Quem nunca teve um daqueles dias em que tudo parece que deu errado? Quem nunca se irritou com o atendimento em fast foods, ou com o exorbitante preço de alguns produtos? Ou com o engarrafamento constante nas cidades grandes?
Um Dia de Fúria lida justamente com isso – com essas questões mundanas, que servem como estopim para um homem comum simplesmente “quebrar”, atingir seu limite e, em súbita loucura, ultrapassar essa linha imaginária, que nos impede de cometer verdadeiras barbaridades, de sair quebrando tudo pela frente. Nessa sua obra, Joel Schumacher nos dá um vislumbre sobre como seria caso, de fato, nos deixássemos levar pela ira.
Logo nos minutos iniciais conhecemos Bill (Michael Douglas), um sujeito de camiseta branca e gravata, preso em um engarrafamento, aparentemente voltando ou indo para seu trabalho. O calor, constante gritaria, o verdadeiro caos, fazem com que ele abandone seu carro no meio da rua e saia, dizendo que vai para casa. Nessa sua jornada, porém, tudo conspira para irritá-lo ainda mais e, durante o trajeto, sai destruindo tudo à sua volta, desde uma loja de conveniência, até um fast food. Enquanto isso, em paralelo, acompanhamos o último dia de trabalho – antes de sua aposentadoria – de Prendergast (Robert Duvall), que, obviamente, acabará cruzando o caminho de Bill.
Logo de imediato, Um Dia de Fúria segue pelo caminho do humor negro. Através desses problemas mundanos apresentados, nos identificamos com o protagonista, por mais ensandecido que ele esteja e há um certo ar libertador em suas ações, ao passo que ele claramente personifica a raiva que já passamos nesse tipo de situação. Dessa forma, Bill, ou D-Fens, é alguém facilmente relacionável e suas reações perante certas injúrias são impagáveis, o que garante certa leveza à atmosfera do longa-metragem, impedindo, momentaneamente, que, apesar de lidar com o crime, ele se torne sério demais.
Infelizmente, o texto de Ebbe Roe Smith acaba impedindo que essa estrutura seja mantida, já que do humor negro, o texto vai gradualmente se tornando um drama, ou thriller, abandonando aquele ácido humor que tanto marcara o primeiro terço do filme. Ainda que o arco de Prendegast seja envolvente, afinal, estamos falando de Robert Duvall no papel, ele acaba criando um forte maniqueísmo, que coloca Bill, inevitavelmente, como vilão da obra, enquanto que ele funcionaria como uma espécie de violento anti-herói. Essa derrocada ainda é acompanhada pela escalada da violência da obra, com trechos que soam fora do lugar, como o tiroteio que atinge inúmeras pessoas inocentes.
Evidente que a intenção era fazer de Prendegast o completo oposto de D-Fens – ambos foram “sacaneados” pela vida, perderam pessoas importantes, não atingiram seus sonhos e mais. Dito isso, enquanto um sai em uma jornada destrutiva, o outro simplesmente opta por se aposentar e se mudar para o interior com sua esposa. Assim sendo, de uma hora para a outra, o texto parece deixar de querer nos entreter com as sandices de Bill e opta por criar o suspense, a tensão, através da possibilidade de Prendegast ser morto no seu último dia – questão levantada repetidas vezes durante a obra.
O problema, aqui, portanto, não está na escolha em si e sim na forma como o filme parece não se decidir o que, de fato, quer ser. São criadas, dessa forma, constantes hesitações, como um irritante soluço, ao longo da narrativa, a tal ponto que torcemos para que o foco, enfim, seja escolhido. Tudo isso faz soar como se um dos lados do filme fosse plenamente artificial e aqui depende da identificação do espectador – pessoalmente gostaria de ver Prendegast ainda mais na retaguarda, abrindo mais espaço para o desenvolvimento de Bill, que vai ganhando maior profundidade apenas nos trechos finais do longa, à parte das ligações para sua ex-esposa, claro.
