A crescente demanda por obras originais colocou a gigante do serviço de streaming Netflix à mercê de preencher seu catálogo com produções muito parecidas e definitivamente fora do padrão que costumava entregar há alguns anos. Dentre suas recentes adições, podemos citar a emersão de comédias escrachadas como Santa Clarita Diet ou autobiografias livremente adaptadas como Girlboss – e ambas deram indícios de uma possível decadência da companhia. Felizmente, Tina Fey e Robert Carlock, resgatando sua grande experiência nos meios cômicos, conseguiram resgatar esse potencial perdido ao nos entregar uma ótima temporada da série Unbreakable Kimmy Schmidt.
Primeiramente, preciso falar de como Fey e Carlock possuem uma mão quase endeusada para criar personagens adoráveis e que perpassem por todas as facetas do ser humano, oscilando entre escolher o que é certo e o que é justo, ou então divagando sobre as angústias do que poderia ser ou ter sido. Aqui, a protagonista é a personagem-título Kimmy, interpretada pela amável Ellie Kemper, e sua importância não poderia estar mais clara: desde a temporada de estreia, ela encarna e se deixa levar pelas irreverências que todos nós gostaríamos de ter, mas que é martirizada pelos valores tradicionalistas da sociedade em que vivemos. Seu arquétipo é baseado justamente naquilo que a maioria das pessoas condena: uma personalidade questionadora, otimista e autossuficiente das maneiras menos convencionais possíveis.
E no terceiro ano da série, Kimmy continua sua jornada de autodescobrimento dentro da comunidade nova-iorquina, tentando se encaixar em algum nicho urbano à medida em que percebe que não precisa deste respaldo para continuar autêntica. Afinal, como já sabemos, ela passou quinze anos encarcerada em um bunker pelo Reverendo Richard Wayne Gary Wayner (Jon Hamm), como parte de um culto religioso que visava à salvação pós-apocalíptica. Desse modo, ela foi extremamente influenciada por uma ética submissiva e que até hoje traz corolários para sua compreensão do mundo: muitos podem pensar que ela permanece no âmbito pueril da construção identitária, mas, na verdade, sua “ignorância” provém de uma plasticidade abstrata que, contraditoriamente, é o que a torna independente de qualquer um.
Já no primeiro capítulo, Kimmy Gets Divorced?!, a protagonista se vê num dilema entre fechar ou não o acordo de divórcio entre ela e o Reverendo – um dos ganchos da temporada anterior e que nos fez entrar num choque catártico. A partir daí, percebemos o desenrolar da história enquanto outros personagens começam a influenciá-la a fazer a coisa “certa” – cuja perspectiva subjetiva varia de um para outro. Jacqueline (Jane Krakowski) é a primeira a fazer sua jogada, mostrando a Kimmy que ela deve estar no controle e fazê-lo pagar por tudo o que passou no bunker – e o resultado não poderia ter sido outro: sequência extremamente cômicas perduram durante os trinta minutos de episódio e que culminam numa virada um tanto quanto maniqueísta, mas com uma funcionalidade incrível.
Unbreakable Kimmy Schmidt traz, numa análise mais profunda, arquétipos e estereótipos da própria commedia dell’arte, surgida na Itália no início do século XVI. Inicialmente emergindo como apenas uma delimitação entre o teatro amador e o profissional, a commedia é base ainda para a criação de diversos produtos audiovisuais contemporâneos – e aqui temos um claro exemplo de como vertentes históricas ainda têm muito a contar para nós, mesmo que de forma transgredida. Kimmy é a personificação multidimensional do chamado arlecchino, ou seja, o escape de toda a obra cujo arco tragicômico é pautado na impossibilidade narrativa. Mas ao mesmo tempo, esse cru conceito da Renascença europeia é adornada com elementos da jornada do herói que a colocam em diversos momentos de ressurreição e epifania, contribuindo para a complexidade de sua própria presença.
Jacqueline, inicialmente fincada às raízes dos pantalones, ou seja, da personificação do avarento e do pão-duro que se preocupa apenas com o dinheiro, é uma das personagens que mais evoluiu na série inteira: antes, era vista como a grande vilã da história, responsável por tudo aquilo que Kimmy sempre repudiou, mas que estaria constantemente marcando sua vida; em meados da segunda temporada, ela passa por uma transição e mergulha em um âmbito cultural que a permite retornar às raízes indígenas, renegando o próprio afastamento da família e permitindo-lhe criar um vínculo com a militância preservativa. Ela é sim uma socialite e diversas vezes entra em um embate existencialista e cômico com uma de suas arqui-inimigas, Deirdre Robespierre (Anna Camp), mas, diferente de outros ao seu redor, traz nuances muito bem delineadas para a telinha.
