Review | Banishers: Ghosts of New Eden apresenta desafios para Don't Nod superar
Poucos devem lembrar, mas o estúdio francês Don’t Nod estreou justamente no gênero de ação em 2013 com o jogo de ação Remember Me. Ironicamente, pouquíssimas pessoas se lembram do título que foi um fracasso expressivo de vendas.
Em questão de meses após seu primeiro jogo, o estúdio já estava prestes a ir à falência. Graças a um milagre de gestão e um bom pitch à Square Enix, Dontnod conseguiu sobreviver por mais tempo até lançar seu verdadeiro primeiro sucesso em 2015 com Life is Strange.
Desde então, demorou para o estúdio tentar sair dos moldes dos jogos narrativos de aventura até tentar um novo projeto ousado no RPG com Vampyr em 2018. Agora em 2023, o estúdio ainda independente lança seu jogo mais ambicioso até então com Banishers: Ghosts of the New Eden.
Entre o véu
Como é de se esperar do maior ponto forte da Don’t Nod, a narrativa de Banishers é um de seus pontos fortes. A aventura acompanha os banidores profissionais Antea Duarte e Red Mac Raith. Eles chegam ao Novo Mundo pela primeira vez em suas vidas para atender o pedido de um antigo amigo chamado Charles.
Uma maldição bizarra e cruel se instalou em New Eden, tornando a vida de todos que lá moram totalmente miserável e sombria. Entretanto, quando a dupla chega, rapidamente descobrem que a assombração que deve ser banida é muito perigosa. Em seu primeiro confronto, Antea acaba morrendo com Red escapando por um triz e muita sorte.
Ao recobrar a consciência, Red está em outra parte da costa da Nova Inglaterra (os EUA antes da independência). Ele descobre que Antea ainda está presa ao mundo material. Conseguindo se comunicar com a esposa morta, Red também descobre novos poderes e formas de lidar com espíritos e maldições, decidindo então retornar até New Eden e se livrar de uma vez do Espectro maldito que matou sua amada.
Entretanto, no meio dessa longa jornada, Antea e Red se deparam com diversas histórias que também estão conectadas com a maldição de New Eden, devendo escolher o destino de diferentes personagens para construir um futuro ambíguo para a própria Antea.
Logo, uma das maiores mecânicas do jogo está totalmente ligada ao desfecho da narrativa, com a história podendo variar em um final bom ou ruim a depender das escolhas dos protagonistas. As escolhas sempre se apresentam ao final de algumas missões principais e das missões secundárias.
Surpreendentemente, o mapa aberto de Banishers é bem grande, distribuindo diversas atividades, além de missões, ao longo dos territórios que visitamos. Inspirados pelo trabalho da CD Projekt Red com The Witcher 3, a Don’t Nod capricha nas histórias secundárias instigando o jogador a completá-las para descobrir o desfecho de cada história.
É evidente que nem todas são dignas de um Oscar, mas são mais imaginativas que a maioria de outros jogos, traçando mistérios para os banidores desvendarem e lidarem com as consequências disto. É mesmo muito próximo da experiência dos contratos de bruxo de The Witcher.
Pode não ser original, mas é eficiente. As recompensas também são boas, ajudando a subir de nível, além da conquista de bons itens e pontos de habilidades para Antea. Ironicamente, a parte mais fraca do jogo está em seus protagonistas.
Vendido como uma história trágica de amor, com Red ficando obcecado em trazer Antea de voltar à vida, a realidade é bem diferente disto. Red não fica muito abalado com a morte da esposa e trata o fantasma de Antea com absoluta normalidade. Não ajuda também o fato deles não terem nenhuma química como casal, nunca interagindo com muita leveza e ternura.
Isso se dá mais pelo fato de Antea ser mais uma dessas “personagens femininas fortes e empoderadas”. Mais uma vez os roteiristas erram a mão em tornar Antea bastante masculinizada na forma de falar e agir, sempre se provando como uma líder capaz e forte, além de sempre mandar em Red que obedece resoluto.
Ao enfiar mais uma vez a bendita da “mensagem”, a Don’t Nod perde a chance de criar protagonistas mais interessantes e originais. Uma pena, já que se trata de um desperdício notável, pois a mitologia construída sobre os banidores e as pragas sobrenaturais que eles caçam é bem elaborada no material de leitura complementar espalhado ao longo da campanha. A história só não se torna monótona por causa das surpresas que revela justamente sobre o ofício bizarro dos protagonistas.
Fórmula do sucesso
Mais uma vez a Focus Entertainment ajuda a financiar um projeto que descaradamente se vale do mesmo design de jogo de God of War. Dessa vez, a inspiração é tão forte que chega a ser a base de 90% do jogo. Pouco habituada ao gênero de ação, a Don’t Nod resolveu seguir o caminho muito bem pavimentado pela Santa Monica Studio.
Assim como God of War, temos um mundo aberto expansivo que é todo conectado em corredores espaçosos que oferecem um sentimento de linearidade, apesar do jogador sem livre para explorar o mapa à vontade.
Diversos recursos ficam disponíveis para coleta e são necessários para aprimorar os itens, melhorando seus atributos e nível de raridade (exatamente igual a God of War e aos Assassins Creed mais recentes). Outras armas melhores também podem ser encontradas pelo mapa que possui também diversas passagens seladas que poderão ser abertas posteriormente com novas habilidades de Antea e Red, inserindo também o elemento metroidvania das novas aventuras de Kratos.
O combate se dá através dos botões R1 e R2 alternando entre golpes leves e pesados. Algumas horas adentro, o jogador também ganha um mosquete que ajuda, além de função óbvia de obliterar inimigos, a resolver alguns quebra cabeças de ambiente.
Bebericando da onda inaugurada por The Médium e aprimorada em Lords of the Fallen, Banishers também conta com mudanças espontâneas de perspectiva. Ao pressionar Triângulo ou Y, o jogador alterna o controle entre Red, no mundo dos vivos, e Antea, que observa e interage com o ambiente através do véu dos mortos. Aqui, as cores são mais vibrantes, além de alguns segredos do mapa se revelarem.
A habilidade de trocar de personagem instantaneamente é encorajada também no combate, com Red e Antea aplicando mais dano a determinados tipos de inimigos que se alternam entre espectros e possessões. Infelizmente a variedade de inimigos é baixa e ao longo das 17 horas de campanha, os episódios de Combate se tornam maçantes.
Para apimentar um pouco o combate, Antea ganha habilidades únicas, além de Red poder usar um poder especial de banimento que proporciona alto dano aos inimigos, se tornando bem interessante de usar contra chefes de fase (essas batalhas são sim bem elaboradas).
Um método de viagem rápida também existe e até mesmo isso é inspirado em outros jogos. No caso, Elden Ring e outros soulslike. As fogueiras que Red acende pelo caminho são os pontos de viagem rápida, além de permitir descansar para reestocar poções (e trazer inimigos de volta ao mapa) e aprimorar itens e habilidades. Não é muito original, mas funciona.
Onde os desenvolvedores usaram mais a criatividade está justamente nas escolhas de compras de novas habilidades, com Red e Antea podendo escolher uma opção em duas em cada árvore que é disponibilizada.
Além disso, também existem os rituais que permitem evocar memórias, espíritos, flagelos (inimigos monstruosos) e transitar também no Vazio (local onde os espíritos banidos são jogados).
Em termos técnicos, Banishers não está tão polido quanto deveria. Isso não se trata da performance do jogo, que é bastante leve com gráficos signos da geração passada (o que é um mistério esse título ser exclusivo da nova geração), mas sim de bugs de progresso. Ao longo da minha jogatina, fiquei preso por diversas vezes em locais do mapa por problemas de programação, com um evento não acontecendo e travando o progresso.
Somente após minutos e alguns reloads que a falha se corrige. O mesmo pode ser dito para bugs de exploração também, com falta de clareza de objetivos na bússola do mapa para orientar o jogador. Fora isso, existem muitas paredes invisíveis dentro dos corredores propostos pelo jogo, tornando a experiência de mundo “aberto” muitas vezes limitada.
Enquanto em texturas e iluminação o jogo mostra certo capricho, temos diversos extremos na qualidade das animações faciais e sincronia labial não só dos protagonistas mas principalmente dos personagens secundários que interagimos ao longo do jogo, afetando bastante na imersão de uma proposta de narrativas fortes como Banishers apresenta. Infelizmente isso também se estende para a dublagem, até mesmo dos protagonistas no caso de Antea que conta sempre com uma voz monótona e profundamente sem graça de sua atriz.
Para os jogadores de PC, felizmente o título é bem funcional, além de contar com o auxílio sempre bem vindo do DLSS 3 que, a depender da placa, dispara os fps para além de 120 quadros até mesmo em 4K.
Fantasmas no paraíso
Banishers: Ghosts of the New Eden é divertido e interessante o suficiente para valer a sua jornada (mesmo que os protagonistas não ajudem muito). A mitologia criada pelo estúdio é bem rica e interessante, além das histórias secundárias trazerem reviravoltas ousadas e sombrias.
