Crítica | Jogador Nº 1 - O filme mais nerd do século
Às vezes estamos tão imersos em uma realidade que nem percebemos o tempo passar. Por exemplo, ao me informar sobre a proposta deste Jogador Nº 1, minha primeira reação foi achar a ideia um tanto atrasada, visto que games de realidade virtual e o efeito do Second Life eram novidades apenas no passado. Porém, um segundo de reconsideração nos traz à óbvia constatação de que vivemos sim em um ambiente virtual, à frente de nossos smartphones, whatsapps e redes sociais. Mesmo não sendo um videogame, é uma realidade que acaba tornando a obra literária de Ernest Cline relevante e ainda atual, mesmo que seja um viés mais próximo do entretenimento e da diversão escapista do que um estudo sociológico - ainda que esta característica esteja presente.
Entra o lendário cineasta Steven Spielberg, que no passado já foi conhecido como o mestre do entretenimento, e também da diversão escapista. O Spielberg do século XXI é um muito diferente de sua fase nas décadas de 70 e 80, visando uma aproximação do estilo mais sóbrio e classudo de John Ford, e também escolhendo temas mais "importantes" e concentrados em eventos históricos; sem nunca perder seu toque de mestre, claro, e nos rendendo obras do calibre de Munique, Lincoln e Ponte dos Espiões. É de se admirar que, ao assumir a adaptação de Jogador Nº 1, Spielberg reencontre seu espírito mais jovem e mostre-se capaz de dirigir uma aventura intensa e de ritmo incessante, com toques que só o responsável por Indiana Jones seria capaz de realizar.
A trama nos apresenta ao ano de 2045, onde temos mais uma variação do planeta vivendo em algum tipo de distopia não esclarecida, com conjuntos habitacionais deploráveis e um modo de vida não muito saudável, com o protagonista definindo como "uma população acomodada e que desistiu de tentar superar os problemas". Parte disso também se dá ao sucesso do OASIS, um jogo de realidade virtual criado pelo excêntrico James Halliday (Mark Rylance), que, após sua morte, anuncia que deixou uma série de pistas escondidas no jogo, e quem as encontrar poderá obter controle do game e de sua bilionária fortuna. Nesse cenário, o jovem Wade Watts (Tye Sheridan) é um dos muitos que tentam descobrir o segredo, lutando ao lado de um grupo de rebeldes para obter sucesso antes da maléfica corporação IOI, liderada pelo inescrupuloso Nolan Sorrento (Ben Mendehlson).
Upgrade do blockbuster americano
Jogador Nº1 é um sonho molhado para os fãs da cultura pop. Através da proposta de se criar um mundo virtual que pode ser populado com absolutamente tudo o que o jogador imaginar, o roteiro de Zak Penn e do próprio Cline se dá na liberdade de trazer diversos personagens e ambientes de filmes, seriados e jogos do imaginário popular, o que pode ser definido como o cartão de visitas da obra. O protagonista dirige um DeLorean de De Volta para o Futuro no OASIS, enquanto seu melhor amigo secretamente trabalha na construção de um Gigante de Ferro e até mesmo artefatos mágicos como "o cubo de Zemeckis" estão espalhados por aí, tornando a experiência de encontrar os easter eggs algo extremamente prazeroso para o cinéfilo e entusiasta de plantão. Quer dizer, quem não fica empolgado em ver uma corrida entre o DeLorean, a moto de Akira e diversos outros carros em uma pista sendo atacada pelo T-Rex de Jurassic Park e o gorilão de King Kong? Não há definição mais sucinta e apropriada do que orgasmos nerds, e nem ousarei comentar outras inacreditáveis sequências para não estragar as (muitas) surpresas pela frente.
Em um nível estrutural, Penn e Cline fazem um ótimo trabalho ao equilibrar as convenções de uma ficção científica distópica com as de um videogame; este último, ainda um elemento que Hollywood não dominou por completo. Todas as pistas e revelações dos personagens na caçada pelo easter egg de Halliday são bem construídos e apresentados, com os avatares encontrando informações relevantes até mesmo em pistas falsas; o espectador sente uma escalação lógica e divertida durante a jornada, e ajuda que, novamente, diversas obras populares façam parte dessa narrativa, e uma pista envolvendo o grupo literalmente entrando em um filme famoso é um dos momentos mais inspirados da produção. Próximo do final, uma solução tipicamente relacionado aos videogames também é bem utilizada, remetendo ao trabalho de Edgar Wright em Scott Pilgrim contra o Mundo, e já que mencionei o cineasta inglês, vale apontar a participação de Simon Pegg aqui, que revela-se uma figura importantíssima da trama - ainda que seja desenvolvida tarde demais, em um dos leves deméritos da produção.
No lado distópico, a dupla mantém a mesma eficiência. Temos o clássico duelo da gigantesca e maléfica organização contra pequenos grupos de rebeldes, e o arco antagonista é bem representado pela IOI e Nolan Sorrento. O estereótipo do engravatado malvado e capitalista ganha mais uma representação divertida, especialmente por Nolan ser um empresário sem o menor conhecimento de cultura pop ou games, contando com uma inusitada equipe de geeks para estudar e analisar todos os elementos do OASIS a fim de encontrar o easter egg - além de sempre soprar respostas e comentários nerd para Nolan através de um comunicador, rendendo uma curiosa cena envolvendo o cinema de John Hughes. Há também uma ação inesperada envolvendo o personagem de Nolan próximo da conclusão, que parece ter vindo do nada e sem qualquer tipo de preparo, mas que surge como uma boa forma de espantar clichês, e também de fortalecer o que está acontecendo em cena.
Jogadores 2, 3, 4...
Depois de passar um bom tempo trabalhando apenas com atores consagrados, vide o elenco monumental de The Post: A Guerra Secreta, é refrescante ver o cineasta dando espaço a novos talentos. Já tendo despontado no indie Amor Bandido e causado uma boa impressão como o jovem Ciclope em X-Men: Apocalipse, Tye Sheridan tem aqui o papel que o transformará em um astro. Carismático, divertido e carregando a típica personalidade de um filme Spielbergiano dos anos 80, na forma do jovem altruísta e inteligente, Sheridan faz de Wade um protagonista sempre interessante e que ganha a admiração do público; mantendo todos esses traços também em seu avatar Parzival. Veterana da finada Bates Motel, Olivia Cooke é uma presença magnética e radiante, e que já deveria ter tomado Hollywood desde sua participação no fraco terror A Marca do Medo, e que faz da guerreira Samantha/Art3mis uma figura igualmente carismática. Lena Waithe, Win Morisaki e Philip Zao compõe o restante do grupo de Parzival, e se não trazem muito backstory ou informações para destacá-los, ao menos garantem bons momentos graças ao carisma e timing cômico - especialmente Waithe, conhecida pelo ótimo trabalho em Master of None, que tem uma revelação inusitada envolvendo sua personagem.
Praticamente fadado a interpretar vilões, Ben Mendehlson faz um bom trabalho como Nolan, e o departamento de maquiagem merece aplausos pela discreta dentadura que faz seus dentes parecerem maiores, mas sem transformá-lo em uma caricatura. É admirável como seu avatar também reflete perfeitamente sua postura mais impaciente e ignorante em relação ao game, sendo simplesmente um sujeito grandão com um terno por cima de uma armadura. Novo melhor amigo de Spielberg, Mark Rylance retorna para mais um personagem completamente diferente, fazendo de Halliday uma figura insegura e socialmente esquisita (pense em uma mistura de Steve Jobs com Napoleon Dynamite), e o ator se diverte muito com esses traços, mas também garante uma tocante catarse quando chegamos na mensagem final. Por fim, ainda que seja uma presença diminuída, Hannah John-Kamen impressiona como F'Nale, a agente especial de Nolan, que desempenha um papel similar à de Sylvia Hoeks em Blade Runner 2049, mas aqui com um pouco mais de humor.
Um mestre renovado
Em termos de direção, é praticamente um pleonasmo elogiar o trabalho de Spielberg. Um poeta com a câmera, seu trabalho de movimentação já fica evidenciado logo nos segundos iniciais, quando uma série de planos longos acompanham a descida de Wade de seu trailer no conjunto habitacional, e o diretor emprega esse dinamismo visual de distintas formas: seja para uma revelação surpreendente, seja para acentuar o suspense de um certo personagem tentando escapar. O grande diferencial plástico de Jogador Nº 1 são as cenas no OASIS. Em uma aposta que poderia ter falhado estrondosamente - e os primeiros trailers sugeriam isso - Spielberg opta por retratá-la inteiramente em computação gráfica, e com os atores utilizando captura de performance. Literalmente temos um game nas telas, ainda que com um motor gráfico não tão impressionante quanto o de obras como Uncharted 4. Felizmente, o espectador se acostuma rápido com aquela textura e o visual cartunesco dos avatares, que surgem menos pesados do que aqueles usados pelo diretor em As Aventuras de Tintim, e se adequam bem à fotografia mais dessaturada de Janusz Kaminski, que aqui também aposta em um look mais clean, surgindo menos como suas luzes platinadas em Minority Report: A Nova Lei, e mais como o trabalho de Dan Mindel nos longas de J.J. Abrams - mas com um uso de flares bem mais discreto, claro.
