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Artigo | A História Real de Dunkirk

Ao caminhar pelas ruínas do Forum em Roma, observar o imponente Arco do Triunfo em Paris, ou mesmo ao passear pelas antigas ruas do Centro Histórico de Ouro Preto, é quase impossível não se sentir admirado e assombrado pelo peso da História que lugares tais como estes carregam. Infelizmente, por conta da sangrenta história da Europa, em muitos destes lugares marcantes o peso é devido às marcas da guerra – morte, sangue, sacrifício e horror. Nossas mentes estão repletas de imagens da Segunda Guerra Mundial. Devido ao escopo e escala deste horrendo conflito, os filmes, livros, fotos e reportagens frequentemente nos lembram de épicas batalhas deste conflito, especialmente das atuações dos EUA nos Teatros da Europa Ocidental e do Pacífico.

No entanto, se caminhássemos pelas pálidas e plácidas praias de Dunquerque, é possível que passássemos despercebidos do peso da História que este lugar carrega. Talvez por se passar no período anterior à entrada dos americanos no conflito e por não ser a típica história de guerra – uma desesperada evacuação em vez de uma corajosa ofensiva – o milagre de Dunquerque (como ficou conhecido o evento) é um dos mais marcantes e importantes eventos da Segunda Guerra Mundial. Fosse seu resultado diferente do que ocorreu, certamente estaríamos hoje num mundo bem diferente.

Motivados pela estreia de Dunkirk, novo filme do bem-sucedido diretor Christopher Nolan que vem recebendo inúmeros elogios da crítica e promete dar uma nova visão à pouco explorada história das areias de Dunquerque, nós do Bastidores decidimos mergulhar na história desse capítulo da Última Grande Guerra.

CONTEXTO HISTÓRICO

Após anos de tensão e de construir uma ideologia baseada no ódio revanchista, Hitler está preparado. Magistralmente, fez tudo ao seu alcance para contaminar o povo alemão com suas ideias distorcidas e levantou moral, financeira e militarmente uma nova sociedade, um novo paradigma de Alemanha que chama de Terceiro Reich. Suas ultimas ações lançaram a Europa à beira do abismo da guerra inevitável. Inglaterra e França assistiram impassíveis a anexação da Áustria e dos Sudetos, na esperança de evitar o pior. Mas quando Hitler audaciosamente invade a Polônia em 1939, não há mais escapatória, fica evidente que o Terceiro Reich só vai parar quando consumir toda a Europa Ocidental. A Europa está mais uma vez em guerra.

No entanto, mesmo após a declaração de guerra da França e Inglaterra, nada acontece. Durante quase um ano, entre 1939 e 1940, a guerra estava lá, mas não havia combate, estávamos no que mais tarde ficou conhecida como “Guerra de Mentira”. Numa atrasada e irresponsável ilusão, os Aliados aguardavam atrás do que julgavam ser um escudo impenetrável – a Linha Maginot – de fato uma defesa formidável, mas contra exércitos do Séc. XIX. Esperando uma nova invasão pela Bélgica à maneira da Primeira Guerra, as Forças Expedicionárias Britânicas (BEF), o Exército Francês e forças aliadas de Canadá, Bélgica e outros países ficaram chocadas quando Hitler invade pelo sul.

No antebellum, os estudiosos e inventivos generais alemães desenvolveram um novo paradigma de Guerra, a Blitzkreig. E Hitler decidiu empregar este método nos insuspeitos Aliados, quebrando qualquer resistência debaixo das esteiras de suas divisões mecanizadas Panzer. Quando Churchill substitui o inepto Chamberlain como Primeiro Ministro da Inglaterra, em 10 de Maio de 1940, o cenário já é catastrófico. Os Exércitos A e B de Hitler, sob o comando dos Generais Fedor von Bock e Gerd von Rundstedt devastaram a Bélgica, e Holanda, não fizeram caso da Linha Maginot e encurralaram a BEF e boa parte do Exército Francês num corredor estreito até a costa. Os demais soldados franceses, isolados à oeste, mais tarde veriam Hitler posar para fotos diante da Torre Eiffel em junho de 1940.