Com muito conteúdo inspirado por God of War, é uma boa decisão, pois deixa o game design bastante funcional, além da habilidade de trocar de protagonista instantaneamente por ser divertida, com um uso criativo. Oferecendo muitas horas de conteúdo, principalmente pelo fator replay que é encorajado pelos múltiplos finais, Banishers é uma boa experiência, mas é preciso ter expectativas realistas de que se trata de um título que ainda precisava de mais refinamento.
Torço para que a próxima aventura da Don’t Nod nesse gênero desafiador de jogos de ação consiga um orçamento mais generoso para qualquer amarra criativa ser menos evidente. Apostar no seguro é uma boa ideia para retorno comercial garantido, mas às vezes, a ousadia também consegue aliar um marco histórico com sucesso comercial.
Crítica | O Fugitivo (1993) - O brilho inesquecível de um clássico
Os anos 1990 foram uma verdadeira benção para os filmes de ação. Dentre tantos longas mais espertos na execução da história, além do foco do protagonista estar mais alinhado ao homem comum, abandonando os estereótipos do macho brucutu surreal dos anos 1980. Em uma boa seleção de filmes assim, é relativamente fácil apontar um dos donos da coroa: O Fugitivo, clássico de 1993 com Harrison Ford e Tommy Lee Jones.
O sucesso de O Fugitivo foi tamanho que conseguiu uma boa recepção universal tanto na crítica como na bilheteria. Algo ainda mais surpreendente pela competência em adaptar o elogiado e extenso seriado homônimo de 1963. Mas o que faz O Fugitivo ser essa grande obra-prima do gênero não é somente pelos elogios, mas pelo reconhecimento da Academia ao ser indicado para sete Oscar. Pela raridade da situação, O Fugitivo se torna um dos maiores filmes de ação da História do Cinema. E também com muito mérito como veremos a seguir.
Um Destino Miserável
Apesar de ser inspirado no clássico seriado que conta a mesma história, é fácil traçar um paralelo de O Fugitivo com Os Miseráveis de Victor Hugo. Ambos contam uma narrativa de perseguição entre um foragido inocente e um policial obstinado em recapturar o dito criminoso. Obviamente, tudo é diluído e menos ambicioso no filme, mas o cerne é o mesmo.
Jeb Stuart e David Twohy trazem a trágica história do médico Richard Kimble, um cardiologista que é preso injustamente sob a suspeita de ter assassinado sua esposa. Condenado em um julgamento nada esforçado, Kimble é sentenciado à injeção letal e logo é encaminhado para uma nova penitenciária. Nessa transferência, outros presos iniciam uma rebelião causando a morte do motorista do ônibus. Sem controle, o veículo para nos trilhos de uma movimentada linha de trem. Momentos antes do impacto, Kimble consegue se livrar das algemas e fugir para o mato.
Agora novamente livre, o bom doutor precisa correr contra o tempo para provar sua inocência já que o oficial Samuel Gerard e sua equipe iniciam uma das maiores caçadas a um criminoso vista na história dos Estados Unidos.
É inevitável que qualquer um que visite O Fugitivo pela primeira vez pense que o longa seja banal e bastante simples na execução da história, organizando uma narrativa de perseguição como já vimos diversas vezes antes. De fato, isso ocorre até o segundo ato do filme começar. Até lá, Kimble é um enigma como protagonista, mas muito fácil de se compadecer pela performance arrasadora de Harrison Ford que consegue ser contido, aterrorizado e bastante inocente. Aliás, os roteiristas não brincam com a dúvida sobre ele realmente ter assassinado a esposa ou não. Kimble é inocente e pronto. Por sua vez, isso gera uma identificação maior com o personagem, comprando toda a sua exaustiva jornada.
No final do primeiro ato que temos o verdadeiro brilho de O Fugitivo aparecer: a quebra das convenções banais do filme do subgênero. Presumia-se que Kimble não teria lá muitos encontros com seu perseguidor, Gerard, mas isso rapidamente é descartado. Em questão de poucos momentos, já vemos o policial estar no encalço do condenado dando início a muitas perseguições icônicas como a primeira que envolve uma correria intensa entre canais de esgoto até terminar em um ótimo cliffhanger – de modo literal.
Esse primeiro encontro é visceral em sua crueldade e denota o contraste dessas figuras antagônicas em apenas um diálogo. Nele, Kimble afirma que é inocente e Gerard, com frieza, responde que não se importa. Rapidamente conhecemos o cerne dos personagens: um está totalmente sozinho e o outro está disposto a tudo para capturar o homem, mesmo que seja preciso matá-lo.
Essa primeira conexão logo motiva o protagonista a iniciar sua própria investigação para provar sua inocência e conseguir capturar o verdadeiro assassino. É um jogo de gato-e-rato bastante intrincado que os roteiristas criam para manter o dinamismo do filme sem nunca deixar o espectador exausto pelo ritmo das reviravoltas. Como Kimble é um personagem silencioso, ele se mantém levemente superficial, um totem de injustiça e bondade que reage eticamente a cada situação difícil que encontra no caminho.
A investigação nos leva para a cidade de Chicago, contendo a perseguição pelo resto do filme. A decisão é acertada e muito bem justificada para explicar o motivo de Kimble se sujeitar a um enorme risco de ser reconhecido por cidadãos ou por policiais. Enquanto isso, também acompanhamos o ponto de vista de Gerard que consegue conferir mais complexidade para Kimble através dos testemunhos de colegas e amigos do médico. A partir disso, sabemos que ele é muito inteligente e que quase sempre está a dois passos à frente da polícia federal.
Aliás, os roteiristas não cansam de fazer duras críticas à força policial de Chicago como a federal, assim como o sistema judiciário como um todo. Tudo funciona bem, apesar de ser consideravelmente maniqueísta ao retratar diversos policiais como patetas preguiçosos e violentos. Apesar disso, é bastante funcional dentro do filme.
O que surpreende é como o roteiro se torna muito bem amarrado até o ponto de jogar o protagonista em uma conspiração médica sem tamanho. Apesar de se aproximar muito de quebrar a suspensão da descrença dessa história, as reviravoltas do terceiro ato não são nada previsíveis e levam a um pay off espetacular e consideravelmente emocionante. Apesar dos personagens serem rasos em maioria, os mais funcionais conseguem se salvar pelo estereotipo e das motivações bem definidas.
Improvável Conquista
Andrew Davis não é lá muito conhecido nem mesmo pelos maiores fãs de filmes de ação de Hollywood. Até O Fugitivo, tinha dirigido poucas obras de grande impacto e, até mesmo depois do sucesso desse longa, não conseguiu emplacar uma carreira mais notável. Davis simplesmente era um funcionário da indústria que entendia bem como filmar ação. Felizmente, estava na hora e no lugar certo para assumir esse projeto, pois muitos méritos recaem sobre sua competência com o manejo da câmera e da decupagem.
Mas isso necessariamente não significa que Davis comece o longa de um modo muito inteligente. Na verdade, ele pega os piores vícios dos anos 1990 para mostrar a cena do assassinato: uso de preto e branco, aplica filtros negativos na imagem, closes apertadíssimos e um slow motion capenga e desleixado. Isso já deixa uma primeira ideia bastante negativa, dando a impressão de um filme envelhecido e possivelmente brega como muitos dessa década.
Felizmente, isso some assim que o filme realmente começa. Mesmo que não haja lá um enorme capricho em composição, Davis preza por algo que marcou muito o cinema de ação dos anos 1990: o realismo. É justamente nessas sequências que o diretor consegue brilhar ao nos mostrar um trem partindo em direção ao ônibus tombado enquanto Ford se esforça para sair das ferragens, do vidro blindado prestes a partir em um tiroteio contra Kimble ou jogar o personagem em uma enorme catarata artificial. É maravilhoso e sentimos muito bem o impacto disso tudo.
Davis também tem a competente obsessão de estabelecer com cuidado toda a geografia das cenas, seja de ação ou não. O Fugitivo é um dos filmes mais compreensíveis visualmente que eu já tenha visto na vida e isso é um grande mérito. Logo, é difícil ficar perdido mesmo durante complicadas perseguições. Interessante que o diretor sempre inicia grandes sequências de perseguições e as trata realmente pequenas histórias. Elas nunca ficam concentradas muito tempo em um cenário e logo evoluem para algo mais emocionante ou complicado como uma que começa em um prédio e termina em pleno desfile do dia de São Patrício.
Outra boa característica é seu olhar muito inteligente para preservar o silêncio em diversas sequências, principalmente as de investigação de Kimble, na qual seria fácil demais apelar ao pecado do solilóquio falante, com o personagem falando consigo mesmo para explicar o que acontece em tela. É ótimo por não subestimar a inteligência do espectador em momento algum.
Por fim, Davis é particularmente inteligente ao conseguir criar um clímax muito tenso e bastante hitchcockiano ao aproveitar todos os recursos cinematográficos disponíveis para criar suspense em uma perseguição contida entre três indivíduos. O desenho de som colabora, a montagem e até mesmo a fotografia tem grande impacto para o suspense quase insuportável do desenlace da obra. Aliás, a montagem do filme é uma grande vencedora em conseguir ser poética quando necessário como o cruel corte de um beijo para as tentativas desesperadas de Kimble ressuscitar a mulher, além de extremamente competente em dar unidade para o filme.