Quando as cenas de ação nesse universo do OASIS começam, é quando o espectador mergulha em um espetáculo sem precedentes. Ainda que tudo seja CGI, Spielberg e a equipe da ILM acertadamente não escondem esse fato, e abraçam todas as possibilidades de ambientação e câmera que um cenário 100% digital é capaz de realizar. O diretor nunca esteve tão solto, e ainda que não contenha um feito tão admirável quanto o plano sequência de Tintim, ver todos aqueles personagens e veículos famosos se batendo e mergulhando no caos é algo impressionante, ainda mais pelo nível de detalhes: algumas das referências podem aparecer discretamente no canto da tela ou voando pelos ares em grandes sequências de batalha. É de se impressionar que, praticamente no mesmo ano, Spielberg tenha lançado Jogador Nº 1 e The Post: A Guerra Secreta, remetendo aos anos em que o cineasta oferecia uma sessão dupla com amostras de seu ecletismo: um blockbuster divertido (Jurassic Park, O Mundo Perdido, As Aventuras de Tintim) e um drama histórico (A Lista de Schindler, Amistad, Cavalo de Guerra).
Irrepreensível nos quesitos técnicos, há de se dar atenção ao fato de que um filme de Steven Spielberg não tem sua trilha sonora musical composta pelo gênio John Williams, que passou a tarefa para Alan Silvestri enquanto lidava com a agenda louca que já incluía The Post e Star Wars: Os Últimos Jedi. Nada mais apropriado para que o responsável pela trilha de De Volta para o Futuro retorne aqui - e até traga uma sutil rendição de um dos temas da trilogia de Robert Zemeckis - e ofereça uma música que mistura muito bem as composições clássicas e grandiloquentes que Spielberg tanto preserva, com um toque mais eletrônico na percussão, mirando na alma dos fliperamas e longas dos anos 80. Um trabalho eficiente, e que divide bem o espaço com as diversas canções licenciadas que ajudam a despertar a nostalgia oitentista.
Explosão de energia e diversão
No fim, Jogador Nº 1 é uma celebração da nerdice e da cultura pop, servindo como um delicioso entretenimento comandado pelas mãos de um dos grandes mestres desse tipo de cinema. Ainda que imperfeito, nos remete aos grandes filmes de aventura de Steven Spielberg, e levanta a barra para os vindouros longas metragens que se arrisquem a traduzir a linguagem dos games para as telas. Mais um filmaço para a invejável filmografia do diretor, e que ele não deixe a aventura de lado por muito tempo...
Jogador Nº 1 (Ready Player One, EUA - 2018)
Direção: Steven Spielberg
Roteiro: Zak Penn e Ernest Cline, baseado na obra do último
Elenco: Tye Sheridan, Olivia Cooke, Ben Mendehlson, Mark Rylance, Simon Pegg, Lena Waithe, Win Morisaki, Philip Zao, T.J. Miller, Hannah John-Kamen, McKenna Grace, Kae Alexander, Letitia Wright, Ralph Ineson, Susan Lynch, Rona Morison
Gênero: Aventura, Ficção Científica
Duração: 140 min
https://www.youtube.com/watch?v=q_1OJNcTld0
Crítica | Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal - Uma aventura nostálgica e subestimada
Quando Indiana Jones e seus amigos cavalgaram em direção ao pôr do sol nos segundos finais de A Última Cruzada, parecia um encerramento digno e poético para as aventuras do arqueólogo. Mas, sendo Hollywood uma máquina que sempre acaba trazendo ícones do passado de volta, e também o clamor da fanbase que descobria a internet nos anos 2000, era certo que veríamos o herói de Harrison Ford mais uma vez, despertando assim uma onda de resgate a personagens clássicos do cinema, vide Rocky Balboa, Rambo IV, Tron: O Legado, Star Wars: O Despertar da Força, Blade Runner 2049 e até o próprio Indiana Jones, que retornará para uma quinta aventura em 2020. Mas antes de a fase Disney da LucasFilm oferecer seu capítulo de Jones, o aventureiro dividiu opiniões com seu último filme, O Reino da Caveira de Cristal. A verdade é que, tendo baixado a poeira após 10 anos de seu lançamento, é que o quarto filme da saga não deve muito a seus antecessores.
A trama é situada em 1957, com a Guerra Fria entre os EUA e a União Soviética a todo vapor. Nesse cenário, o envelhecido Henry Jones Jr. (Ford) é forçado à voltar ao campo quando uma expedição russa liderada pela ambiciosa Irina Spalko (Cate Blanchett) parte em busca de uma misteriosa Caveira de Cristal, que pode estar relacionada com civilizações antigas e até mesmo extraterrestres. Também enrolado nesta trama, está o jovem Mutt Williams (Shia LaBeouf) que procura a ajuda do arqueólogo após sua mãe, Marion Ravenwood (Karen Allen) e seu mentor Harold Oxley (John Hurt) serem capturados após irem atrás do mesmo artefato.
The Outer Limits
A maior reclamação que escuto sobre O Reino da Caveira de Cristal é sobre não ser uma história de Indiana Jones, por ser "absurdo" que o arqueólogo lidasse com criaturas alienígenas, por assim dizer. Bem, as histórias de Jones sempre tiveram uma inspiração assumida nos matinês e pulp fictions dos anos 40, e dado o salto temporal obrigatório de 19 anos, era evidente que encontraríamos Indy na Guerra Fria dos anos 50. Uma década particularmente popular para os romances de ficção científica, então o roteirista David Koepp é bem feliz e certeiro em utilizar esses elementos como parte da nova história; ainda mais levando em conta toda a paranoia nuclear e as teorias da conspiração envolvendo o infame Caso Roswell e o mistério da Área 51. É o tipo de episódio histórico que tem o nerve de Indiana Jones, e ver referências do texto que confirma a participação do arqueólogo na escavação e até encontros com Pancho Villa, só enriquecem e expandem seu universo - afinal, existem estudos e pesquisas conceituados ligando as civilizações maia com a presença de vida fora da Terra, e Indy só trabalha dentro dessa hipótese.
Seguindo essa linha anos 50, O Reino da Caveira de Cristal traz uma antagonista de peso à franquia na forma de Irina Spalko. Sem dúvida a vilã mais impactante da série, Cate Blanchett preenche Spalko com um sotaque pesadíssimo e delicioso de se ouvir, aliado a um corte de cabelo que imediatamente nos chama a atenção, e cuja franja reta possibilita à atriz um trabalho fenomenal com os olhos. Claro, é uma personagem caricata e exagerada, com uma paixão bizarra pelo oculto e poderes mentais, mas Blanchett se diverte e traz muito charme e presença, sempre acompanhada de um tema musical charmoso e icônico, fornecido novamente pelo mestre John Williams. De forma similar, adoro como o design dos seres extradimensionais são do mais básico possível: um ET marciano e uma nave que literalmente é um disco voador, da mesma forma como eram descritos e ilustrados em publicações e filmes da época. É uma decisão corajosa do designer Guy Hendrix Dyas, em pleno 2008 voltar para o visual mais minimalista possível de uma embarcação alienígena, e até compreendo a aversão de alguns ao contemplar a tomada do Indy observando sua decolagem.
Da mesma forma como A Última Cruzada apostava em uma aventura de pai e filho, este Indy também aposta em uma trama familiar, trazendo não só o filho de Indy, Mutt, mas também resgatando Marion, de Caçadores da Arca Perdida. Não é uma fórmula vencedora como o hilário embate de egos entre Ford e Sean Connery no terceiro filme, afinal é um nível altíssimo a ser superado, mas LaBeouf faz um bom trabalho aqui; afinal, nesta fase o ator ainda não enfrentava os "problemas com a fama" ou sua nova filosofia underground. Mas é realmente maravilhoso rever Karen Allen, em tão boa forma e com o mesmo sorriso estelar que conquistou Indy no primeiro filme, 26 anos antes. E, claro, Harrison Ford parece não ter envelhecido em nada seu espírito. O mesmo humor, tiradas irônicas e reações rápidas de Indy estão de volta, e Ford se diverte à beça ao zombar dos "poderes" de Irina Spalko ou até mesmo a forma cansada e rabungenta com que exclama "russos!" em suas primeiras falas do longa. Vale também mencionar que, embora Indy não entre tanto em ação aqui, há uma persistência em utilizar dublês - ou próprio Ford - e um bonecão digital do arqueólogo felizmente é algo que a franquia ainda não enfio sob nossas goelas.
Nuke the Fridge
Claro, não dizendo que Indy 4 seja um filme irretocável, e há diversos elementos que realmente fazem entender o ódio de alguns pelo projeto. A franquia nunca foi estranha para efeitos visuais, desde tela verde até os estágios mais primordiais de CGI, mas sempre apostou em efeitos práticos, maquiagens, stop motion e bonecões para executar suas cenas mais surreais. Aqui, Spielberg se apoia completamente em CGI, já com o pé na porta ao abrir o longa com uma fuinha nitidamente digital, além das formigas carnívoras que não causam o mesmo arrepio que as cobras, insetos ou ratos todos reais provocavam na trilogia. É algo que acaba incomodando, especialmente durante a longa perseguição de carros em uma floresta tropical, onde o uso de um chroma key é berrante e artificial, além daquela sequência absolutamente ridícula envolvendo Mutt se balançando pelos sipós com um grupo de macacos - o mais próximo de Jar Jar Binks que Indiana Jones já chegou, e acho que todos concordamos sobre a identidade do responsável por tal ideia ideia...