Se mantivessem o ritmo, convergindo para à costa em Dunquerque, os alemães aniquilariam a BEF e os demais aliados, e apontariam seus rifles para o que pareceria então uma frágil costa inglesa do outro lado do Canal da Mancha. Os Britânicos chegam a falar em rendição incondicional. Seria o fim.

Mas, numa inexplicável e surpreendente virada nos eventos, os exércitos A e B não avançam. Berlin envia uma “Ordem de Parada” para as forças invasoras na França, que por três dias não avançam um metro sequer em direção aos Aliados encurralados. Sem saber, os alemães abriram espaço para o improvável, e deram a oportunidade para o Milagre de Dunquerque, o foco do novo filme de Nolan.

OPERAÇÃO DÍNAMO

A Operação Dínamo talvez seja um ponto de virada fundamental que muitas vezes é ignorada pelas aulas de História sobre a Segunda Guerra Mundial. Sem condições de resgate, os 400.000 homens encurralados em Dunquerque não guardavam esperanças de serem salvos.

O mistério apontado sobre a pausa do avanço nazista pode ser respondido pela promessa de Hermann Goring que conseguiria fazer a Inglaterra se render apenas com o extermínio dos homens através da poderosa força aérea alemã: a Luftwaffe.

Mas obviamente não foi isso que aconteceu. Em 26 de maio de 1940, o Ministro da Guerra britânico, Anthony Eden, deu as ordens para que a retirada acontecesse imediatamente. Diversos generais e figuras importantes da Guerra não acreditavam que seria possível o sucesso do resgate por conta dos bombardeios intensos da Luftwaffe no local, massacrando diversos soldados acuados na praia.

O deslocamento que seria visto então seria algo sem precedentes. Até hoje, a Operação Dínamo é a maior de resgate feita em toda a História. A evacuação começa de fato no dia 27 com a participação de um cruzador, oito destroieres e outras 26 embarcações. Um chamado emergencial foi expedido: toda a ajuda aliada seria bem-vinda. E os modestos cidadãos ingleses atenderam ao chamado.

Apenas no dia 31 de maio, cerca de 400 embarcações civis cruzaram o Canal da Mancha em busca de salvar a vida de seus conterrâneos. No mesmo dia, a Luftwaffe bombardeou intensamente a cidade ainda com a presença de civis. Cerca de 1000 pessoas morreram nesse dia. Como o suprimento de água foi explodido, os incêndios provocados pelas bombas não puderam ser extinguidos tornando a situação ainda mais insuportável para os homens que ainda não tiveram a sorte de serem evacuados.

Para combater a força aérea alemão, a RAF foi convocada. Cerca de 3500 aeronaves partiram para a batalha, mas como o conflito estava concentrado no centro do Canal, muitos bombardeios alemães nas praias foram bem-sucedidos. Isso marcou uma ferida psicológica nos homens acuados em Dunquerque, acreditavam que a força aérea britânica nada estava fazendo para ajudar. A verdade é que sem os esforços constantes da RAF naqueles dias, muitos mais teriam sido exterminados pelas bombas aéreas da Luftwaffe.

No dia 28 de maio houve um enorme revés para o cerco de proteção em Dunquerque. O exército belga se rende, deixando um furo gigantesco no bloqueio leste. Para preencher o vazio, foram ordenadas que diversos soldados ingleses retornassem ao posto para repelir forças terrestres nazistas. Nessa altura, o perímetro era de 11km em terreno pantanoso, uma verdadeira sorte para ajudar a impedir a travessia dos Panzers nazistas.

Com as docas e portos totalmente destruídos pela Luftwaffe, o Capitão William Tennant ordenou que duas estruturas rochosas naturais que se estendiam até uma boa distância da praia fossem utilizadas como molhes. Através deste improviso que mais de 220 mil homens conseguiram ser evacuados. Nas embarcações civis, menores, que chegavam até a proximidade da praia, quase 100 mil foram salvos.

Mas os custos também foram altos para que o milagre fosse realizado. Para firmar o perímetro, 68 mil soldados foram mortos na blitzkrieg até a ordem de hiato. Durante a evacuação, 3.500 morreram e outros 13 mil ficaram feridos. Não só o custo humano foi drástico. As perdas em maquinário e explosivos foram severas para a reserva do exército britânico. Foram abandonados mais de 2 mil rifles, 20 mil motocicletas, 65 mil veículos diversos, 68 mil toneladas de munição, 147 mil toneladas de combustível e quase todos os 445 tanques enviados para a França se perderam.