Ação como deve ser feita
Assistir ao O Fugitivo hoje é bastante deprimente. Obviamente, não porque o filme seja ruim, já que evidentemente ele é ótimo, mas pelo fato do declínio completo que os longas de ação sofreram nos últimos anos. Mesmo com tanta tecnologia disponível, praticamente nenhum lançamento consegue ser tão memorável ou inteligente quanto esse clássico noventista.
Com cortes rápidos exagerados, coreografias poucos inspiradas e set pieces banais, vimos o cinema de ação se afundar em um filme mais genérico que o outro. Para os saudosistas do bom realismo de outrora, dos efeitos práticos e do investimento completo em set pieces memoráveis, não há remédio melhor do que essa inesquecível conquista que foi O Fugitivo, um filme que conseguiu render até mesmo o Oscar.
O Fugitivo (The Fugitive, EUA – 1993)
Direção: Andrew Davis
Roteiro: Jeb Stuart, David Twohy, Roy Huggins
Elenco: Harrison Ford, Tommy Lee Jones, Julianne Moore, Sela Ward, Andreas Katsulas, Tom Wood, Ron Dean
Gênero: Ação
Duração: 130 minutos
https://www.youtube.com/watch?v=ETPVU0acnrE
Crítica | Adeus, Meninos - A Guerra Vista na Infância
Seria a realidade mais poderosa que a ficção? Não é à toa que o Drama seja o gênero favorito de muita gente, afinal ele trabalha sentimentos humanos muito fortes, além de exibir uma crua janela da realidade que permite uma relação muito forte capaz de causar poderosas catarses no espectador. Mesmo que hoje possa parecer um subgênero batido, os dramas de guerra, especialmente da Segunda Guerra, trouxeram histórias absolutamente memoráveis.
Variando entre blockbusters pomposos repletos de efeitos visuais e alto valor de produção até dramas mais intimistas baseados somente na criação implacável de atmosfera. Entretanto, também temos os filmes desconhecidos – o que é um verdadeiro pecado, já que eles se provam sempre muito bons. No caso, temos Adeus, Meninos, filme do cineasta francês da Nouvelle Vague, Louis Malle, já com muitos anos de carreira que permitiram um nítido amadurecer como artista.
As Duas Colaborações
Em questão de minutos, é possível suspeitar que a narrativa de Adeus, Meninos seja baseada em fatos. Louis Malle traz a história do jovem Julien Quentin, um garoto enviado ao campo para estudar em um convento católico enquanto Paris e toda a França sofrem com a ocupação nazista em 1944. Ao chegar para mais um ano letivo repleto de restrições, além da grande saudade que sente da mãe, Julien praticamente acredita que terá a mesma rotina sem graça de sempre. Porém, a chegada de um novo aluno, Jean Bonnet, mudará sua perspectiva monótona na rotina escolar, ainda mais que o garoto reserva grandes e perigosos mistérios.
A cruel ironia é que essa suspeita do espectador realmente está correta, pois a história é vinda diretamente da vida do cineasta. É justamente por isso que vemos uma acuidade escrita fascinante em criar personagens juvenis. Malle não faz questão que seu longa seja somente uma retratação histórica da bizarra situação que os franceses se encontraram ao viver sob ocupação nazista chegando também a exibir os “colaboradores” que delatavam judeus e estrangeiros para a Gestapo.
O foco verdadeiro é mostrar a rotina das crianças entre as diversas desavenças, brincadeiras e nutrição do crescente companheirismo. Como a narrativa é situada em um convento, Malle também traz a alusão a rigidez do lugar que tenta controlar os jovens de todo modo, apesar da explosão de hormonal que os pré-adolescentes passam.
Logo, Malle traz com muita sutileza esse contraste do ensino e da prática da fé com os desejos irrefreáveis dos garotos pelo proibido, pelas mulheres que quase nunca tem contato além da visita semanal de uma bela professora de piano. Há essa constante mistura típica da idade entre o desejo e o ser criança como os colecionismos diversos, traquinagens e resquícios da primeira infância pouco bem-vindos – como a curiosa incontinência urinária que o protagonista sofre.
Porém, se há luz nos dias tremendamente frios que os jovens encaram, também há trevas. Seguindo as regras sutis que preservam a atmosfera realista do filme, Malle indica uma situação mais precária na França com escassez de alimentos, falta de emprego e a presença sempre ameaçadora dos alemães que sabem que tem o povo francês totalmente refém de suas vontades. É justamente nesse cenário tão pessimista, estéril, frio e sem cor que o cineasta apresenta as poucas fagulhas de esperança de amor ao próximo.
Com dicas bem espalhadas pelo roteiro, temos toda a construção indireta do personagem de Bonnet que explicam os motivos do menino ser tão melancólico. Seu papel é vital para a mensagem da obra, apesar da reviravolta envolvendo seu mistério ser bastante previsível. Entrentanto, como Malle desenvolve a amizade dos dois com muito alento em passagens simples, incluindo uma envolvendo o burlar de um toque de recolher, sentimos o impacto daquela tragédia e da inevitável separação.
Aliás, nesse jogo frequente de forças que resistem à escuridão opressora do nazismo, Malle cria uma das sequências mais belas de toda sua carreira. Em uma noite de rara diversão, os monges reúnem os meninos para lhes oferecerem um conforto especial: uma sessão de cinema. O filme traz uma das divertidas aventuras de Charlie Chaplin provocando risos em todos na sala em uma atmosfera de verdadeira felicidade – Malle faz planos próximos de diversas faces para mostrar esse ar descontraído.
Porém, basta o filme mostrar a Estátua da Liberdade e alguns relances dos Estados Unidos que os franceses se entristecem, se sentindo tão reféns amarrados quanto o próprio protagonista. Nessa grande impotência, a nação abdica do orgulho e clama pela inestimável ajuda americana para se livrar dos nazistas.
Bem-vindo, Malle
Mesmo que seja cinematograficamente bastante frio e repleto de olhar realista, raramente se aventurando em composições mais elaboradas ou de uma estética que arrisque alguma poesia maior, Adeus, Meninos é um dos melhores filmes de toda a carreira da Malle que exorciza os demônios de uma infância traumatizada através da arte. Às vezes, não é preciso milhares de tiroteios e sofrimento melodramático para criar uma grande história sobre a Segunda Guerra.
Malle conseguiu criar uma peça fundamental sobre um período conturbado da História da França, trazendo à luz diversos eventos complicados como a situação dos colaboradores, além de exibir um panorama sobre a pré-adolescência em um raro olhar sensível capaz de extrair o melhor de seu elenco mirim para uma peça tão pesada. Em um filme que mistura com perfeição a alegria da amizade em contraste ao horror da guerra, temos uma obra que merece sim ser conferida por todos.
Adeus, Meninos (Au revoir les enfants, França, Itália, Alemanha Ocidental – 1987)
Direção: Louis Malle
Roteiro: Louis Malle
Elenco: Gaspard Manesse, Raphael Fetjö, Francine Racette, François Berléand, Irène Jacob
Gênero: Drama, Guerra
Duração: 104 minutos.
https://www.youtube.com/watch?v=_ZLDnjcxZzE
Crítica | Os Sapatinhos Vermelhos - Arte Vanguardista nos anos 1940
Não é por menos que tantos diretores de renome como Stanley Kubrick e Martin Scorsese tenham apontado dentre seus filmes favoritos, um carinho muito especial para Os Sapatinho Vermelhos, obra-prima máxima da parceria de sucesso entre Michael Powell e Emeric Pressburger. Em uma primeira visita, talvez seja fácil o espectador se enganar pelos insossos primeiros minutos que lembram um imbróglio narrativo de Narciso Negro.
Porém, dando uma chance com dose maior de paciência, é muito provável que o encanto do longa consiga impregnar em sua memória por um bom tempo, afinal não é sempre que temos a chance de observar uma obra tão vanguardista em plena década de 1940 no cinema britânico. É um fato que que Powell e Pressbuger já estavam com uma noção cênica muito avançada para a época, testando todos os limites que tinham a sua disposição.
Conto de Fadas, Conto de Gente
Apesar de termos a inserção vital do conto Os Sapatinhos Vermelhos de Hans Christian Andersen, é preciso apontar que Powell e Pressburger criaram uma ótima história original que dialoga em níveis bem inteligentes com a escrita de Andersen. Em uma década de histórias incomuns sobre o “fazer a arte”, a dupla apresenta a dinâmica de jovens talentosos que recebem uma chance para brilhar por um influente ricaço do Teatro e Ballet, porém, quando enfim começam a crescer profissionalmente, se veem presos por uma dívida moral com o inescrupuloso homem.
O jovem compositor Julian Craster (Marius Goring) se une ao grupo de teatro do renomado produtor Boris Lermantov (Anton Walbrook) para criar as peças musicais de seu novo espetáculo: Os Sapatinhos Vermelhos, contando com a presença da bailarina estreante Victoria Page (Moira Shearer). Eis que Craster e Page acabam se apaixonando e a moça se vê completamente dividida entre se entregar totalmente ao trabalho artístico ou manter uma paixão verdadeira.