Há também a famosa cena da geladeira nuclear. Confesso que ver Indy fugindo da Área 51 apenas para cair em uma casa falsa para servir de testes nucleares em Nevada é das mais divertidas, mas até eu achei um pouco forçado quando o arqueólogo se esconde em uma geladeira chumbada para escapar da explosão; e ainda sai voando intacto após o impacto. Não por acaso "nuke the fridge" virou o equivalente desse século para "jump the shark", no que diz respeito aos exemplos mais absurdos da suspensão de descrença. Mas, novamente, venho usar os filmes antigos como defesa: o mesmo Indiana Jones sobreviveu a uma queda de avião nas montanhas ao usar um bote inflável para amortecer sua queda e ainda sair deslizando pela neve. São situações diferentes, claro, mas não foi de agora que Jones adquiriu um instinto Dominic Toretto de sobrevivência às leis da Física.
De Volta ao Jogo
Steven Spielberg estava em uma fase muito diferente de sua carreira em 2008 do que quando assumiu o arqueólogo pela primeira vez. Buscando tipos de história mais adultos e maduros, Spielberg acabara de sair do pesado Munique, além de já ter experimentado dramas históricos pesados com O Resgate do Soldado Ryan, Amistad e A Lista de Schindler, e até mesmo o blockbuster Guerra dos Mundos tinha uma roupagem sombria e assombrada pelo pós-11 de Setembro. Então, era curioso ver como Spielberg se sairia ao voltar para esse tipo de cinema mais leve e despretensioso, e felizmente o diretor mantém seus mesmos traços. Mesmo que prejudicados pelo CGI evidente, seu trabalho com câmera segue excepcional, assim com sua habilidade em criar imagens icônicas; como a arrepiante tomada em que vemos a sombra de Indiana catando o chapéu do chão e colocando-o novamente pela primeira vez em 19 anos; até mesmo o fotógrafo Janusz Kaminski manera em suas luzes estouradas e o grão forte para se assimilar ao visual dos três filmes anteriores, incluindo o icônico jogo de sombras.
A admirável como Spielberg consegue colocar tanta informação em um único quadro, servindo tanto como dispositivos para ilustrar a personalidade de seus personagens ou simplesmente provocar um humor discreto. Por exemplo, o plano médio aberto onde Indy e Mutt conversam na lanchonete, onde uma grande quantidade de exposição está sendo apresentada, e vemos Mutt casualmente mergulhando seu pente na bebida de um universitário na mesa ao lado (assim como sua reação indignada e um diálogo inaudível com sua amiga) e roubando uma cerveja da bandeja de um garçom, apenas para que Indy a coloque de volta em questão de segundos. Nenhuma dessas ações é destacada verbalmente - apenas com gestos e olhares - e os personagens jamais tiram o foco do diálogo em questão. Apenas um exemplo do tipo de composição que Spielberg faz aqui, e até mesmo os críticos mais fervorosos são forçados a reconhecer o trabalho primoroso do diretor, que nunca parece enferrujar.
Realmente acredito que O Reino da Caveira de Cristal seja um filme subestimado. Não é o melhor exemplar de Indiana Jones, e definitivamente força nossa amizade com algumas ideias questionáveis e um uso despirocado de computação gráfica, mas acerta ao amadurecer os personagens e nos surpreender com suas evoluções, além de oferecer um mistério saboroso e uma belíssima homenagem ao cinema de ficção científica B dos anos 50. Por mais que hajam seus defeitos, esse retorno tardio do arqueólogo é tão Indiana Jones quanto os filmes anteriores.
Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal (Indiana Jones and the Kingdom of the Crystal Skull, EUA - 2008)
Direção: Steven Spielberg
Roteiro: David Koepp, baseado no argumento de George Lucas e Jeff Nathanson
Elenco: Harrison Ford, Cate Blanchett, Shia LaBeouf, Karen Allen, Ray Winstone, JoHn Hurt, Jim Broadbent, Igor Jijikine
Gênero: Aventura
Duração: 122 min
https://www.youtube.com/watch?v=nMhfESAa4tw
Crítica | A Hora do Espanto (2011) - Atualizando o mito do vampiro
Dentre tantos remakes inúteis que apareceram nos últimos anos, A Hora do Espanto parecia uma boa aposta. O original de 1985 é muito divertido, mas que não sobrevive tão bem ao tempo – é difícil para a nova geração aceitá-lo – por isso, uma versão atualizada seria uma aposta interessante. Em parte, o filme de Craig Gillespie funciona bem com as mudanças feitas na história original, mas por outro lado, peca na construção de uma nova estrutura.
Na trama, Charley é um jovem de 17 anos que descobre que seu vizinho Jerry é um selvagem vampiro. Diante da ameaça e de constantes desaparecimentos, ele tenta proteger sua família e livrar-se do sujeito, contando com a ajuda do ilusionista Peter Vincent.
Pela sinopse, vemos que a premissa básica do original permanece quase que intocada, mas temos boas mudanças. Por exemplo, o cenário foi trocado para Las Vegas, uma escolha inspirada se levar em conta a agitada vida noturna da cidade e a quantidade de bizarrices em cassinos e shows. Os personagens também aparecem ligeiramente diferentes; Charley (bem incorporado pelo carismático Anton Yeltchin) surge um pouco mais arrogante do que William Ragsdale no original, apresentando uma relação tensa entre seu personagem e o de Christopher Mintz-Plasse (Ed, bem mais vulnerável do que o de Stephen Geoffreys), focando uma amizade abalada que surge bem trabalhada pelo roteiro.
Mas não se preocupem amantes de vampiros (os de verdade, não a versão purpurina de Crepúsculo), porque o roteirista Marti Noxon respeita bem as “regras” da mitologia das criaturas: ausência de reflexos em espelhos, medo de crucifixo, presas… O pacote completo. E quem assume todos os poderes e responsabilidades é o ótimo Colin Farrell, que mostra-se muito à vontade como Jerry, exibindo uma divertida canastrice ao longo da projeção (que na minha opinião, funciona melhor do que a versão de Chris Sarandon – que tem uma pequena participação aqui).
Outra peça-chave do original é Peter Vincent. Se antes ele foi representado pelo ótimo Roddy McDowall como um sujeito adorável e elegante, aqui o especialista em vampiros e artes das trevas é um pinguço desleixado com visual de Chriss Angel, mas que funciona graças a inspirada performance de David Tennant. No entanto, fica difícil aceitar os motivos que o fazem ajudar Charley, que são pouco justificados e preguiçosamente explorados.
Um problema grave é o ritmo. É ótimo que Noxon tenha mudado diversas coisas do original de Tom Holland, mas este possuía uma ordem de fatos bem mais relevante do que essa nova versão, já que trabalhava bem com a criação do suspense e a preparação de um clímax. O filme de Gillespie é muito estiloso (o diretor trabalha de forma excepcional com planos-sequência, especialmente na cena do carro que “homenageia” Filhos da Esperança), mas desenfreado e mal trabalhado em diversos momentos – como por exemplo, a transformação vampiresca de um dos personagens – além de soar artificial em sua conclusão.
No que diz respeito a parte técnica, aponto como acertos a fotografia de Javier Aguirresarobe, que trabalha com eficiência os tons escuros e as paisagens noturnas de Las Vegas, e a empolgante trilha sonora de Ramin Djawadi, que combina acordes sinistros (como um nostálgico teclado que remete diretamente a terrores oitentistas) com alguns mais contemporâneos. De erros, temos os terríveis efeitos visuais, que surgem mal feitos e exageradíssimos, enquanto o 3D só é útil para jogar sangue fora da tela, escurecendo demais a projeção.
Mesmo que apresente defeitos em sua estrutura, A Hora do Espanto é uma ótima diversão e, assim como o original, equilibra bem os momentos de humor com terror genuíno. O elenco inteiro merece aplausos pelo carismático trabalho, e o diretor Craig Gillespie mostra grande talento na composição visual da narrativa.
Mas não há efeitos CG que se equiparem com as caprichadas maquiagens oitentistas.
A Hora do Espanto (Fright Night, EUA – 2011)
Direção: Craig Gillespie
Roteiro: Marti Noxon
Elenco: Colin Farrell, Anton Yelchin, Toni Collette, David Tennant, Christopher Mintz-Plasse, Imogen Poots
Gênero: Terror, Comédia
Duração: 106 min
https://www.youtube.com/watch?v=PZT_08HC0yw
Crítica | Círculo de Fogo: A Revolta - Michael Bay Genérico
Ao contrário da maioria, não fui conquistado tão fortemente por Círculo de Fogo, filme lançado por Guillermo Del Toro em 2013 que celebrava os filmes de monstros japoneses em um festival de ação e pancadaria. Porém, confesso que é uma experiência divertida, e o talento de Del Toro para conduzir sequências grandiosas e trazer sua inconfundível assinatura visual em cenários e criaturas certamente faz valer a visita, mesmo que longe de perfeita. Com um resultado pouco expressivo nas bilheterias americanas, demorou para que a sonhada sequência visse a luz do dia, e com a Legendary trocando a Warner Bros pela Universal, o estúdio logo trouxe Steven S. Knight para comandar este Círculo de Fogo: A Revolta. Bem, como Del Toro era o diferencial naquele filme, não é de se espantar que Knight falhe de maneira colossal.
