Até mesmo em seu filme, A Favorita, com uma trama mais “acessível” e uma linha de narrativa bem delineada com os conflitos e embates de suas personagens sempre bem claros, Yorgos Lanthimos ainda consegue deixar muitas nuances de sua história e personagens em real dúvidas e com certeza a serem discutidas e interpretadas. Afinal sobre o que essa hilária versão semi-erótica de A Malvada no século XVII tem à dizer sobre o seu período de tempo e as três personalidades femininas que se confrontam em um jogo de ego, sedução e mentiras?! Vejamos.
O grande desenlace dessa batalha de superioridade termina com a aparente vitória de Abigail (Emma Stone) contra Sarah (Rachel Weisz) após ela finalmente ter conseguido criar o afastamento emocional e físico entre Sarah e a rainha Anne (Olivia Colman) depois dela ter desaparecido e voltado desfigurada, resultado de um envenenamento de Abigail. O que permitiu a jovem ficar muito mais íntima da rainha e Anne rapidamente perder sua atração física por Sarah, como também sua confiança.
Levando Abigail à segunda em comando como matrona do palácio, mas após ser vista por Anne enquanto pisa com desdém em um de seus coelhos, a rainha a obriga lhe massagear as pernas para ter seu prazer sexual enquanto o filme termina nesse clima perturbador de abuso e submissão enquanto o rostos de ambas se misturam em fades no mesmo plano de câmera, com os coelhos aos milhares ao fundo se multiplicando. Dando esse final de ar tenebroso e ambíguo, mas com um significado bem simples em sua execução.
Duas-Caras do bem e do mal
O que é extremamente interessante e dramaticamente profundo sobre a conclusão que o filme entrega ao conflito entre as três protagonistas sobre quem vai ser a favorita da rainha, é o como as três mulheres sucumbem, não só às suas ações malfazejas e atitudes visando um benefício próprio, mas graças aos seus próprios erros íntimos e psicológicos. E isso claro provém de como as personagens são caracterizadas ao longo do filme, passando para o público uma primeira ideia prematura sobre que tipo de pessoas elas são, só para depois desmembrar o branco no preto e ver que nem tudo é o que aparenta.
Vide primeiro Abigail que graças à aparência tão graciosa e jeito de boa moça que a atriz Emma Stone lhe provém, a primeira impressão é exatamente aquela em que ela mesma quer passar, a de uma jovem inocente que apenas busca fazer o melhor em seu trabalho como serva leal. Mostrando como sua principal motivação seu passado de sofrimento, contando no início que sua vida é um contínuo labirinto de submissão desde que fora vendida como uma aposta do Pai para um ricaço pervertido que sempre a abusou, e que lutou a vida inteira para nunca mais voltar a esse estado.
Apenas para mais tarde se mostrar como uma manipuladora sem limites quando deixa bem claro que nada é demais para seus poucos escrúpulos de conseguir o que quer. Seduzir sexualmente a rainha; se casar para conseguir um título e só agredir e destratar o marido; envenenar Sarah e depois acusa-la de lavagem de dinheiro.
Sarah também mostra ser uma personalidade bem complexa. Se de primeira se mostra como uma pessoa cruel, fria e rígida em suas atitudes para com todos, também mostra se justa nas suas decisões que deixam o reinado de Anne em balanço como também mostra seu amor verdadeiro à rainha mesmo dentro de sua boa dose de grosserias, pois ao contrário das mentiras embelezadoras de Abigail na forma como ela trata Anne, Sarah a trata com sinceridade e sempre visa o bem da rainha.
Anne então talvez seja a indivíduo menos transparente do elenco. Pois por debaixo de suas características de uma criançona mimada que só vive de resmungos adoentados, ela também mostra um ar de inocência genuíno e uma personalidade completamente danificada e traumatizada em frustrações pela vida, a maior de todas sendo a perda de todos os seus filhos natimortos. E para ajuda-la a suprir a dor e frustração de todos os partos falhos que teve, ela cria dezessete coelhos em seu quarto, um coelho para cada um dos filhos que perdeu.
Submissão ao sufrágio
No final, cada uma delas se afundam pela forma que são e agiram no seu confronto de ego. Sarah perde tudo, a sua beleza pela desfiguração, e seu título de matrona pois não o soube defender em seu ego subestimando a perspicácia de Abigail e pela forma fria com que tratava Anne, chegando no final acabando sendo presa com o marido pela uma falsa acusação de Abigail.
Enquanto Anne finalmente se afunda na miséria de sua existência, após perder a única pessoa que a amou de verdade e trazia balanço em sua vida, ficando com uma aproveitadora, mas que agora vai afunda-la em suas tentativas de prazeres carnais. Pois após Abigail ficar cega de poder enchendo o Palácio de festas eróticas e indo ao ponto de tentar se aproveitar do quarto da rainha pisando em seus coelhos querendo mostrar seu desdém e poder, mas a mesma cegueira com o poder que à leva de volta exatamente aonde inicialmente estava em seu posto de submissão.
Não à toa, a simbólica cena final coberta de um silêncio poético de tragédia e miséria, se não física mas espiritual, onde os rostos de ambas as mulheres se misturam em fades na mesma tomada com os coelhos aos milhares ao fundo se multiplicando, é a simbolização da frustração de suas protagonistas se intensificando e multiplicando sem fim. Com Abigail se tornando outro dos coelhos para a rainha, uma frustração que ela para sempre terá que carregar e um animal que para sempre terá que servir à uma rainha se afundando em sua miséria.
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