Apesar do arquétipo narrativa ser consideravelmente clichê, há certo magnetismo que faz os personagens da obra se tornarem fascinantes. Apesar de muito fraco, o primeiro ato é essencial em mostrar como Craster e Page necessitam de uma oportunidade para demonstrarem seu verdadeiro talento e o quão longe ambos estão dispostos para se consolidarem como fortes nomes em um mercado muito disputado.
O problema é que Powell e Pressburger dão milhares de voltas burocráticas inserindo subtramas insossas para tentar atribuir algum suspense quando a atmosfera é completamente falha para tal. Apenas servem para apresentar a relação curiosa dos dois com o produtor Lermantov, o patrão, e da dinâmica geral de toda a produção do teatro. Porém, como a narrativa não avança satisfatoriamente, há um marasmo bastante prejudicial que o filme se encontra, apenas se salvando graças à faísca dos conflitos entre Page e Craster que discutem a todo momento.
Porém, creio que esse começo meio insípido seja um fabuloso truque de mestre, pois o filme se transforma completamente quando somos apresentados à exibição da adaptação do conto transposto para o teatro. O contexto do conto é apresentado e logo, pelo sucesso da apresentação, vemos como a narrativa encontrará os pontos de convergência.
Pelo uso sempre eficaz da sequência em montagem que os cineastas são mestres em realizar, temos um avanço temporal satisfatório para tornar o romance entre os dois bastante crível, além da inevitável crise de ciúmes que Lermantov experimenta o motivando a agir de modo selvagem totalmente antagônico a sua postura de lorde educado e altamente elegante. Com isso, o filme engrena um conflito mais humano e imediato, além de jogar o protagonismo em Page que precisa tomar decisões pouco independentes, já que a mulher está em uma perfeita sinuca de bico.
Ou seja, a narrativa também critica ferrenhamente a mulher enquanto propriedade ao coloca-la nessa posição desconfortável e injusta na qual não consegue conciliar trabalho e romance, tornando os dois homens os verdadeiros antagonistas e completos culpados pelo futuro desagradável que lhes atinge no clímax da obra. Entretanto, a maior graça da narrativa de Os Sapatinhos Vermelhos é justamente a variedade de interpretações que podemos tirar sobre o egoísmo de Lermantov e também do momento conclusivo da obra que pode ser considerado pelo misticismo das sapatilhas de Page.
Essencialmente visual
O fato é que a narrativa da obra depende muito da potencia das imagens fabulosas que os diretores trazem em diversos momentos. Muito da compreensão dos conflitos da obra estão centrados na maestria cênica do longa em trazer elementos importantes que suplementam a necessidade de exposição como o fato da influência de Lermantov, do esforço físico de Page e também da sincronia romântica que a bailarina sente pelo compositor que rege as músicas das peças para ela dançar – isso é incrivelmente poderoso e sutil.
Mesmo contendo enquadramentos inusitados e uma movimentação de câmera bastante agitada para a época, absolutamente nada se equipara a incrível sequência de quinze minutos do ballet homônimo: é algo simplesmente surreal por conta de uma minuciosa execução que simplesmente ousa transgredir a concepção de teatro e cinema.
Powell e Pressburger tem plena ciência disso e que, se recorressem a uma estética realista para o espetáculo, estariam presos ao ponto de vista bidimensional e restrito do espectador para o palco. De início, há esse breve ordenamento de planos pouco ousados, só replicando a elegância da encenação do balé estupendo apresentado por um conjunto de diversos dançarinos, além do design artístico para os cenários variar com grande intensidade indo do realista para o burlesco até atingir tons surreais conforme a história se torna mais assustadora.
O fato é que enquanto a bailarina é obrigada a dançar sem parar por conta da possessão maligna dos sapatinhos, os diretores injetam uma carga criativa simplesmente sem precedentes – até mesmo para as fantasias do cinema silencioso de Georges Méliés. Através do vasto uso de técnicas de corte, colagem, ilusões ópticas, manipulação da taxa de quadros, inserções oportunas de closes expressivos, entre outros diversos truques analógicos que trazem um sentimento absolutamente único para esse sequência nada menos que perfeita.
Para deixar tudo mais interessante, a viagem surrealista tem um propósito lírico poderoso para nos colocar diretamente no âmago dos medos da bailarina Victoria que já tem fantasmagóricas premonições sobre seu futuro estar dividido entre a soberba de dois homens que a amam, mas não a sua liberdade. Fora todo o domínio técnico, artístico e, obviamente, narrativo em duas camadas, também há a maestria no uso da trilha musical em perfeita sincronia com a coreografia da sequência. É simplesmente arrebatador e só prova quão poderosa é a arte do Cinema.
Passada a sequência, o nível de excelência visual permanece até a conclusão da obra com simbolismos perfeitos para cenas românticas, de completa desilusão, do afastamento inevitável e da própria sordidez do ódio de si próprio que Lermantov sente de si mesmo. Com a criação apropriada da atmosfera e consolidação plena dos personagens tão humanos e sofridos, é impossível ficar indiferente a poderosa catarse oferecida por um dos encerramentos mais poderosos do Cinema.
Tudo para, menos os sapatinhos vermelhos
Poucos filmes são capazes de se livrar de um primeiro ato medíocre para atingir ares de obra-prima em sua conclusão. Só por este fato extraordinário, Os Sapatinhos Vermelhos merece ser visto e celebrado pelo grau extremo de risco ao introduzir pitadas generosas de surrealismo para criar o ponto de virada de sua narrativa. Obra-prima máxima da parceria Powell e Pressburger, este longa consegue trazer uma das melhores fusões entre teatro e cinema vistas em toda a história da Sétima Arte, além de apresentar um trabalho de grande perfeccionismo visual não só pela concepção dos diretores, mas também pelo uso formidável do difícil Technicolor.
Se mesmo assim não estiver convencido a dar uma chance a este formidável clássico, não escute a mim, mas aos conselhos certeiros de Kubrick e Scorsese. Dois mestres reconhecidos por errar raríssimas vezes.
Os Sapatinhos Vermelhos (The Red Shoes, Reino Unido – 1948)
Direção: Michael Powell, Emeric Pressburger
Roteiro: Michael Powell, Emeric Pressburger, Keith Winter, Hans Christian Andersen
Elenco: Marius Goring, Leónide Massine, Anton Walbrook, Moira Shearer, Robert Helpmann
Gênero: Drama, Romance, Musical
Duração: 134 minutos.
https://www.youtube.com/watch?v=xRV6LPtRUyc
Crítica | A Filha de Ryan - O Martírio de David Lean
É curioso como muitos não acompanham a carreira repleta de sucessos e filmes épicos de David Lean depois do razoável Doutor Jivago. Há uma razão histórica para o nítido desinteresse com A Filha de Ryan, o penúltimo filme da vida profissional do britânico que trazia uma história relativamente simples, mas sob um escopo de duração tão monumental quanto Lawrence da Arábia. Esse esquecimento que recai neste romance com ares épicos ocorre por conta uma forte injustiça histórica pela crítica americana que simplesmente rechaçou a obra a tal ponto que Lean, deprimido, se afastou do mundo cinematográfico por quatorze anos.
Embora Lean tenha cometido diversos equívocos na condução desse longa, é muito difícil não ficar mesmerizado pela beleza das imagens naturalistas e a inerente criatividade do britânico que está consideravelmente mais livre a ponto de até arriscar com inusitados tons cômicos. Mesmo assim, as nítidas qualidades da obra são eclipsadas com facilidades pela extravagância típica do diretor que simplesmente não soube medir corretamente o quanto que esse espetáculo soturno renderia.
Efusivos Julgamentos
O texto de Robert Bolt certamente é mais aprimorado do que o apresentado em Doutor Jivago. Apesar de ainda falhar em estabelecer coisas muito simples para espectadores como o tempo diegético situado em meio a Primeira Guerra Mundial, temos uma história repleta de potencial por trazer uma releitura do clássico Madame Bovary de Gustav Flaubert encaixando ao contexto muito específico do ressentimento irlandês contra os britânicos.
A jovem Rose Ryan (Sarah Miles), filha do taberneiro local de uma afastada ilha da península irlandesa, passa seus dias sempre insatisfeita pelo ritmo pacato e condenado do lugar. Na vã esperança de salvar daquela sociedade medíocre e cruel que convive, acaba se apaixonando pelo viúvo professor Charles (Robert Mitchum), um homem de meia-idade não muito expressivo. Rapidamente, os dois se casam e inicial sua rotina pacata de vida simples. Entretanto, tudo isso é desestruturado quando o Major Doryan (Christopher Jones) entra em cena enviado para a ilha a fim de cuidar do batalhão britânico lá instalado.
Em um encontro de acaso, Doryan e Rose instantaneamente se apaixonam e iniciam um affair. Porém, esse caso logo se torna público trazendo inúmeros problemas para Rose e Charles que também se encontram em meio a uma conspiração para armar agentes do IRA contra os soldados ingleses indesejados pela população local.