A trama tem início 10 anos após os eventos do original, com a humanidade vivendo tempos relativamente pacíficos após a vitória contra os Kaijus. Nesse cenário, o rebelde Jake Pentecost (John Boyega) e a sucateira Amara Namani (Cailee Spaeny) são recrutados para fazer parte de um novo pelotão de pilotos Jaeger, sob a tutela de Nate Lambert (Scott Eastwood). Enquanto uma empresa chinesa estuda a criação de Jaegers "drones", um misterioso ataque de Kaijus faz o mundo entrar em alerta novamente, especialmente para descobrir a origem dos agressores.
No papel, o roteiro assinado por Steven S. Knight (não confudir com Steven Knight, do excelente Locke), Emily Carmicheal, Kira Snyder e T.S. Nowlin traz boas ideias para A Revolta. Um mundo afetado por batalhas gigantescas, destroços de Jaegers e Kaijus por toda a parte, e toda uma mitologia de sucateiros e comerciantes de partes das criaturas... exatamente como em Transformers, Os Vingadores e O Despertar da Força, parando para pensar. Bem, felizmente Knight ao menos aposta em um grupo de personagens diferentes, com o velho papo geracional de passar o bastão para personagens mais jovens, e o dilema de Jake Pentecost em fazer jus ao legado épico de seu pai (Idris Elba, no primeiro filme) é o mais próximo que temos de um arco de personagem, já que todos os outros jogadores são esquecíveis.
O motivo para a volta dos Kaijus é... interessante. É o tipo de ideia que podemos imaginar Del Toro jogando na mesa, e que fazem sentido dentro da lógica e os eventos do antecessor; sendo o tipo de argumento que uma boa sequência geralmente aborda. Porém, a execução é outra história, já que Knight escamba para o ridículo e oferece resoluções absurdas, e falo isso com plena consciência de que a grande inspiração por trás desses filmes são desenhos animados japoneses, sem falar na presença esdrúxula de Charlie Day nesse arco; ninguém parece ter consciência se seu papel deveria ser engraçado ou "assustador", só restando suas cenas com o divertido Burn Gorman para nos trazer lembranças do original.
Só mesmo o carismático John Boyega para sustentar esse grupo sem graça e esquecível, com um sotaque britânico natural e um humor sempre bem-vindo, mas com características que o diferem drasticamente do Finn de Star Wars. E por falar na galáxia muito, muito distante, Cailee Spaeldi se esforça para criar uma versão sisuda de Rey, mas surge tão artificial quanto aquela que Michael Bay tentou nos enfiar goela abaixo no último Transformers. E pobre Scott Eastwood, que parece ter algum carisma escondido ali, mas Hollywood parece ser incapaz de encontrar um bom papel para o filho do lendário Homem sem Nome.
Como diretor, Knight é um desastre. Nenhum momento tem o devido impacto ou construção que poderiam torná-lo memorável, onde o diretor parece apressado e descontrolado, jamais criando momentum. Todas as cenas de ação parecem saídas de uma versão genérica de Transformers, e é aí que vemos a falta que Del Toro faz: não sabemos quais robôs são quais, o que faz cada Kaiju especial, e por aí vai... É tudo amarrotado e enlatado, tornando as intermináveis sequências de batalha uma experiência tediosa, e risível quando Knight aposta em uma câmera lenta súbita para frisar alguns movimentos - e expressões embaraçosas do elenco, claro.
Knight também carece de uma noção de espaço e tamanho, já que os Jaegers nunca parecem realmente ter o senso de escala que o primeiro tinha, além de sua paleta de cores ser muito mais pobre e sem dinamismo do que o anterior, em mais um fator que torna as cenas de ação esquecíveis, e nem mesmo o vibrante tema de Ramin Djawadi - conduzido aqui pelo inimaginativo Lorne Balfe - consegue provocar alguma reação.
Sem a paixão de Del Toro pelo material que o inspirou, Círculo de Fogo: A Revolta soa como uma tentativa patética de tentar obter o mesmo produto de forma enlatada e genérica, conduzido por um grupo "criativo" que falha em entender o que tornou o primeiro tão especial para seu público alvo. Absolutamente dispensável.
Círculo de Fogo: A Revolta (Pacific Rim: Uprising, EUA - 2018)
Direção: Steven S. DeKnight
Roteiro: Steven S. DeKnight, Emily Carmichael, Kira Snyder e T.S. Nowlin, baseado nos personagens de Travis Beacham
Elenco: John Boyega, Scott Eastwood, Cailee Spaeny, Burn Gorman, Charlie Day, Rinko Kikuchi, Tian Jing, Karan Brar
Gênero: Ação
Duração: 111 min
https://www.youtube.com/watch?v=oBvZ89T0dkQ
Crítica | Indiana Jones e a Última Cruzada - A melhor aventura da franquia
Um dos maiores sonhos de Steven Spielberg foi dirigir um filme de James Bond. Na década de 70, quando o agente secreto era algo muito popular, e Spielberg ainda vinha solidificando seu nome, ele enviava diversas cartas à MGM e os Broccoli pedindo para ser contratado para comandar um filme de 007. Seu desejo nunca virou realidade, a criação de Indiana Jones por George Lucas veio até como uma resposta a isso, com ambos os personagens seguindo a fórmula de aventuras episódicas grandiosas com parceiros e interesses amorosos intercambiáveis. Por pura ironia do destino e justiça poética, eis que Spielberg e Lucas inventam de trazer o pai do aventureiro para a terceira - e até naquele momento - derradeira história do arqueólogo, chamando justamente o James Bond original, Sean Connery, para interpretá-lo. A receita dá certo, e não só Indiana Jones e a Última Cruzada é o melhor Indy de todos, mas também um dos filmes mais divertidos já feitos.
Após um inspirado prólogo que nos mostra a juventude de Jones (com a fisionomia do falecido River Phoenix), o agora crescido arqueólogo (Harrison Ford) é chamado ao serviço mais uma vez quando tem a notícia de que seu pai, Henry Jones (Connery) foi capturado por nazistas. Tendo falhado em adquirir a Arca da Aliança, o Terceiro Reich de Adolf Hitler agora parte em busca de uma artefato religioso ainda mais ambicioso: o Cálice Sagrado, o qual Jesus Cristo teria usado na Última Ceia, e que teria o poder de conferir vida eterna a quem beber de sua fonte. Mais uma vez correndo contra o tempo para vencer os nazistas, Indiana Jones conta com o auxílio de velhos aliados para encontrar o artefato, e também trazer seu pai em segurança.
Pai em dose dupla
É um Indy mais próximo de suas raízes. Ainda que tenha feito dinheiro, O Templo da Perdição teve uma arrecadação consideravelmente menor do que Caçadores da Arca Perdida, e também careceu de uma aceitação popular tão grande, o que deve se levar em conta o teor mais adulto e sinistro da segunda aventura do arqueólogo. Com aquela que deveria ser sua despedida, A Última Cruzada traz de volta os elementos vencedores do primeiro filme: nazistas, relíquias bíblicas e um retrato mais detetivesco do ofício da arqueologia, com Indy de fato buscando pistas e formando uma trajetória de investigação; algo que não era muito presente em Templo, que nem mostrava Jones na universidade. Jeffrey Boam entra para escrever o roteiro, e acerta ao manter a mesmíssima estrutura e ainda por cima apresentar o maior e melhor: Indy lutando contra nazistas era bom? Aqui ele fica cara a cara com Adolf Hitler. Luta numa pista de pouso? Indy enfrenta um tanque de guerra e praticamente toda a artilharia alemã. Arca da Aliança era um bom artefato bíblico? Aqui temos O artefato bíblico na forma do Santo Graal, não dá pra ficar maior do que isso.
Mas ainda assim, o grande triunfo do filme é intimista. A relação de pai e filho retratada aqui é uma das melhores que eu já vi em qualquer filme, com os dois Jones garantindo uma experiência divertidíssima, e com sua acertada dose de catarse. Pela primeira vez, vemos Indy se sentindo inferior à alguém, e é justamente por estar constantemente tentando chamar a atenção e conseguir a aprovação de seu velho, que nunca parece muito impressionado com suas peripécias - seu olhar indignado após Indy acertar um nazista com um mastro durante a perseguição de motocicleta, onde o herói está rindo de orgulho de si mesmo é apenas uma das muitas pérolas. Nisso, a química entre Harrison Ford e Sean Connery é incendiária. Poucas vezes me diverti tanto com a mera imagem de dois atores conversando, se olhando ou interagindo é capaz de provocar alguma risada, e a trilha sonora mais leve e graciosa de John Williams traduz bem essa relação.
O grande pecado do filme fica mesmo com os antagonistas, que nem de longe são tão interessantes como os anteriores. Ajuda que tenhamos os nazistas de volta, mas nenhum deles traz alguma característica peculiar ou algo que os tornem memoráveis, dividindo-se entre o oficial de força bruta (Michael Kelly) e o ambicioso Walter Donovan de Julian Glover, praticamente uma versão menos inteligente de Belloq do primeiro filme. A Elsa de Alison Doody também falha em ser uma personagem convincente, com sua lealdade constantemente mudando de posição, não servindo nem como interesse amoroso ou antagonista. Porém, nada disso realmente prejudica o filme, já que ele é todo centrado na relação dos Jones, e estas figuras não ganham tanto tempo de tela. Porém, tratando-se de Indiana Jones, era de se esperar um pouco mais; ao menos Donovan garante uma morte extremamente memorável.