Entretanto, várias vezes o foco da cena é roubado pela simples presença calada de Titus Andromedon. Tituss Burgess, o ator que dá vida a tal personagem, é, sem sombra de dúvida, uma das personalidades mais versáteis do mundo do entretenimento nos dias de hoje. Resgatando elementos de sua criação teatral e expondo seu alcance vocal com inúmeras referências musicais, Titus se tornou o arquétipo de guardião imperfeito que, ao mesmo tempo em que cuida de Kimmy, não pode deixar de cair nos próprios erros e defeitos – como o egoísmo e a megalomania -, trazendo ainda mais graça para as sequências. Em Kimmy’s Roommate Lemonades, o personagem se vê num crescente arco de tensão originado pela descoberta da traição de Mike (Mike Carlsen), seu namorado, enquanto ele esteve trabalhando em um cruzeiro – e, para se vingar, ele traz à tona uma versão inconvencional e apaixonante de Beyoncé, reproduzindo, ao seu estilo, vários dos clipes que a cantora fez para seu mais recente álbum, Lemonade.
Aproveitando o comentário, é necessário dizer que as referências em Unbreakable são pertinentes aos assuntos tratados e transformam as narrativas e suas subtramas em algo atemporal e que atravessa a barreira cronológica imposta por nós mesmos. Seja realizando um breve crossover entre esta série e Orange is the New Black (outra comédia original Netflix) ou então fazendo uma breve homenagem à trilogia de ficção científica De Volta para o Futuro, tudo funciona perfeitamente, como as engrenagens de um relógio: a irreverência é o principal material com o qual se brinca aqui, e o time criativo da série faz questão de, através de diálogos autoexplicativos, exteriorizar monólogos interiores para mostrar a inconstância da psique humana.
Cada capítulo traz sua própria mensagem para ser passada, como se as iterações fossem pequenas fábulas: carregadas de metáforas cômicas e, quando compiladas, transformadas em um manual de morais a serem teoricamente seguidas para aqueles “perdidos na vida”. E é claro que isso não poderia acontecer sem um elenco de apoio – e as aparições nesta terceira temporada são simplesmente fantásticas. Temos, como exemplo, Laura Dern interpretando uma advogada psicótica e iludida que surge como a arma do Reverendo para que Kimmy ceda à assinatura do divórcio, permitindo que os dois se casam; Maya Rudolph, abandonando seus trejeitos escrachados das comédias pastelões, entra num círculo back to basics para dar vida a uma versão demoníaca da cantora Dionne Warwick, cuja relação com Titus é inimaginável.
Definitivamente os ápices de convidados especiais se concentram nas cenas entre Artie (Peter Riegert) e Lilian (Carol Kane). Artie Goodman é um empresário símbolo do capitalismo da “gentrificação” tão odiada por Lilian desde a primeira temporada – e, como bem diz o ditado, os opostos se atraem. Após passarem diversos capítulos em um embate político sobre o que é melhor e o que é certo para a comunidade em que vivem, os dois desenvolvem laços românticos que ultrapassam os próprios conceitos amorosos que tanto vemos em obras audiovisuais; em outras palavras, a relação entre ambos é tudo, menos clichê.
Os temas-base encontram um caminho de grande exploração em Unbreakable. Os episódios convergem para uma arquitrama principal, mas à medida em que novos personagens vão surgindo, outras vertentes são exploradas com objetivo da autorreflexão – e, ao contrário do que poderíamos imaginar, nada é infantilizado ou escrachado, e sim elevado a um nível de transgressão que transforma os acontecimentos em situações inverossímeis e, ao mesmo tempo, passíveis de maior compreensão pelo público.
A terceira temporada de uma das melhores séries do serviço de streaming é um presente entregue a tempo de salvar seu catálogo original. Oscilando entre drama e comédia com grande maestria, não podemos deixar de nos emocionar com as viradas – e esperar quietamente para o retorno de Kimmy, Titus, Jacqueline, Lilian e os outros.
Unbreakable Kimmy Schmidt – 3ª Temporada (Idem, 2017 – EUA)
Criado por: Tina Fey, Robert Carlock
Direção: Tristram Shapeero, Michael Engler, Beth McCarthy-Miller, Jeff Richmond, Ken Whittingham e outros
Roteiro: Robert Carlock, Tina Fey, Sam Means, Dan Rubin, Meredith Scardino, Allison Silverman e outros
Elenco: Ellie Kemper, Tituss Burgess, Jane Krakowski, Carol Kane, Sara Chase, Lauren Adams, Sol Miranda, Jon Hamm, Laura Dern, Amy Sedaris, Anna Camp, Mike Carlsen
Emissora: Netflix
Gênero: Comédia
Duração: 30 minutos