Essa indecisão por parte do texto e, claro, do próprio diretor, que transmite maior urgência conforme o longa progride, saindo da ironia que permeia os minutos iniciais, felizmente, é contrabalanceada pelos excelentes trabalhos de Michael Douglas e Robert Duvall, ambos perfeitamente à vontade em seus papéis. Graças aos esforços da dupla que o longa realmente funciona, a tal ponto que sentimos como se eles entendessem mais a proposta que os próprios diretor e roteirista, sabendo o que funciona e o que não casa tão bem com a narrativa do longa.
Douglas encarna o retrato perfeito do mental breakdown, mas não da maneira que esperaríamos. Ele não simplesmente demonstra ira em cada ação – demonstra-se até bastante controlado, sendo educado e sorrindo (no auge do sarcasmo) para certas pessoas. Ele é a figura do trabalhador que se sente injustiçado pelo Sistema, da pessoa que foi abandonada pelo Sonho Americano e percebeu que tudo não passa de mera fantasia. Como caísse repentinamente em um pesadelo, ele, de certa forma, exerce controle sobre esse caos, enquanto o ator transmite um ar onírico à toda a narrativa, através de uma interpretação precisamente “aérea”, como se, de fato, ele não ligasse mais para nada.
Já Duvall está no espectro completamente oposto, vive o sujeito preocupado, não só consigo mesmo e com esse término de sua carreira, como com aqueles ao seu redor. Mesmo nesse último dia de trabalho de seu personagem, ele é dedicado e corre atrás do caso que somente ele parece enxergar a solução. Não há como olhar para o rosto de Duvall e não enxergar uma nítida bondade, que grita oposição em relação aos outros policiais, em geral mal-educados, à exceção de sua antiga parceira. Através desse dedicado trabalho do ator conseguimos nos importar com ele, mesmo com todos os deslizes do texto, que fragmenta a narrativa consideravelmente, tornando-a bastante cansativa, especialmente nos minutos finais.
O que começou como humor negro, pois, termina como drama, enquanto uma atmosfera mais melancólica toma controle da narrativa, especialmente quando descobrimos mais do passado de Bill e como ele agiu durante trechos de sua vida enquanto casado. Por essa razão, a obra acaba soando um tanto hesitante, indecisa, como já foi falado. O peso da história se torna muito maior no ato final e somos levados para um desfecho para lá de previsível, dispensando as deliciosas doses do inesperado que ganhamos nas primeiras cenas do filme.
Do retrato da ira desgovernada, da manifestação daquelas pequenas raivas que sentimos com questões mundanas de nosso dia a dia, passamos para um drama que não exatamente cumpre seu papel, nos deixando no meio do caminho, sem, de fato, concluir a jornada que começamos quando Bill saiu de seu carro. Somos deixados com uma sensação de vazio, enquanto contemplamos a possibilidade desse filme ser muito mais do que ele, de fato, é – nesse ponto, já quase esquecendo daquelas perguntas sobre as irritantes situações pelas quais passamos ao longo da estressante vida moderna.
Não por isso, contudo, quer dizer que Um Dia de Fúria seja dispensável, ou até mesmo perto disso – ainda é uma obra capaz de nos envolver, por mais que enxerguemos seu potencial desperdiçado. Afinal, não podemos desperdiçar a chance de ver Michael Douglas e Robert Duvall, perfeitos em seus papéis, juntos.
Um Dia de Fúria (Falling Down – EUA/ Reino Unido/ França, 1993)
Direção: Joel Schumacher
Roteiro: Ebbe Roe Smith
Elenco: Michael Douglas, Robert Duvall, Barbara Hershey, Rachel Ticotin, Tuesday Weld, Frederic Forrest, Lois Smith, Joey Hope Singer, Ebbe Roe Smith, Michael Paul Chan
Gênero: Drama, Comédia
Duração: 113 min.
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