You have directed... Wisely
Como sempre, Steven Spielberg dirige como uma criança apaixonada por seus brinquedos, mas sem nunca perder o estilo. A sequência de abertura já é maravilhosa por nos contar toda a origem de Indiana Jones através de pequenas pistas, como quando o jovem cai numa caixa cheia de cobras, usa o chicote pela primeira vez ou consegue seu icônico chapéu. As cenas protagonizadas por Harrison Ford estão entre algumas das melhores setpieces que o diretor já comandou, que incluem uma intensa perseguição de barcos por veneza, corridas de motocicleta e até batalhas aéreas de dogfight. A sequência com o tanque de guerra também impressiona pela brutalidade e a execução, sem qualquer tipo de efeito visual, e mesmo sendo detalhadamente planejada e desenhada em storyboards por Spielberg, a equipe estendeu as diárias de tal sequência por simplesmente terem novas ideias no processo; dois dias acabaram transformando-se em dez. Em todas essas cenas, temos um trabalho excepcional de montagem do fiel escudeiro Michael Kahn, além de valorizar as manobras dos incansáveis dublês e até mesmo das gaivotas que são usadas para desnortear um avião de caça nazista.
Com o teor mais cômico e de volta às origens "investigativas" do primeiro, essa faceta também se traduz na direção de Spielberg. Seu olho para criar humor com enquadramentos ou movimentos de câmera é invejável, especialmente na cena em que Indy e seu pai estão amarrados em uma cadeira, e acabam encontrando uma válvula na parede que faz a parede girar e levá-los para uma sala de segurança nazista, e as gags visuais com esse dispositivos são realmente inspiradas - e sem precisar inventar piadinhas ou comentários irônicos, atingindo o riso apenas através da imagem. Ainda com esse senso de humor, mas um mais voltado para provocar uma reação mais inteligente no espectador, Spielberg usa truques incríveis para ilustrar a jornada de Indy pelos desafios do Graal, especialmente aquele onde o protagonista é forçado a dar um salto de fé em direção a um abismo, apenas para que uma pequena pan nos mostre que Indy está sobre uma ponte, mas impossível de vê-la por ter a mesma textura das pedras da superfície. O bom e velho efeito do matte painting, empregado com perfeição aqui.
Divertido, engraçado e com uma inesperada carga emocional, Indiana Jones e a Última Cruzada é a aventura perfeita. Não só é o melhor filme do arqueólogo, como talvez seja o melhor filme pipoca que Steven Spielberg já realizou em sua carreira, usando de uma direção inteligente, uma boa história e uma química simplesmente perfeita entre seus dois protagonistas, que podem ser definidos como a real personificação de um raio preso numa garrafa. Um filme glorioso.
Indiana Jones e a Última Cruzada (Indiana Jones and the Last Crusade, EUA - 1989)
Direção: Steven Spielberg
Roteiro: Jeffrey Boam, baseado no argumento de George Lucas e Menno Meyjes
Elenco: Harrison Ford, Sean Connery, Denholm Elliott, Alison Doody, John Rhys-Davies, Julian Glover, River Phoenix, Kevork Malikyan, Robert Eddison, Richard Young
Gênero: Aventura
Duração: 127 min
https://www.youtube.com/watch?v=a6JB2suJYHM
Crítica | Indiana Jones e o Templo da Perdição - Uma aventura sombria
Em 2018, é muito difícil encontrar um fenômeno como aquele onde Os Caçadores da Arca Perdida participou. Um blockbuster assumidamente de aventura e entretenimento pipoca, o filme de Steven Spielberg foi um sucesso de bilheteria, como esperado, mas também surpreendeu ao conquistar diversas indicações ao Oscar - inclusive as de Melhor Filme e Direção, algo que é bizarro de se imaginar hoje em dia, com o Oscar cada vez mais fechado para grandes produções. Esse sucesso avassalador praticamente garantia mais aventuras de Indiana Jones, algo que o próprio George Lucas já devia ter em mente na concepção do roteiro do primeiro filme, e então a Paramount e a LucasFilm deram a luz verde para mais um longa do arqueólogo. O resultado? Indiana Jones e o Templo da Perdição, um filme inesperadamente sombrio, e que acabou por literalmente mudar a história da censura americana.
Pouca gente pega essa informação, mas a trama se passa um ano antes de Caçadores, em 1935, e joga Indiana Jones (Harrison Ford) auxiliando uma vila na Índia a recuperar artefatos sagrados. De acordo com os líderes, as místicas Pedras de Sankara oferecem poderes de fortuna e glória, e um grupo maligno teria roubado as pedras e todas as crianças da vila para servir como escravos, forçando Indy, seu parceiro Short Round (Jonathan Ke Quan) e a cantora Willie Scott (Kate Capshaw) a recuperar os objetos roubados ao adentrar em um misterioso templo.
Cinzas do Divórcio
Na maioria dos casos, a Arte é um reflexo de seu criador. Na década de 80, George Lucas passava por divórcio doloroso com sua então esposa Marcia Lucas (montadora do primeiro Star Wars), e o fim do relacionamento acabou se refletindo no teor mais macabro de O Templo da Perdição que - explodindo as sutilezas - traz um vilão com a habilidade de arrancar corações de suas vítimas, além de raptar e escravizar criancinhas. É uma premissa assustadoramente mais sombria e pesada do que a do anterior, ainda que mantenha os mesmos elementos de aventura matinê, o senso de humor e as cenas de ação divertidas, mas dobra os riscos na ameaça sobrenatural (que conta até mesmo com bonequinhos voodoo) e no peso dramático da história. Tamanha foi a polêmica, que a MPAA (selo de censura americano) literalmente foi forçado a criar uma nova classificação indicativa para o filme, que era pesado demais para um simples PG, mas não podia arriscar a perder seu público com R. Assim, nascia o famoso PG-13, classificação para maiores de 13 anos que hoje encontra-se na esmagadora maioria dos blockbusters e filmes de super-herói.
Sem Lawrence Kasdan retornando, Willard Huyck e Gloria Katz fazem um bom trabalho ao preservar a mesma estrutura e estilo do anterior, com uma memorável sequência de abertura onde Indy protagoniza, literalmente, uma série de tretas em Xangai. Mesmo que o primeiro filme lidasse com o sobrenatural ao abordar um artefato religioso, o texto de Huyck e Katz acaba deixando um pouco de lado o aspecto científico da profissão do arqueólogo, algo que nunca deixou de passar pela cabeça de Indy ao ir atrás da Arca da Aliança, e também o famoso jogo das pistas. O culto dos Tugue aqui é só mais um estereótipo da feitiçaria voodoo, e não seria hipócrita ao criticar esse retrato do filme desse grupo, afinal estamos falando de uma cinessérie matinê que faz os mesmos com todos os seus antagonistas - de nazistas a russos. O problema real é que os Tugues realmente não são muito interessantes como personagens e ameaça, faltando a eles uma profundidade ou uma mitologia mais fascinante, como havia com a Arca no primeiro filme. As ações e o método são algo que ganham mais poderio imagético, e falaremos sobre isso em instantes, mas sem dúvida temos aqui os antagonistas mais fracos da franquia, ainda que Amrish Puri tenha certa presença como o maléfico Molar Ram, líder dos Tugues, e que o banquete no palácio seja algo que pra sempre ficará em minha memória.
Se há algo que a dupla realmente acerta no texto é o trio protagonista. O Indy de Harrison Ford está carismático e divertido como sempre, e aqui o ator tem a oportunidade de explorar uma faceta mais sombria do personagem quando este é enfeitiçado pelos Tugues e forçado a agir como um "soldado zumbi", se rebelando contra seus amigos e auxiliando os sacerdotes de Mola Ram. Sua dinâmica com o pequeno Jonathan Ke Quan é divertidíssima, e o jovem vietnamita rouba a cena como o parceiro mais "espertinho" de Indy até então, e é realmente tocante ver os dois se reparando após o protagonista sair do feitiço voodoo. E bem, a Willie de Kate Capshaw é de longe a mocinha mais sem graça da franquia, e não ajuda que a personagem passe boa parte de seu tempo de cena gritando histericamente, mas sua presença ajuda a manter o equilíbrio no conjunto dos três personagens.
Um cineasta literalmente apaixonado
No que diz respeito a direção, sempre encontraremos um trabalho de qualidade quando o nome de Steven Spielberg vem marcado nos créditos. Ainda que tenham se passado três anos desde o lançamento de Caçadores, o diretor se mostra tão animado e apaixonado pelo material como no primeiro filme (além, claro, de Capshaw, atriz com quem o diretor é casado até hoje). A cena de abertura em Xangai já mostra sua inteligência com a câmera ao acompanhar a negociação de Indy com o mafioso Lao Che (Roy Chiao) em uma mesa de jantar onde um prato rotatório vai girando entre os participantes, e Spielberg discretamente mantém o mesmo plano, acompanhando cada movimento do dispositivo, enquanto o arqueólogo e Che trocam um diamante por uma relíquia chinesa.