Já pela sinopse é muito fácil apontar onde está o excesso de A Filha de Ryan: o núcleo do IRA é simplesmente intrusivo e nada orgânico custando muitos minutos de exibição de um filme já muito longo e de ritmo inconstante. Como essa narrativa sempre interrompe o conflito principal do triângulo amoroso repleto de traições repulsivas, é muito difícil alinhar alguma importância verdadeira para o retrato histórico que Bolt pretende traçar.
Também não colabora o fato dos militantes do IRA serem apoiados pelos cidadãos da aldeia que são estupidamente perversos e malignos em uma clara relação maniqueísta, já que todos são postos como violentos insolentes com sede de sangue a todo custo. Para equiparar a estupidez da violência e dos pensamentos odiosos destes personagens, Bolt insere um deficiente mental e físico em jogo, Michael (John Mills), que serve para mostrar um velho clichê do “idiota ser mais sábio que os ‘normais’”.
Infelizmente, a presença de Michael também se torna uma penúria pela fascinação bizarra de David Lean pela ótima performance de John Mills recorrendo diversas vezes ao bobo para inserir pífias tentativas de alívios cômicos que consomem também uma enorme parcela da duração do filme – sua presença se torna mais irritante por causa da inserção repetitiva de um tema circense de gosto duvidoso que Maurice Jarre escreveu pra obra. Limando esses luxos desnecessários, finalmente temos o miolo central que realmente vale a pena ao longo da obra: o triângulo amoroso.
Rose é a personificação perfeita de Bovary sendo uma mulher mimada e privilegiada que sempre se encontra insatisfeita com tudo e querendo algo que nem mesmo ela sabe o que é. Para suprir sua necessidade de aventura, se casa com um homem inocente que realmente nutre sentimentos verdadeiros por sua personalidade apaixonante, mas logo que se depara pela realidade do casamento, foge para os braços de um amante “perigoso”.
A situação repleta de animosidade entre os irlandeses e os britânicos é explanada de modo superficial, mas já oferece um pano de fundo satisfatório para inserir Rose em um jogo muito perigoso ao resolver dormir justamente com o inimigo de seus conterrâneos. Mesmo sendo bastante apressado e esquisito, toda a atmosfera que cerca a motivação de Rose é de completo desejo. A dedicação em estabelecer a personagem por boa parte do primeiro ato torna tudo bastante crível mesmo que nada mais seja desenvolvido além disso, encerrando a personagem em um impasse completo.
O mesmo acontece com seu simpático marido Charles que, ao contrário dos outros aldeões, tenta racionalizar ao máximo as escolhas de Rose se mantendo fiel. Por conta dessa abordagem contrastante tão permissiva de Charles, é fácil o espectador ter grande empatia por ele e rapidamente condenar as ações da protagonista. Apesar de não haver um moralismo por parte do cineasta, as ações tão injustas e egoístas que Rose toma tornam o espectador seu grande inimigo.
O choque disto tudo ocorre no terceiro ato muito interessante que subverte os estereótipos do romance tradicional, além de apresentar consideráveis flertes sobre o tema do suicídio. O clímax compensa com situações violentas bastante surpreendentes que elevam a barra, enfim, realista da obra. O personagem do Major tem sua jornada concluída de modo satisfatório trazendo um drama resumido sobre os efeitos traumáticos da guerra e do estresse do confronto.
Entretanto, se há maior poder de síntese em A Filha de Ryan, certamente está durante a revelação do caráter do pai de Rose que em vez de assumir uma honestidade digna, prefere entregar a filha à própria sorte em um cenário desesperador. Mesmo assim, com um ótimo final repleto de emoções fortes comprovando a eficiência da construção dos personagens principais, o sabor amargo dos excessos narrativos é muito presente. É fácil ficar vencido pelo cansaço em A Filha de Ryan.
O Luxo do Excesso
Marcado pelo sucesso absurdo de Lawrence da Arábia e Doutor Jivago, é compreensível que a MGM tenha dado diversas liberdades para David Lean com esta produção que tinha tudo para ser mais sucinta, mas que acabou se tornando o segundo filme mais longo de sua carreira. Ao contrário dos épicos anteriores repletos de onipotência pelo design de produção e uma infinidade de figurantes, há uma ênfase gigantesca nas belezas naturais da ilha irlandesa com montanhas e vales verdes, além das praias de mar azul cintilante.
É evidente que o cineasta estava completamente apaixonado pela locação ao explorar por tanto tempo essas belezas naturais. Nessa oportunidade, até consegue criar sequências de verdadeiro requinte artístico que dizem muito sem apelar a qualquer diálogo. Nas mais bonitas, vemos Rose caminhando na praia, pisando nas pegadas deixadas por Charles, já sonhando romances futuros com o professor. Até que uma onda surge e apaga todos aqueles vestígios funcionando muito bem como um foreshadowing da chegada do Major.
Já na outra sequência na praia envolvendo pegadas, vemos como Lean subverte o significado outrora romântico, trazendo Charles seguindo os vestígios das andanças de sua mulher com o militar, descobrindo o local onde transaram momentos antes. A frustração é forte a ponto de conseguir manter um conflito que se resolve quando o personagem descobre uma evidência física escondida nas camisolas de Rose.
Outro momento contrastante excepcional se dá quando Rose escapa durante a noite para se encontrar com o Major, deixando Charles na cama. Seguindo o seu ponto de escuta, Lean potencializa a cena romântica com a bela música tema que explode, mas logo a encerra em um corte seco revelando o silêncio desolador que Charles experimenta ao testemunhar sua esposa o traindo a olhos vistos.
Esses momentos estupendos conseguem injetar vida a diversas sequências longas que obviamente não são ruins, mas excessivamente frias com uma atmosfera incômoda ou simplesmente esquisita que removem boa parte do prazer da experiência cinematográfica. Nelas, Lean aposta em enquadramentos sempre muito bem equilibrados, mas que simplesmente não se destacam o suficiente conferindo esse ar de extremos entre genialidade pura e elementos mundanos.
Provavelmente isso seja muito forte durante a sequência do primeiro encontro entre o Major e Rose no bar de Ryan. Através do uso criativo e ritmado de efeitos sonoros e da trilha musical, além de um olhar exagerado sobre um dos elementos cênicos, o cineasta consegue encaixar organicamente um súbito ataque de pânico no militar que somente é resgatado de seu inferno pessoal quando Rose oferece seu toque terno e gentil em sua mão. Enquanto isso é belo, rapidamente Lean usa um desfecho apressado e pouco poético para a cena memorável.
Já em termos de encenação, além de uma inacreditável sequência enorme e complexa envolvendo o resgate de armamentos durante uma tempestade fortíssima que rende imagens estonteantes, temos aquele velho vício do diretor centrado no puritanismo da decupagem clássica, além de manter por boa parte do tempo aquela característica bidimensional de encenação teatral mesmo que, enfim, passe a explorar mais vividamente a profundidade de campo e travellings in no cenário.
O Pecado da Expectativa
Em suma, é perceptível o esforço exaustivo que Lean dedicou para esta obra tentando dar o seu melhor para oferecer imagens interessantes que colaborem efusivamente para colaborar com o texto estranho de Robert Bolt. A Filha de Ryan certamente não é seu melhor filme, mas tampouco é seu pior. Apenas é uma obra repleta de excesso que comete o ledo engano de acreditar que um romance mais intimista necessitava de um escopo tão magnânimo.
Com um cineasta tão apaixonante como Lean, é bem provável que na época muita gente tenha caído no pecado da expectativa. E, ao encontrar algo tão isolado no estilo do cineasta, recorreram a uma reação extremada. Em um filme tão centrado nas paixões mais bestiais da humanidade, ironicamente David Lean se tornou sua maior vítima encontrando tristeza durante e depois das filmagens.
A Filha de Ryan (Ryan’s Daughter, Reino Unido – 1970)
Direção: David Lean
Roteiro: Robert Bolt
Elenco: Robert Mitchum, Trevor Howard, Christopher Jones, John Mills, Leo McKern, Sarah Miles, Barry Foster
Gênero: Drama, Romance
Duração: 195 minutos.
https://www.youtube.com/watch?v=T0qXgUvQo2s
Crítica | A Tortura do Medo - O Terror Revolucionado
É curioso como o reconhecimento, em geral, pode muito bem não vir por mérito. Odeio afirmar essas coisas, mas depois de conferir A Tortura do Medo, último filme relevante da carreira do britânico Michael Powell, certamente temos o caso perfeito de um artista subestimado.
Desde 1940, Powell e seu companheiro de trabalho Emeric Pressburger, já desafiavam o que era o "normal" para narrativas clássicas de uma época na qual o Cinema estava em sua forma de controle mais rígida.
Seja com as freiras lutando contra a impotência divina e a repressão firme do desejo sexual em Narciso Negro, ou pelo protagonismo feminino em um embate romântico sobre trabalho e amor em Os Sapatinhos Vermelhos, Powell sempre apresentava avanços narrativos, além de uma estética realmente única que também visava explorar distintas dinâmicas de montagem e até mesmo de efeitos visuais.
Aqui, Powell cruzaria todos os limites de narrativa clássica para a época, já indicando a onda de experimentações que a década de 1960 veria por tantas "novas ondas" cinematográficas em diversos países.
