O baque do fracasso crítico que O Idiota para Akira Kurosawa foi tremendo. Em sua autobiografia, o cineasta admitiu que a experiência com o estúdio de outrora foi bastante negativa praticamente se tornando a maior decepção em toda sua carreira. Por isso, com o ego machucado, parece que houve um alinhamento dos cosmos para que Kurosawa fizesse Viver, um drama existencial repleto de mensagens importantes e, até hoje, relevantes – principalmente para a população brasileira.
Logo, exorcizando seus próprios demônios, é bem possível que Kurosawa tenha criado o filme mais pessoal de sua carreira. Viver traz a história funcionário público chefe do departamento de relações públicas da prefeitura da cidade, Kanji Watanabe (Takashi Shimura). Sua rotina monótona repleta de burocracia é rapidamente virada de cabeça para baixo quando descobre que possui câncer de estômago em estágio avançado, o condenando a uma sobrevida de apenas seis meses ou menos. Assustado pela perspectiva aterradora de seu futuro próximo, o senhor Watanabe terá um grande trabalho em descobrir o verdadeiro sentido de viver.
Um Conto Moral
Kurosawa parece fissurado na moral de seus filmes. Se em Rashomon tínhamos a busca pela honestidade e em O Idiota o verdadeiro sentido da bondade, em Viver o roteirista quer trazer à tona o sentido da vida – algo bastante compreensível para um cineasta que se tornou imortal. Trazendo uma narrativa bastante simples, quase como um conto, Kurosawa não busca enfatizar a história ou os personagens à exaustão, afinal Viver é uma obra conceitual bastante idealizada para gerar drama.
Tudo envolve a jornada de Watanabe quando descobre seu cruel destino – coisa que o cineasta aponta já na abertura do filme, antes mesmo de nos apresentar ao personagem. Kurosawa aproveita a longa duração do filme para contar todas as passagens que julga importantes com bastante calma. A rotina de Watanabe é permeada de atividades inúteis e de um repasse intenso de tarefas para outros departamentos públicos, nunca resolvendo os problemas que chegam a ele – essa sequência é tão icônica que acabou sendo homenageada em Brazil: O Filme.
Vital para compreendermos o personagem, o ator Takashi Shimura elabora um contraste perfeito para criar o retrato de Watanabe antes e depois da descoberta do câncer. O detalhe genial é que a diferença é muito sutil. O protagonista já é um homem morto, sempre curvado olhando para os pés e agindo lentamente com um semblante triste. A única diferença é a petrificação de seu olhar quando tem ciência de sua enfermidade, já que Shimura mantém todo o andar zumbificado do personagem.
Aliás, o segmento da descoberta da doença é repleto de um estranho humor. Kurosawa não traz a informação do método convencional ao introduzir um diálogo sádico antes da consulta definitiva com um médico mentiroso. Dessa forma, o roteirista encaixa críticas tanto a ética médica quanto ao setor burocrático vadio do serviço público.
Não sendo o foco de Viver, Kurosawa ainda se preocupa em mostrar a família degradada de Watanabe com a relação conturbada que o senhor tem com o próprio filho só interessado no dinheiro de sua aposentadoria, como se contasse os dias para que ele morresse e ficasse com toda a herança para si. Esse é um dos dramas mais genuínos da obra, já que sentimos todo o pesar de Watanabe totalmente decepcionado com os rumos que guiou em sua própria vida, não podendo nem mesmo contar com o apoio de seu filho no momento mais difícil que já enfrentou.
Passado o primeiro ato, Kurosawa divide o segundo ato em duas partes, colocando o personagem a encarar os clichês das histórias que pregam como se deve viver a vida. Logo, Watanabe tenta de todo modo ser alguém que não é: um bon vivant se entregando a uma noitada de extravagâncias, bebidas e mulheres. O clima de estranheza não é só transmitido pela atuação de Shimura que mostra semblantes confusos e infelizes para o personagem, mas como Kurosawa captura o tom patético da busca ingênua de Watanabe.
Reconhecendo que está errado, o protagonista segue outro extremo ao forçar uma paixão com uma menina muito mais jovem que também trabalhava no serviço público. Também sendo um segmento repleto de estranheza pelo ar patético da relação, Kurosawa aposta em diálogos truncados como se o próprio Watanabe fosse um burocrata até para conversar.