A sequência termina com tiroteiros, Indy envenenado e uma perseguição de carro pelas ruas apertadas de Xangai, tudo isso com um trabalho excepcional de dublês, bonecos de borracha e o humor discreto e não-verbal sempre muito bem-vindo - como quando pedaços de gelo se espalham pelo chão, dificultando o trabalho dos personagens em encontrar o diamante perdido, ou a segurança de Indy zombar de Lao Che ao escapar em um avião, apenas para que este feche a porta logo em seguida e o espectador veja em letras bem grandes que a aeronave é propriedade do mafioso. E já que falei de senso de humor discreto, impossível não destacar o clássico momento em que Indy escapa por pouco de uma porta fechando, mas recupera seu chapéu caído nos últimos segundos, ou o inteligente callback para Caçadores quando o herói é cercado por dois espadachins, que imediatamente exibem suas habilidades. Indy faz a mesma cara de desprezo e cansaço do primeiro filme, com sua mão já indo em direção à pistola, mas dessa vez o coldre está vazio. O tipo de sacada que sempre enriquece uma sequência, ou, neste caso, um prequel.
O nível das cenas de ação se mantém aqui, ainda que Spielberg não aposte em armas pesadas como aeronaves, cavalos ou grandes locações no deserto. Aqui, o diretor explora muito bem os ambientes disponíveis, desde o já comentado embate em Xangai até todas as cenas envolvendo o templo do título. Em especial, a corrida dos carrinhos de mina é daquelas sequências que ganham vida graças à visão dinâmica do diretor, que oscila entre enquadramentos POV dos personagens percorrendo uma verdadeira montanha russa, e planos espetaculares que revelam a grande espacialidade do set, e também a aproximação dos carrinhos dos inimigos. O clímax é outra grande set piece do longa, com Spielberg utilizando planos bem abertos e pouca música para retratar Indy sendo encurralado por soldados Tugue em uma frágil ponte de madeira pendurada entre dois penhascos - uma imagem clássica dos matinês -, sendo o mais próximo de um faroeste que Indiana Jones já chegou. O desfecho impressiona pela ideia ousada do herói, e também pelo fato de percebermos que a equipe realmente derrubou aquela pequena construção de madeira, e a execução e queda dos dublês ali é algo que ainda faz meu queixo cair.
No que diz respeito aos valores de produção, temos alguns dos mais poderosos exemplares de design de produção e fotografia da saga. O trabalho de Elliot Scott no set do templo de cerimônias é simplesmente fantástico, com as estátuas amedrontadoras e as pedras pontiagudas surgindo de ambos os extremos do quadro, representando literalmente o Inferno na Terra. Com o fogo das tochas e do grande buraco de magma onde as vítimas são jogadas sendo o elemento mais forte de tais cenas, o diretor de fotografia Douglas Slocombe trabalha muito com um vermelho fortíssimo, já oferecendo algo radicalmente diferente do original e que adequa-se à natureza demoníaca daquele ambiente. Até mesmo John Williams oferece uma virada mais soturna para sua trilha sonora, com cantos cerimoniais, uma óbvia inspiração indiana e um coral onírico para representar o poder Sankara; mas sem nunca deixar a leveza de lado, mantendo a marcha dos Caçadores e acrescentando o maravilhoso tema de Short Round à seu leque de peças memoráveis.
Mais sombrio e fantasioso do que o anterior, O Templo da Perdição é mais uma aventura eficiente e, mesmo com todas as trevas, divertida do famoso arqueólogo. Falha em construir uma mitologia fascinante e envolvente como no anterior, mas não decepciona no estilo, na ação e no carisma de seus personagens. E mais do que isso, não tem medo de explorar facetas diferentes desse universo delicioso.
Indiana Jones e o Templo da Perdição (Indiana Jones and the Temple of Doom, EUA - 1984)
Direção: Steven Spielberg
Roteiro: Willard Huyck e Gloria Katz, baseado no argumento de George Lucas
Elenco: Harrison Ford, Kate Capshaw, Jonathan Ke Quan, Amrish Puri, Phillip Stone, Roy Chiao, Roshan Seth
Gênero: Aventura
Duração: 118 min
https://www.youtube.com/watch?v=HOwWfns4qqw
Crítica | Tomb Raider: A Origem - O primeiro filme decente baseado em games
O histórico de adaptações de videogames para as telas talvez seja a equação mais problemática que Hollywood tenta resolver. Entre títulos como Super Mario Bros, os dois Mortal Kombat, Street Fighter, Silent Hill, Hitman, Max Payne, Príncipe da Pérsia, Warcraft: O Primeiro Encontro entre Dois Mundos e Assassin's Creed, a aceitação desse tipo de projeto tem sido de ruim para "muito ruim", assim como o nível de qualidade baixíssimo dessas obras - por mais que Resident Evil tenha se mantido por quinze anos e seis filmes, todos concordam que a franquia de Paul W.S. Anderson não é exatamente boa, e traz apenas a marca da franquia da Capcom como identificação com o produto original.
Mas Hollywood não parece querer desistir. Novos projetos como Uncharted, Call of Duty e até um reboot de Resident Evil estão em desenvolvimento, e a aventureira Lara Croft é a mais nova aposta em finalmente acertar o código dos consoles nas telas. Já tendo ganhado duas aventuras tenebrosas protagonizadas por Angelina Jolie na década passada, Croft agora ganha vida nova com as formas de Alicia Vikander neste Tomb Raider: A Origem, que parece mais interessado em habitá-la em um universo realista e sombrio, mais próximo do último reboot da personagem nos games. O resultado, ainda que não quebre nenhuma convenção ou reinvente o jogo, é um filme decente e que pode facilmente carregar o título de melhor adaptação de games já feita.
A trama nos apresenta a uma Lara Croft em início de carreira (como o dispensável subtítulo nacional nos entrega), onde a jovem se recusa a assinar os papéis de herança deixado por seu pai, Richard (Dominic West), desaparecido há 7 anos e dado como morto por todos aqueles a seu redor. Com uma fagulha de esperança de poder encontrá-lo, Lara encontra pistas da obsessão de seu pai pela antiga rainha japonesa Himiko, que o teria levado a uma expedição desastrosa a uma ilha misteriosa. Seguindo seus passos, Lara organiza sua própria jornada para localizá-lo, colocando-a na mira de uma organização internacional conhecida como a Trindade, interessada nos supostos poderes sobrenaturais dos restos mortais de Himiko.
Menos é Mais
Simplicidade é a chave para a execução bem sucedida de Tomb Raider. Roteirizado pela estreante Geneva Robertson-Dworet (já escalada para escrever Capitã Marvel e Dungeons & Dragons) e o novato Alastair Siddons (em sua segunda investida como escritor), a dupla não parece interessada em explorar uma grande e complexa mitologia ou deixar o terreno pronto para mais uma dúzia de filmes e universos compartilhados, mas sim contar uma boa história de forma isolada. A própria personagem já se beneficia desse estilo mais convencional, sendo uma das inúmeras respostas ao personagem de Indiana Jones, então não é muito difícil que Dworet e Siddons encontrem inspiração temática e estrutural na série de filmes protagonizados por Harrison Ford: há um macguffin sobre o qual toda a trama gira em torno, mas temperado com uma pesada subtrama emocional sobre Lara ansiando por encontrar seu pai, algo que acaba rendendo alguns diálogos capengas aqui e ali, mas que funciona consideravelmente bem; e se os flashbacks da infância da jovem com o pai geralmente são um recurso barato de aprofundamento, aqui servem para oferecer pistas sobre a habilidade da jovem em arco-e-flecha e outros foreshadowings.
Claro, não é um roteiro perfeito. A jornada emocional de Lara teria sido muito mais interessante e recompensadora caso uma reviravolta importante não ocorresse no segundo ato, e que acaba concretizando elementos que funcionariam muito melhor em uma escala metafórica, e não literal. Todo o núcleo da ilha central também carece de bons personagens e arcos, com Walton Goggins surgindo com um vilão que começa com uma boa premissa -a de sair daquele local e reunir-se com sua família, espelhando a jornada de Lara - mas que acaba sem algum tipo de desenvolvimento, subjulgado ao coadjuvante de luxo. De forma similar, há uma questão com todos os trabalhadores escravizados pelo vilão, e que planejam uma fuga liderados pelo parceiro de Lara, vivido por um carismático Daniel Wu, mas que jamais ganham alguma cena para que possamos ao menos conhecê-los - e a própria amizade de Wu com Lara é algo que surge grosseiramente acertado, mas que eu gostaria de rever em possíveis continuações.
É um tanto decepcionante, também, que Dworet e Siddons não abracem o "full Indy" na resolução do macguffin, que poderia muito bem ser algum tipo de elemento sobrenatural como os espíritos da Arca da Aliança ou o alienígena de O Reino da Caveira de Cristal, mas a dupla prefere manter o pé em algo mais "crível", mesmo que a solução encontrada ainda carregue um elemento difícil de se acreditar, justamente por estar em um universo realista. Curioso pensar que monstros ou outras entidades místicas seriam mais fáceis de comprar do que a invenção macarrônica da dupla aqui, mesmo que esta venha temperada por diversas narrações em off e flashbacks que tentam justificá-la. Claro, isso faz parte da decisão da trama em não trazer uma mitologia complexa e que estourasse pelo absurdo em sua conclusão, mas não deixa de ser um clímax um tanto esquecível.