Nesse ano em especial, tivemos um zeitgeist muito interessante, já que tanto Powell e Alfred Hitchcock trariam dois clássicos que marcaram a história do cinema. Porém, enquanto Hitchcock mostrava privadas, o grafismo da violência do assassinato e o transformista em Psicose, Powell ousaria ir um pouco mais além ao trazer a primeira história em que temos a figura do psicopata como protagonista. Sofrendo muito com o departamento de censura britânica em diversos cortes da obra original, é quase um milagre que A Tortura do Medo seja a obra-prima que é.
Simpatia pelo Mal
É preciso muita coragem para trazer um olhar simpático sobre o assassino, o psicopata, o doente, afinal no formato clássico de narrativas temos posições concretas de protagonismo e antagonismo. A partir do momento que o roteirista apoia a figura do vilão (na concepção moral e ética da nossa sociedade), temos a subversão completa da estrutura que o público já estava acostumado. Por conta desse detalhe que faz toda a diferença, é um fato que A Tortura do Medo seja um filme mais corajoso que Psicose, embora seja menos violento.
Com roteiro de Leo Marks, somos apresentados a vida solitária de Mark Lewis, um assistente de fotografia totalmente fissurado em filmar elementos amedrontadores. Entre dias singelos de filmagem no pequeno estúdio que trabalha ou fazendo bicos ao fotografar ensaios eróticos, Mark se dedica ao sádico projeto de filmar mulheres enquanto são assassinadas por ele próprio. Porém, sua solidão é logo quebrada quando a simpática Helen surge em sua vida, revelando traços mais humanos em sua fria personalidade.
Em primeiro momento, o que mais chama a atenção sobre a história, além de todo o teor erótico que quebra o moralismo britânico sobre pornografia, é o quão certeiro Marks é ao construir a figura do psicopata. Os estudos comportamentais sobre a mente psicopata só seriam iniciados a partir de 1970 como retratado também pelo ótimo seriado Mindhunter, porém o roteirista já oferecia uma roupagem muito realista para o transtorno do protagonista. As características praticamente trazem a receita de bolo dos comportamentos que esses indivíduos apresentam: um tipo de alvo predileto, no caso mulheres loiras, um modus operandi original para o assassinato, a coleta de souvenires para relembrar a excitação do ato de matar, o retorno do assassino no local do crime na hora da descoberta do corpo, na aproximação destemida com a força policial e, finalmente, a origem do despertar da doença: constantes abusos psicológicos durante a infância.
São tantos, mas tantos acertos para tornar o psicopata realista e, inclusive, atemporal, que chego a suspeitar que o próprio roteirista do filme tenha sido um serial killer.
Logo, a apresentação de todas essas características inéditas para a época torna a figura do psicopata extremamente bem construída, mas vai além ao apresentar esse possível núcleo romântico com Helen que mostra uma face humanizada para o monstro.
Além do intuito de mostrar os crimes a motivação dos assassinatos, é muito curioso que o roteirista se dedique a criar um microcosmo muito interessante envolvendo o sobrenatural com a mãe de Helen, uma mulher cega muito sensível às intenções verdadeiras de Mark, além da dinâmica muito interessante da metalinguagem das sequências envolvendo a filmagem no estúdio que Mark trabalha.
A nítida preocupação em estabelecer o personagem vem através do uso muito inteligente dos flashbacks que surgem de modo inusitado através da apresentação de filmetes mostrando as pequenas torturas que o pai praticava durante a infância do personagem. Desse modo, balanceando a vida profissional, a criminosa, seu passado perturbado e a prospecção de um futuro redentor com o descobrimento do afeto e amor pela primeira vez na vida, é possível sim sentir empatia por um personagem tão vil. Para isso, também colabora bastante o desempenho sólido do ator Karlheinz Böhm que consegue transmitir essa game de sentimentos conflituosos em uma performance minimalista.
Mestre da Encenação
Enquanto Hitchcock aprimorava ao ápice sua técnica de montagem e direção em Psicose, cravando de vez na História seu nome como mestre do suspense, é digno dizer que Michael Powell merece ser chamado de mestre da encenação com A Tortura do Medo. O diretor que sempre foi vanguardista atinge seu ápice com a experimentação vista em seu slasher.
Iniciando o longa colocando o olhar do espectador diretamente no olhar do assassino com câmera subjetiva em plano sequência, há um impacto inicial do assassinato de uma forma nunca vista antes. Esse efeito tão criativo que acabou até mesmo influenciando o começo de Um Tiro na Noite, clássico de Brian De Palma que adota a mesmíssima escolha estética nos minutos iniciais.
Passado isto, Powell sempre traz surpresas agradáveis na manga, mesmo que realize menos proezas com a mobilidade da câmera. O que mais fica evidente é o cuidado com os enquadramentos e a atmosfera das cenas que ocorrem na câmara escura de Mark e também dos assassinatos (com óbvio destaque pela sequência apaixonada da segunda morte que ocorre justamente no estúdio que o protagonista trabalha).
A criatividade não fica somente na apresentação indiscriminada do filme snuff, da câmera subjetiva e da estética sombria maligna quase expressionista dos aposentos de Mark, mas também pela apresentação do flashback em filmetes antigos (como mencionei acima), da trilha musical curiosamente relacionada ao estilo do Cinema Silencioso, além do uso sempre forte da iluminação da vibrante fotografia de Otto Heller que traz as cores saturadas Technicolor típicas dos longas de Powell.
Obviamente, há toda a relação voyeur do título original da obra. Mas o voyeurismo não vem do ato de bisbilhotar o erótico, afinal o olhar subjetivo da câmera nos assassinatos deixa claro a posição explícita do assassino. A tensão do observar está justamente quando Mark revisita as cenas do crime e registra a ação policial causada por ele. Powell constrói um bom suspense somente em uma das três vezes que Mark está espionando a polícia. De resto, não há uma tensão realmente elaborada, afinal o espectador acompanha o assassino. Somente no clímax, com a resolução absoluta da narrativa, que existe essa forte tensão, apesar de ser um desfecho um tanto desequilibrado e pouco condizente com o resto da obra.
Entre tantas novidades que Powell apresenta aqui, há até mesmo a inserção de um humor polêmico durante uma das cenas de metalinguagem, além de fazer uma brincadeira sempre interessante de filmar o objeto que filma o filme – algo parecido com a abertura de O Desprezo na qual Godard filma uma equipe de filmagem filmando e vindo em direção à câmera.
A Tortura do Esquecimento
Apesar de Michael Powell ser bastante comentado e reconhecido em círculos de cinéfilos e profissionais da área, é bastante perturbador que ninguém ao menos mencione A Tortura do Medo como um dos pilares dos filmes de terror modernos, além de toda a coragem ousada que o diretor apresentou nesta obra repleta de surpresas inventivas tanto em narrativa quanto na própria execução do filme. Com tantos louros merecidos para Psicose, certamente alguns deveriam ir para essa fantástica obra que é apenas torturada por estar na margem da História, pois sua qualidade é muito equivalente do outro clássico slasher de 1960.
A Tortura do Medo (Peeping Tom, Reino Unido – 1960)
Direção: Michael Powell
Roteiro: Leo Marks
Elenco: Karlheinz Böhm, Moira Shearer, Ana Massey, Maxine Audley, Pamela Green, Esmond Knight
Gênero: Terror, Suspense, Drama
Duração: 101 minutos
https://www.youtube.com/watch?v=nAqEn6JS-oM
Crítica | Passagem para a Índia - O Pertinente Adeus de David Lean
É muito difícil superar uma torrente de críticas negativas logo depois da realização de um trabalho exaustivo que já durante sua produção rendeu uma infinidade de problemas. Assim como qualquer outra pessoa, David Lean, o lendário cineasta por trás de Lawrence da Arábia, acabou cansando de receber tantas pedras em sua vidraça durante o lançamento do injustiçado A Filha de Ryan. Levando muitas das críticas para o âmbito pessoal, Lean simplesmente desistiu do Cinema.
Assim foi por quase quatorze anos, até o britânico novamente se apaixonar pela arte e decidir realizar um último filme, Passagem para a Índia, também muito pertinente para a cultura do Reino Unido: um épico intimista pela Índia durante os anos 1920 visando trazer um retrato fidedigno de uma geração de indianos nascidos durante a colonização inglesa do país. O choque de cultura aponta erros e requintes de desumanidade que tornam a obra simplesmente atemporal.
O Choque do Oriente
Esse retorno depois de tantos anos afastado provaria que Lean nasceu somente para fazer arte. O curioso é que pela primeira vez em muitas décadas em sua carreira, o diretor iria roteirizar a obra, deixando de lado sua longa parceria com Robert Bolt que havia escrito e adaptado diversos de seus últimos filmes.
Nesta rara ocasião, Lean adaptou o intrigante livro de E.M. Forster trazendo a história da jovem inglesa Adela Quested (Julie Davis) que decide se aventurar em Chandrapore na Índia com sua futura sogra, Mrs. Moore (Peggy Ashcroft). Chegando no lugar, Adela e Moore se reúnem com Ronny (Nigel Havers), noivo e filho das madames, respectivamente. Em questão de pouco tempo, as duas sentem vontade de conhecer o país, a cultura e explorar os arredores da cidade. Um dos pontos turísticos mais famosos é o conjunto misterioso das cavernas de Marabar.