Para cada sete soldados resgatados, ao menos um se tornou prisioneiro dos nazistas. A maioria foi tratada com desumanidade, passando fome, sofrendo agressões diversas e assassinatos. Boa parte deles foram transferidos para a Alemanha sendo obrigados a trabalharem na indústria e agricultura alemã até o final da Guerra – lembrando que isso ocorreu em 1940, logo, ao menos quatro anos de escravidão.

O LEGADO DE DUNQUERQUE

A Segunda Guerra Mundial é o alvo preferido dos revisionistas históricos, e muito se pergunta até hoje por que Berlin enviou a Ordem de Parada, que possibilitou o milagre. Talvez Hitler quisesse chegar em Paris o quanto antes, uma derrota moral pesadíssima para os Aliados. Possivelmente, estava confiante demais na sua blitzkrieg após as incontestáveis vitórias-relâmpago em 1939 e 1940. Também é possível que esperasse negociar um acordo com os Aliados antes de voltar sua atenção para Stalin (outro movimento de Hitler até hoje questionado à exaustão: por que invadir a União Soviética?). Jamais saberemos, e só nos resta recorrer aos “e se…”. E se não houvesse milagre? Certamente a Guerra teria caminhado de forma bem diferente, e possivelmente o mundo seria hoje um lugar bem mais sombrio.

Estudiosos do período discutem qual foi o real impacto dos eventos que se passaram no Norte da França em 1940. É bem verdade que os sobreviventes da BEF foram enviados para o Norte da África, não pisaram em solo europeu no restante da guerra. Mas também é verdade que muitos que embarcaram por suas vidas nas gélida e rasas águas de Dunquerque voltaram à França 4 anos mais tarde, desembarcando na Normandia no célebre Dia D para expulsar de vez por todas os nazistas da França.

O maior legado do Milagre de Dunquerque foi, sem dúvida alguma, o que os ingleses chamaram de “Espírito de Dunquerque”. Estes acontecimentos foram como uma bomba atômica moral para os ingleses, e foram explorados como tal pela mídia e propaganda de guerra da época.

A imagem do pescador inglês, abandonando suas redes em Dover e partindo em seu pequeno barco para o Inferno da Guerra do outro lado do Canal para resgatar seus compatriotas encurralados é parte indissociável do inconsciente coletivo dos Britânicos.

Símbolo máximo da solidariedade britânica em tempos de adversidade, o Espírito de Dunquerque carregou o esforço de guerra britânico pelas mais sombrias fases do conflito, incluindo as chuvas de bombas diárias sobre os civis  e o constante medo de invasão pelos alemães.

Apesar de dizer que “Guerras não são vencidas com evacuações”, Churchill foi extremamente feliz quando em seu famoso discurso “We Shall Fight…” (lembra de Aces High, do Iron Maiden?) chamou os eventos de “livramento milagroso”.

Thomas Jefferson uma vez disse que “a árvore da liberdade precisa ser regada com o sangue de patriotas”. No fim das contas foi o sacrifício de dezenas de milhares de ingleses, franceses, canadenses e belgas, incluindo civis, possibilitou a coordenação da operação de evacuação. Diante de todos os horrores da guerra, histórias como essas precisam ser contadas.

Em face da morte, uma evacuação é uma vitória esmagadora que brilha até hoje não só como uma história de sobrevivência, mas uma história sobre a vitória do espírito humano. Esperamos que em seu novo filme, Christopher Nolan capture com suas lentes, pinte um quadro vívido do Espírito de Dunquerque e honre a memória das boas almas que participaram do resgate.

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Publicado por Matheus Fragata

Editor-geral do Bastidores, formado em Cinema seguindo o sonho de me tornar Diretor de Fotografia. Sou apaixonado por filmes desde que nasci, além de ser fã inveterado do cinema silencioso e do grande mestre Hitchcock. Acredito no cinema contemporâneo, tenho fé em remakes e reboots, aposto em David Fincher e me divirto com as bobagens hollywoodianas.

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