O núcleo enfim gera a catarse bastante original no protagonista na qual o roteirista aproveita ao máximo para mostrar como a máquina pública pode funcionar apenas com uma pequena dose de vontade, além de tangenciar os temas de amor ao próximo, altruísmo e legado. O estranho é que Kurosawa escolhe um rumo muito duvidoso no terceiro ato que consiste quase metade do longo filme.
Através de uma reunião solene repleta de flashbacks, o roteirista mostra o que aconteceu com a vida do protagonista nos últimos cinco meses de um modo bastante anticlimático em uma tentativa de remontar a narrativa de relatos fragmentados de Rashomon. Apesar de conseguir criar críticas criativas repletas de antagonismos contra o Estado e seus representantes oficiais, o encadeamento das ações simplesmente já não geram tanto fascínio, apesar da coragem do roteirista em mudar os rumos do filme de modo tão devastador.
Elaborando ironias finais e um toque de sentimentalismo bem eficaz, Kurosawa consegue construir a história do homem moribundo que se esforçou ao máximo para dar mais vida à cidade que ele viveu e nunca aproveitou.
Sinfonia da Vida
Kurosawa mostra toda a gratidão pelo dom da vida com sua direção cuidadosa em Viver. Estendendo a cinematografia como se fosse o próprio Watanabe, o diretor nos apresenta uma plástica imóvel e fria, com jogos simples de enquadramentos enfatizando sempre a montanha de papelada estacionada em todos os cantos do cenário que envolve o departamento.
Isso, evidentemente, é alterado aos poucos conforme o protagonista passa a experimentar mais prazeres na vida após superar o luto da notícia. O diálogo centrado no bar, antes das passagens agitadas com encenações repletas de movimento e agitação, traz uma bela iluminação sombria que Kurosawa valoriza através de diversos enquadramentos repletos de molduras criadas pelo próprio cenário, como se mostrasse o personagem totalmente aprisionado pela sua condição.
O espaço apertado e escuro se transforma em cenários festivos e amplos, oferecendo algum aconchego para o homem triste tão fragilizado – há momentos estéticos geniais como os constantes jogos de reflexos em espelhos muito bem alocados. Em outro momento, o diretor brinca com os sons, cortando completamente a ambiência para mostrar o isolamento psicológico de Watanabe para enfim irromper com sons pesados do tráfego intenso da cidade colocando o personagem de “volta a vida”.
De modo geral, a abordagem de Kurosawa é bastante simples, mas eficiente em trazer uma linguagem visual compreensível, além de ter diversos momentos verdadeiramente artísticos. Temos a já citada sequência da burocracia que é simplesmente genial, além de outras cenas muito poéticas como uma que envolve o pôr do sol e, enfim, a impactante cena da morte do protagonista.
Nela, Kurosawa retoma um enquadramento que utiliza molduras para aprisionar Watanabe, mas logo muda o ponto de vista capturando a imagem icônica do personagem sentado ao balanço sob uma nevasca delicada cantando sua música favorita sobre o tempo e amores. O diretor também firma a cena final com uma ironia cruel, mas realista, removendo um pouco do idealismo prévio que a obra tanto se apoiava.
Viver a Vida
Nessa história inspiradora que com certeza sofrerá muitas alterações conforme o espectador a revisita e envelhece, Kurosawa fez um atestado belo de amor a vida e do espírito humano. Um filme tão influente que conseguiu um clichê de ponto de partida rendendo diversas outras obras, incluindo uma certa série de televisão que revolucionou o formato de narrativa em seriados dramáticos.
Viver é outro grande acerto da carreira de Kurosawa conseguindo manter a tradição moral sempre pertinente ao cineasta que visa não só entreter, mas educar ao resgatar o melhor que temos a oferecer.
Viver (Ikiru, Japão – 1952)
Direção: Akira Kurosawa
Roteiro: Akira Kurosawa, Shinobu Hashimoto, Hideo Oguni
Elenco: Takashi Shimura, Haruo Tanaka, Minoru Chiaki, Miki Odagiri, Bukezen Hidari
Gênero: Drama
Duração: 142 minutos.