão, polvilhadas por sequências de ação que, por mais bem coreografadas que sejam, insurgem como meras medidas paliativas.

The Witcher – 1ª Temporada (Idem, Reino Unido, Estados Unidos – 2019)

Criado por: Lauren Schmidt-Hissrich
Direção: Alik Sakharov, Alex Garcia Lopez, Charlotte Brändstörm, Marc Jobst
Roteiro: Lauren Schmidt-Hissrich, Jenny Klein, Beau DeMayo, Declan de Barra, Sneha Koorse, Haily Hall, Mike Ostrowski
Elenco: Henry Cavill, Anya Chalotra, Freya Allan, Joey Batey, MyAnna Buring, Mahesh Jadu, Mimi Ndiweni, Eaon Farren, Anna Shaffer
Emissora: Netflix
Episódios: 10
Gênero: Ação, Fantasia, Drama
Duração: 60 min.

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Publicado por Thiago Nolla

Thiago Nolla faz um pouco de tudo: é ator, escritor, dançarino e faz audiovisual por ter uma paixão indescritível pela arte. É um inveterado fã de contos de fadas e histórias de suspense e tem como maiores inspirações a estética expressionista de Fritz Lang e a narrativa dinâmica de Aaron Sorkin. Um de seus maiores sonhos é interpretar o Gênio da Lâmpada de Aladdin no musical da Broadway.

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