Renasce uma Sobrevivente
Mas se Tomb Raider funciona, muito se deve a Alicia Vikander. É um papel apetitoso para qualquer atriz, especialmente na nova onda de girl power e franquias de ação protagonizadas por mulheres, vide os sucessos de Mulher-Maravilha, Atômica e a nova trilogia de Star Wars, e a oscarizada atriz sueca vale cada segundo. Sua Lara é carismática, mas ainda longe da figura forte e destemida que os gamers da velha guarda podem estar acostumados a ver, se aproximando bastante - novamente - do reboot lançado em 2013, com a personagem falhando, se machucando e encontrando força a partir da derrota. Vikander traz todo senso mais adolescente e imaturo de Lara em cenas bem humoradas, e sem soar forçada, assim como seu espírito aventureiro - como ao aceitar participar de uma corrida de rua, mas também entrega seu melhor nos momentos mais intimistas, especialmente naqueles envolvendo o razoável Dominic West.
E, claro, é possível notar um comprometimento físico notável por parte da atriz, que logo em sua primeira aparição já está recebendo jabs violentos no rosto, e exibe um abdômen definido que certamente foi fruto de um processo árduo e exigente; aparentemente, os personal trainers dos filmes de Zack Snyder ainda habitam os estúdios da Warner Bros, e felizmente o corpo de Vikander nunca ganha uma sexualização ofensiva, já começando pelo fato de a personagem fugir do velho clichê da mocinha usando shorts apertados em uma floresta tropical - em mais uma herança do game de 2013.
Onda Norueguesa
Em uma escolha incomum para grandes produções do gênero, a Warner escolheu o cineasta norueguês Roar Uthaug, responsável pelo bem-sucedido A Onda (mas não aquele que imediatamente vem à mente) e que encara seu primeiro trabalho nos EUA de forma competente. Ainda que careça de efeitos visuais perceptíveis para criar um ambiente perigoso ao redor da atriz - árvores, cachoeiras e tempestades - Uthaug é eficiente em criar o perigo e a geografia das cenas de ação, como o suspense de ter Lara caminhando pela asa de um avião tombado em uma cachoeira (onde o design de sonoro é particularmente eficaz) ou na forma como sua câmera explora as diferentes possibilidades de um ambiente, vide a divertida corrida de bicicletas em Londres, nos lembrando imediatamente da mecânica de um videogame; em uma forma sutil de manter a linguagem do console sem se prender diretamente a ele. Uthaug também surpreende pela brutalidade de alguns combates, como na cena suja e enlameada onde Lara mata um homem pela primeira vez, e a lente do diretor capta um momento que surge incômodo e marcante para a protagonista.
Tomb Raider: A Origem é facilmente a melhor, ou pelo menos mais decente, adaptação que um game já teve para os cinemas - o que não é dizer muito se compararmos com o que veio antes. Não é um grande filme e nem traz nada de novo, mas pelo menos consegue contar uma boa história sem fracassar, atentando-se ao básico e confiando no carisma imenso de sua talentosa protagonista. Não é o tipo de filme que o gênero de games merece, mas é exatamente do que ele precisa agora.
Tomb Raider: A Origem (Tomb Raider, EUA - 2018)
Direção: Roar Uthaug
Roteiro: Geneva Robertson-Dworet e Alastair Siddons
Elenco: Alicia Vikander, Dominic West, Walton Goggins, Daniel Wu, Kristin Scott Thomas, Derek Jacobi
Gênero: Aventura
Duração: 118 min
https://www.youtube.com/watch?v=gvS1jR7Bdlg
Crítica | Aniquilação - Um Filme feito para ver nos Cinemas
Alex Garland é um nome que rapidamente vem se fincando como um dos mais interessantes na Hollywood contemporânea. Após uma carreira sólida como roteirista em longas de Danny Boyle como Extermínio, A Praia e Sunshine: Alerta Solar, Garland estreia como diretor no fantástico Ex Machina: Instinto Artificial, longa original que oferecia uma abordagem inovadora para conceitos já explorados diversas vezes no gênero - recebendo até mesmo atenção da Academia ao ser indicado e premiado com alguns Oscars. Naturalmente, as atenções do público e da indústria se voltam para Garland quando este anuncia a adaptação de Aniquilação como seu próximo projeto, já com um orçamento e elenco estelar. Com toda essa pressão, não é surpresa que o longa sophmore de Garland fique abaixo de sua estreia, mas também mantém o nível de sua execução.
A trama adapta o primeiro livro da trilogia Southern Reach, de Jeff VanderMeer, centrando-se em um estranho fenômeno que rapidamente vai se alastrando em uma floresta americana: luzes fortes como uma aurora boreal irradiando, sem qualquer explicação, e que foi se alastrando ao longo de três anos após ter se iniciado em um faroleiro. Todas as equipes enviadas para investigar a origem de seu acontecimento simplesmente desapareceram no interior da floresta, com apenas o soldado Kane (Oscar Isaac) retornando gravemente ferido. Então, sua esposa cientista, Lena (Natalie Portman) se junta a um novo grupo, formado apenas por mulheres, para adentrar na floresta e descobrir sua origem.
Em muitas maneiras, Aniquilação parece um híbrido de diversos filmes do gênero. Traz elementos de A Ilha do Dr. Moreau no que diz respeito à mistura de diferentes DNAs, aposta na estrutura não linear e na investigação científica vista no recente A Chegada e também aposta no mesmo tipo de onírico e surreal que marcaram presença no clássico 2001: Uma Odisseia no Espaço e no esquisito Sob a Pele; aliás, provocar a estranheza será algo no qual Garland será particularmente eficiente aqui. Dessa forma, o roteiro de Garland não é dos mais originais, e o fato de tomar tanto emprestado do longa de Denis Villeneuve - que tem meros dois anos de lançamento - é algo que reforça o sentimento de deja vu, seja na áurea misteriosa do governo e cientistas em torno do evento, seja pelo protagonismo feminino; aqui, louvável por ser uma equipe formada inteiramente por mulheres.
Tal decisão garante um elenco fantástico, com a sempre excelente Natalie Portman liderando a equipe que traz ainda as ótimas Tessa Thompson, Jennifer Jason Leigh, Tuva Novotny e Gina Rodriguez - ainda que esta última acabe dando vida ao tipo de personagem que Michelle Rodriguez está acostumada a interpretar, sendo uma coincidência gigantesca que ambas as atrizes não sejam relacionadas. Porém, o roteiro de Garland tem sua parcela de problemas. Diversos diálogos pecam pela exposição exagerada e a autorreferência, como se estive dando um tapinha em suas próprias costas por trazer uma equipe feminina, quase remetendo ao reboot de Caça-Fantasmas. Acaba ficando pior quando o texto claramente subestima o espectador ao oferecer falas expositivas e clichês, como quando a cientista de Tessa Thompson atesta que aquele ambiente "tem DNA de plantas, o DNA de animais... Todos os DNAs", apenas para que Rodriguez pergunte "do que ela está falando?" e Leigh obviamente responda com "DNA humano".
Mesmo com esses deslizes na forma como suas personagens comunicam-se, o que jaz sob a superfície de Aniquilação, assim como o quadro gerald de sua narrativa, é algo impressionante. Estamos diante de mais um longa que vai provocar discussões e teorias sobre sua conclusão, que precisam ser discutidas detalhadamente para fazerem sentido, com espaço para análises sobre o suicídio, o casamento e uma questão ambiental.
Como diretor, a transição de Garland continua admirável. Os momentos de silêncio e estranheza de Ex Machina se preservam aqui, com o diretor agora mirando uma atmosfera pesada e incômoda, onde o medo do desconhecido toma conta da narrativa. Visualmente, novamente vemos seu apreço por cores pouco contrastadas, que facilitam o uso de efeitos visuais de apoio muito eficientes, mas que aqui soam artificiais pelo sobreuso: alguns animais e criaturas acabam parecendo falsos demais, ainda mais quando toda a violência e o gore começam a pipocar, já que elementos reais e CGI acabam por não se mesclar com verossimilhança.
A exceção, nesse quesito, fica por conta do assustador momento em que a equipe encontra uma gravação em vídeo deixada pelo último pelotão desaparecido. É uma cena tenebrosa, e que não seria exagero de ser comparada com o famoso momento do chestburster em Alien, O Oitavo Passageiro; é o mesmo nível de tensão, terror e surpresa, com a trilha sonora apavorante de Geoff Barrow e Ben Salisbury nos agarrando pelos ouvidos e sendo bem sucedida em nos deixar gelados de pavor; algo que a performance assustada de Oscar Isaac, com um olhar que transparece o desespero de um homem em tentar registrar aquele momento, na esperança de que outros vejam o que ele está vendo, comprovando sua lucidez, também acaba merecendo grande parcela do impacto.