Com as novas amizades conquistas, Moore e Adela encontram pessoas que pensam de modo parecido ao delas nas figuras de Fielding (James Fox) e do jovem doutor indiano viúvo Aziz (Victor Banerjee). Organizando essa aguardada expedição, o grupo parte para as longínquas cavernas. A promessa de uma tarde perfeita logo é arruinada quando Adela é atacada por alguém jogando toda a delicada situação política entre britânicos e indianos em uma verdadeira tempestade.
Apesar de ser uma obra bastante longa, é curioso como Lean trata a direção da história de um curioso escopo mais intimista e centrado na protagonista de modo contundente. Os ares épicos repletos de passagens redundantes em A Filha de Ryan simplesmente desaparecem aqui. O que pode gerar uma grande confusão no espectador é que durante a totalidade de Passagem para a Índia, temos dois filmes em um por conta da mudança tonal muito inesperada na metade do longa que praticamente é onde temos a origem do conflito principal.
Por isso, para aguentar boa parte inicial do longa é preciso gostar muito do Cinema de David Lean ou de dramas históricos já que a narrativa se passa nos anos 1920. Ou, pelo menos, embarcar nas interessantes críticas sociais que o cineasta propõe enquanto apresenta uma sociedade paradoxal que vive em um repleto abandono enquanto ainda tem que se deslocar para agradar os colonizadores.
Sendo extremamente visual, muito disso está somente na elegância das imagens e da montagem de David Lean ao longo de todo o filme evocando uma Índia repleta de cores e vida, mas também muito miserável, suja e ressentida. O diretor vê os problemas óbvios da ocupação britânica evocando o completo sentimento de repulsa por parte dos colonizadores, da falta de amor ao próximo, além de uma divisão totalmente segregacionista na qual temos cidadãos tratados como reis enquanto outros são meros escravos.
O contraste firme é eficiente por conta do estabelecimento excepcional das personagens Adela e Moore que veem os indianos como seus iguais, não destratando nenhum deles permitindo o crescimento de afeição e amizade entre elas com o simpático doutor Aziz. Com muita tranquilidade, é fácil afirmar o quanto Aziz é um personagem complexo, pois ele é parte vital da sociedade que Lean traz ao filme.
Ele é um indiano já adaptado ao sistema, conseguindo receber uma boa educação que lhe rende condição social mais favorecida do que a maioria dos seus conterrâneos. Porém, ainda assim, Aziz é visto como um párea completo pelos ingleses preconceituosos, por mais educado que seja. Desse modo, quando Moore, Adela e Fielding o tratam com admiração e ternura, o homem se sente muito realizado. É um modo de Lean mostrar que a conquista de grandes coisas não deve ser obtida através da opressão de um povo, mas sim da plena cooperação e respeito mútuo.
Enquanto cria essa relação com muito cuidado e dedicação, Lean também se dedica a desenvolver a protagonista que se questiona sobre a possibilidade real de seu casamento com Ronny. Apesar do roteirista realmente falhar em trazer um olhar mais aprofundado na proposta exótica da obra em apresentar mais da cultura indiana, Lean acerta com um diálogo que faz comparações entre o casamento católico e o muçulmano. Essa peça é vital para Adela encontrar a resposta de suas aflições que certamente vem de uma personalidade sexualmente reprimida e perturbada por não conseguir calar um desejo quente de modo tão “anti-britânico”.
Para estabelecer essas características e mostrar de fato como e quem são esses personagens, há muitos percalços e diálogos bem escritos que elaboram a tensão velada entre as partes. Sendo o trecho mais redondo do longa, é fácil apontar o elemento destoante que não só é desnecessário, mas também de gosto duvidoso com a inserção do insosso brâmane Godpole interpretado por Alec Guiness sob maquiagem controversa. O personagem enigmático é tão misterioso que chega ao ponto de ser superficial já que não traz insights sobre o hinduísmo e nem força um choque de cultura interessante com personagens estabelecidos. Toda vez que surge, é utilizado como um instrumento de narrativa bastante mundano que nunca realmente justifica a necessidade de sua existência.
Amizades Determinadas
A segunda metade de Passagem para a Índia é o choque completo das circunstâncias antes tão bem fixadas pelo roteiro. A partir daqui o texto conterá spoilers inevitáveis, por isso recomendo que assistam ao filme antes, pois realmente vale a pena.
Durante o passeio nas cavernas Marabar, único trecho da obra que Lean se dá ao luxo de tratar a imagem cinematográfica em seu estilo épico autoral trazendo enquadramentos gigantescos e inúmeros figurantes em cena, além de evocar toda a beleza natural do lugar, Adela é atacada por alguém e sai desesperada da região completamente machucada.
Lean trata toda essa sequência envolta por certo mistério místico nunca revelando, corretamente, o que de fato aconteceu a Adela, mas ao mesmo tempo deixa explícito que a culpa do ocorrido recai somente na moça que, influenciada por outros britânicos, acaba acusando o inocente Aziz de tê-la estuprado. Apesar dessa reviravolta ser previsível, ela é importante para mostrar explicitamente a profunda divisão social que ocorre na Índia já alimentando movimentos de independência já que todo o caso se torna um catalisador para uma crise.
Apesar de ser uma metade mais agitada e fácil de assistir, Lean comete algumas escolhas estranhas como a de sumir completamente com Adela que era a protagonista até então. Nesse “segundo” filme que ele insere, acompanhamos os esforços de Fielding em auxiliar Aziz, mostrando como os britânicos se viram até mesmo contra os seus quando fogem das “regras” impostas pela maioria.
Mesmo sendo tão denso e importante, essa metade passa a perder fôlego e ser ligeiramente insatisfatória por conta do foco exclusivo nos fatos narrativos, deixando de lado a totalidade do desenvolvimento dos personagens que são sim bastante interessantes. Em dois pontos definitivos, o cineasta apresenta a intolerância como elemento desagregador separando famílias e amizades verdadeiras.
Ao final, há a transformação de Aziz, um indiano “britânico”, em um verdadeiro indiano, aceitando a difícil realidade de seu país e trabalhando para melhorar a qualidade de vida de seus compatriotas. Entretanto, a razão pela qual Aziz é transformado é justamente pelo rancor desenvolvido pelos ingleses durante seu julgamento tendencioso. A raiva que o muda, também é a que o cega, pois seu ressentimento o leva a se afastar dos amigos e até mesmo a odiar Adela quando na verdade devia agradecer a inglesa por se manter íntegra até mesmo sob tremenda pressão.
Mesmo com uma mensagem relevante e bonita, Lean também apressa um epílogo bastante estranho para reatar laços desunidos depois de algumas décadas a fim de conferir um final feliz não muito necessário. Em termos de direção, é visível que o diretor se renovou em um nível mais criativo para a montagem, trazendo sempre imagens contrastantes para elaborar uma mensagem bastante clara.
Em termo de encenação, pelo escopo mais intimista e sossegado de sua narrativa, o diretor não ousa sair do classicismo cinematográfico pelo qual ficou tão conhecido. Mas faz questão de sempre elaborar enquadramentos equilibrados e planos reversos oferecendo maior dinamismo para as generosas cenas centradas em diálogos.
Despedida de um Gigante
Curiosamente, o retorno de David Lean não pareceu ter causado o frisson de outrora como se fosse apenas mais um cineasta ordinário. Depois de quatorze anos afastado, Lean teve uma experiência problemática no set devido a diversos confrontos com o elenco que simplesmente diziam que ele já não sabia mais dirigir – o que é um perfeito absurdo. Devido a forma que tudo aconteceu, o cineasta preferiu se aposentar de vez depois da realização de Passagem para a Índia.
De modo geral, a carreira do britânico é simplesmente espetacular conseguindo conquistas inestimáveis, além de ter revolucionado o olhar sobre o épico trazendo questões muito pertinentes sobre humanidade, guerra e paixão. Por isso que sempre haverá espaço na História do Cinema para esse diretor que desafiou todos os limites dos então considerados blockbusters de estúdio ao tratar filmes como uma janela perfeita para a realidade. Por mais longa que esta jornada seja. E igualmente bela.
Passagem para a Índia (Passage to India, Reino Unido, EUA – 1984)
Direção: David Lean
Roteiro: David Lean, E.M. Forster
Elenco: Judy Davies, Victor Banerjee, Peggy Ashcroft, James Fox, Alec Guiness, Nigel Havers
Gênero: Drama, Aventura
Duração: 164 minutos.
https://www.youtube.com/watch?v=uPmVUe_rf1A
Crítica | Narciso Negro - A Insana Repressão do Desejo
Em toda a História do Cinema, raramente existem parcerias entre diretores que realmente são proveitosas a ponto de cunhar filmes excepcionais. Um dos casos mais extraordinários e, provavelmente, famosos é a dupla Michael Powell e Eric Pressburger. Apesar de serem muito conhecidos pela realização excepcional de Os Sapatinhos Vermelhos, os dois já haviam atingido um nível de sinergia impressionante com Coronel Blimp – Vida e Morte, mas é possível afirmar com um bom nível de segurança que um dos maiores filmes de destaque da dupla seja Narciso Negro.