É uma combinação vencedora, a de Garland e sua dupla de compositores, e que ajuda a tornar o terceiro ato de Aniquilação um dos momentos mais inspirados que a ficção científica recente já teve no cinema americano, e que faz valer a visita ao longa. Os corais sombrios da dupla lembram muito a sinistra música de O Iluminado, e a maneira como Garland apresenta a grande "solução" do mistério é muito inventiva. Assim como David Lynch fez tão bem na nova temporada de Twin Peaks, Garland aposta em conceitos visuais que parecem bregas e risíveis à primeira vista (algo refletido, novamente, nos efeitos visuais medianos), mas que vão tornando-se profundamente perturbadores e incômodos à medida em que sua câmera insiste em enquadrá-los. A psicodelia também é outra característica forte no clímax, e que também remete ao estilo de Lynch, mas aproximando-se novamente de Kubrick em 2001.
No fim, Aniquilação é um bom filme que explora conceitos fascinantes de forma inspirada, mesmo que traga diversos clichês e algumas escorregadas em sua concepção visual. Porém, em seus momentos mais gloriosos, o longa certifica que o acerto de Garland em Ex Machina não foi acidente, comprovando que é um dos nomes mais promissores do momento.
Aniquilação (Annihilation, EUA - 2018)
Direção: Alex Garland
Roteiro: Alex Garland, baseado na obra de Jeff VanderMeer
Elenco: Natalie Portman, Jennifer Jason Leigh, Tessa Thompson, Oscar Isaac, Gina Rodriguez, Tuva Novotny, Benedict Wong
Gênero: Ficção Científica
Duração: 115 min
https://www.youtube.com/watch?v=89OP78l9oF0
Crítica | Ex Machina: Instinto Artificial - Ficção científica pura
Quando assisti a Ela, novamente me dei conta de que as relações humanas vêm se transformando com o advento da tecnologia, seja no desenvolvimento de recursos quanto ao convívio do Homem em sociedade. O cinema de ficção científica vinha prevendo diversos tipos de distopias e utopias, e a inteligência artificial sempre esteve ligada a uma imagem mais antagonista, certamente um fruto da paranoia da Guerra Fria dos anos 50 ou a antecipação pelo Bug do Milênio no ano 2000. Mas numa época em que smartphones se transformaram nos nossos melhores amigos, o Cinema tem brincado com a ideia de uma relação afetiva entre Homem e máquina, notavelmente no romântico filme de Spike Jonze e agora no excelente Ex Machina: Instinto Artificial, imperdível sci-fi lançado diretamente para DVD.
A trama começa quando o programador Caleb (Domhnall Gleeson) é selecionado para trabalhar num projeto especial de sua empresa. Movido para a reclusa e luxuosa moradia do CEO Nathan (Oscar Isaac), Caleb descobre que seu chefe criou uma avançada forma de inteligência artificial: a andróide Eva (Alicia Vikander). Ali, o jovem deverá testar a capacidade da máquina de se passar por um humano (como no Teste de Turing) sendo lançado num perigoso jogo de duplas intenções.
Este é o filme de estreia do diretor Alex Garland, que já havia cuidado de roteiros como O Extermínio, Sunshine, Não Me Abandone Jamais e o bem-sucedido reboot de Dredd, além de também ser o responsável pelo texto original de Ex Machina. E é admirável ver uma ficção científica tão desafiadora em sua temática. As sessões entre Caleb e Eva são fascinantes de se observar, graças à habilidade de Eva de demonstrar ideias e pensamentos tão complexos para uma máquina, e vê-la subvertendo os papéis com o programador humano é instigante. A revelação de que Eva tem instalada em si uma certa sexualidade é o aspecto mais interessante (“Como um mágico que usa uma assistente gostosa para distrair o público?”, questiona Caleb para Nathan), e o que move a relação entre Caleb e a máquina para algo mais complexo. Se Ela era de fato um romance que abusava do lirismo para ilustrar o afeto do homem pela máquina, Ex Machina é ficção científica na veia, sendo muito mais eficiente na forma com que lida com o tema.
Garland cria imagens altamente memoráveis aqui, especialmente ao fazer robôs sensuais sem parecer que estamos assistindo a uma paródia pornô. A novata atriz sueca Alicia Vikander domina cada minuto de cena, não só por sua hipnotizante performance que traz os sutis indícios de humanidade, mas também pela construção de seu corpo; cuja mistura de materiais e ausência de membros indica uma criação ainda incompleta. O design de produção também acerta na criação da casa de Nathan, dominada pelo cinza e por uma arquitetura que parece sugerir mais um laboratório ilegal ou uma prisão experimental, literalmente confinando o confuso Caleb em suas paredes de vidro.
Outro grande destaque fica com Oscar Isaac, que vem rapidamente se mostrando como um dos atores mais talentosos da atualidade. Quando pensamos em um ricaço cientista inventor de robôs inteligentes, não é a imagem de um barbudo atlético e de fala jovial como o Nathan de Isaac, que em sua primeira aparição já surge praticando boxe, revelando que o exercício físico é tão importante quanto o mental para Nathan. Seu alcoolismo também é lidado de forma sutil, como seu silêncio confuso quando Caleb pergunta “como teria sido a festa”, a fim de justificar a ressaca que tenta curar – além de ser um importante detalhe que servirá para uma das reviravoltas.
Ex Machina: Instinto Artificial é uma inteligente e questionadora ficção científica, capaz de iniciar um instigante debate sobre a evolução da inteligência artificial e sua relação com o Homem. Um baita começo para Alex Garland, que desde já mostra-se uma aposta promissora.
Ex Machina: Instinto Artificial (Ex Machina, 2015 – Inglaterra)
Direção: Alex Garland
Roteiro: Alex Garland
Elenco: Domhnall Gleeson, Alicia Vikander, Oscar Isaac, Sonoya Mizuno
Gênero: Ficção Científica
Duração: 108 min
https://www.youtube.com/watch?v=sNExF5WYMaA
Crítica | Walt nos Bastidores de Mary Poppins - Uma doce romantização
Nos últimos 4 anos, Hollywood tem se mostrado fascinada em entregar produções sobre os bastidores de… outras produções. Seja por falta de ideias ou genuíno interesse pelas personalidades que se transformam em objetos de estudos por novos cineastas, o “gênero” nos trouxe, para citar exemplos recentes, obras como Sete Dias com Marilyn, A Garota, Hitchcock e agora Walt nos Bastidores de Mary Poppins, longa de John Lee Hancock (de Um Sonho Possível) que certamente se revela o melhor da safra.
A trama é centrada na tentativa de Walt Disney (Tom Hanks, que casting genial) de convencer a escritora australiana P.L. Travers (Emma Thompson) a lhe ceder os direitos para a adaptação cinematográfica do cultuado romance Mary Poppins. Em meio às inúmeras divergências que Travers enfrenta com o produtor para garantir o tom apropriado ao filme, acompanhamos detalhes-chave de seu passado que a inspiraram a criar a história.
Para começar, vamos tirar o elefante da sala e falar sobre a tradução pavorosa que a Disney forneceu ao filme no Brasil… “Walt” “Nos” “Bastidores” “de” “Mary Poppins”. Compreendo o… er, apelo “comercial” que o título oferece, mas ele nem de longe faz jus à complexidades e significado que o original (“Saving Mr. Banks”, “Salvando o Sr. Banks”) confere à narrativa. Inicialmente, condenei a decisão do roteiro de Kelly Marcel e Sue Smith em persistir na trama paralela que se concentra no passado de Travers, mas graças à boa condução de Hancock e a montagem de Mark Livolsi, esta caminha com a mesma consistência da principal – e se complementam de forma belíssima, ainda que óbvia, ao resolver a questão do “Sr. Banks”, que envolve flashbacks da infância de Travers onde um inspirado Colin Farrell interpreta sua problemática figura paterna.
Claro que há muita ficção aqui, muita. P.L. Travers tinha um filho (ao contrário do que o filme diz), já tinha concedido os direitos de adaptação quando chegou em LA (um dos grandes dilemas da narrativa é se Travers vai, ou não, concedê-los), não era tão caricatural quanto a divertida performance de Emma Thompson sugere e tampouco se agradou com o resultado final de Mary Poppins. Travers não saiu dançando de alegria com uma canção específica e nem teve a companhia do criador de Mickey Mouse na Disneylândia. Mas, mesmo que gritantemente impreciso em questões históricas, o filme de Hancock consegue agradar, oferecendo um catártico estudo de personagem sobre a Travers que suas roteiristas “inventaram”. Hancock tem a mão pesada, aposta em diversos momentos apelativos… e funciona, estranhamente. A tal sequência em que a escritora dança com os irmãos Sherman (Jason Schwartzman e B.J. Novak) é espetacular, de fazer o próprio espectador levantar e sair dançando.
Fidelidade aos fatos não faz de uma obra necessariamente ruim. Nem de longe é minha intenção comparar o grau de qualidade dos dois filmes, mas Amadeus também passava longe dos livros de História em pontos cruciais, algo que não afeta seu maravilhoso resultado final. E o mesmo se repete com Walt nos Bastidores de Mary Poppins.
Walt nos Bastidores de Mary Poppins (Saving Mr. Banks, EUA - 2013)
Direção: John Lee Hancock
Roteiro: Kelly Marcel e Sue Smith
Elenco: Emma Thompson, Tom Hanks, Colin Farrell, Paul Giamatti, Ruth Wilson, Jason Schwartzman, B.J. Novak, Victoria Summer
Gênero: Drama
Duração: 125 min
https://www.youtube.com/watch?v=9L6UI5UsgpE