Ambos trabalharam na adaptação do livro homônimo de Rumer Godden trazendo uma história bastante inusitada de um grupo de feiras anglicanas que são enviadas ao Himalaia em missão para firmar um hospital e uma escola para a pequena comunidade local. O problema é que a antiga edificação já servira como harém e está repleto de pinturas e esculturas eróticas aumentando o desafio das freiras permanecerem puras. Para dificultar a situação, há a presença incômoda de um conselheiro do antigo dono do edifício, Mr. Dean (David Farrar) que adora importunar as irmãs sempre que há uma oportunidade.
Convento em Fúria
Narciso Negro é, acima de tudo, um resultado de seu tempo e, por conta disso, envelheceu terrivelmente se sustentando muito por conta de sua estética caprichada. Logo, a narrativa certamente não é a melhor característica do longa, apesar de haver muita substância nas sutilezas que Powell e Pressburger inserem em momentos-chave da trama. Pode não parecer, mas existe um subtexto sexual muito poderoso aqui, como se fosse um teste divino para as irmãs do convento superarem e renegarem suas paixões humanas mais poderosas.
Logo, o contraste é ferrenho entre os modos rígidos das irmãs e com a “selvageria” dos habitantes da vila que somente frequentam o convento porque o general os paga. Esse choque de culturas acaba por indignar as freiras que praticamente são malvistas por toda a comunidade, apesar de seus esforços de elevar a qualidade de vida de cada um. Logo, há um punhado de diálogos preconceituosos, mas condizentes com a realidade da época ainda mais em 1947 quando a Índia estava muito próxima de conquistar sua independência.
Esse ressentimento britânico com certeza atravessa camadas da obra a tornando ainda mais interessante, porém o cerne de Narciso Negro não está somente no choque cultural e toda a atmosfera exótica da obra. O fato do erotismo latente entre as feiras que tentam ignorar o antigo ofício do prédio, além da presença de Mr. Dean que evoca essa tensão sexual muito reprimida nas mulheres. Colabora também o ingresso da bela garota Kanchi (Jean Simmons) que simplesmente traz uma carga sexual fortíssima para o convento, nunca obedecendo aos mandos das irmãs.
Já as freiras falham em ter alguma personalidade forte ao decorrer do filme, excetuando a irmã Clodagh (Deborah Kerr fantástica) e irmã Ruth (Kathleen Byron). Todas são categoricamente definidas logo no início da obra como a líder, a forte, a popular, a agricultora e a doente perturbada. Com Clodagh sendo a líder que conduz seu trabalho e as outras irmãs servindo como alívio cômico refinado e também falhas em seus ofícios, apenas Ruth fica como o contraponto perfeito, apesar de muito calada.
Os cineastas, ao estabelecer sempre uma relação voyeur de Ruth observando Mr. Dean na distância, são eficientes em desenvolver essa paixão latente sem o auxílio de diálogos. As imagens já bastam para justificar a motivação das loucuras que Ruth comete no sombrio terceiro ato. Já com a protagonista, há um desnecessário esforço dos roteiristas em inserir flashbacks revelando seu passado cômodo e uma aventura amorosa fracassada. Isso, apesar de parecer redundante, pode ser interpretado como uma dica para sugerir que Clodagh possa ou não estar também apaixonada por Dean.
Isso é um mistério não resolvido, mas muito bem sugerido por ápices visuais da obra. Aliás, em termos gerais, Narciso Negro possui uma narrativa fraca que pode não atrair a atenção do espectador em primeiro momento. O desenvolvimento de grande parte dos personagens é pífio e certos acontecimentos importantes surgem sem qualquer preparação de atmosfera prévia. Em geral, é uma história bastante esquisita e sem um foco exato sobre o que pretende contar deixando o longa superficial ou simplesmente desleixado com algumas pontas soltas.
Brilho do Himalaia
Então o que realmente torna Narciso Negro um ótimo filme? A direção e a fotografia excepcional de Jack Cardiff. Toda a estética é pensada milimetricamente para conferir um equilíbrio de composição bastante firme que se mantém por toda a obra. É uma simetria que foge da simplicidade ao explorar níveis de profundidade de campo, da altura dos cenários, da disposição dos objetos e até mesmo da movimentação e posicionamento meticuloso dos atores em cena.
Logo, o sentimento geográfico das cenas é absolutamente perfeito, permitindo a criação dos jogos de olhares que Pressburger e Powell tanto gostam. Aliás, os cineastas até se arriscam em características vanguardistas de sequências em montagem bastante rápidas como durante a cena da reforma do convento, além do trabalho magnífico de perspectiva durante o ritual das badaladas do sino localizado na beira do precipício da região montanhosa que o convento está instalado.
Pela ênfase nessa imagem icônica, fica claro que teremos uma grande resolução neste espaço tornando o clímax da obra um tanto previsível. Com o uso das pinturas em matte painting para criar a ilusão da perspectiva, o resultado foi tão marcante que chegou a influenciar Alfred Hitchcock em Um Corpo que Cai. Aliás, todo o trabalho envolvendo as matte paintings enganam bastante a ponto de acreditarmos que tudo foi filmado em locação. Pelo trabalho impressionante do design de produção e do figurino, temos a ilusão perfeita de estarmos em um ambiente indiano.
O figurino por si tem uma grande importância simbólica para a obra, já que os cineastas elaboram contrastes poderoso no terceiro ato quando Ruth se livra do hábito e usa vestes provocantes exibindo toda sua feminilidade reprimida pelas vestes castas. O mesmo contraste é visto em uma transição perfeita entre um flashback de Clodagh para o presente reprimindo toda a beleza de seus cabelos.
Outro momento poderoso somente com o encanto visual está na dança de Kanchi momentos antes de conhecer o jovem general que adentra os aposentos de supetão, ou quando os cineastas mostram Ruth correndo tresloucada pelo convento retirando todas as mantas que cobriam esculturas de outras divindades.
Aliás, o terceiro ato inteiro impressiona pelo domínio visual da dupla que consegue criar imagens muito inusitadas explorando ângulos corajosos ou mesmo com brincadeiras sublimes envolvendo o forte contraste de luz e sombras ou com a experimentação fantástica com maquiagem em Ruth jogando o filme para uma esfera de terror bastante curiosa.
Narciso Envelhecido
Apesar de contar sim com o efeito implacável do tempo, além de uma história consideravelmente desconexa e pouco interessante, Narciso Negro traz um dos melhores trabalhos envolvendo subtextos complexos sugeridos com sutileza pelos cineastas. Assim, acaba se transformando em uma obra bastante profunda explorando uma esfera psicológica pouco explorada pelo cinema como um todo: a vida em convento e o compromisso das freiras com a fé.
Não somente pelo teor erótico sutil e do sacrifício que essas mulheres aceitam passar, mas também por conta de uma estética fascinante que coloca essa obra praticamente a frente de seu tempo por inúmeros artifícios visuais, além do uso exemplar da técnica Technicolor. Mesmo sendo uma obra difícil, Narciso Negro ainda é um exercício cinematográfico interessante que merece uma conferida de espectadores mais curiosos.
Narciso Negro (Black Narcissus, Reino Unido – 1947)
Direção: Michael Powell, Eric Pressburger
Roteiro: Michael Powell, Eric Pressburger, Rumer Godden
Elenco: Deborah Kerr, Flora Robson, Jenny Laird, Judith Furse, Kathleen Byron, Sabu, David Farrar, Jean Simmons
Gênero: Drama
Duração: 101 minutos.
https://www.youtube.com/watch?v=CZRzcLK1Ar0
Crítica | Isto é Spinal Tap - A Farsa do Rock n' Roll
O documentário, em si, é o gênero cinematográfico que visa trazer a realidade ou algo próximo disso para seu público, ainda que ela seja manipulada para agradar o ponto de vista de seu realizador como ocorre com diversos longas. Porém, em certo momento, alguns ousaram quebrar as regras e se valer da linguagem específica do documentário para retratar uma história de ficção de modo mais realista.
Assim nasceu o mockumentário, o subgênero que traz somente documentários falsos com forte viés pela comédia improvisada. Apesar de existirem desde os anos 1950, foi por conta de Rob Reiner que o formato se popularizou com o genial Isto é Spinal Tap, lançado na metade da década de 1980. Não fosse pela experimentação levemente comportada de Reiner, não teríamos exemplares fortes como Borat ou O Que Fazemos nas Sombras.
O Que é Spinal Tap?
Com a rápida concretização de tantas bandas de glam metal naquela década, Rob Reiner pensou em trazer a história da fictícia Spinal Tap para o público visando criar diversas situações absurdas e ridículas dos bastidores de uma banda de rock mais ou menos bem-sucedida realizando uma turnê decadente em diversos estados americanos.
Como grande parte do texto é improvisado e muito orgânico, Reiner, de modo impressionante, consegue encontrar uma boa estrutura para organizar o caos narrativo que Spinal Tap poderia ter se tornado. O tom do humor, certamente, pertence a uma era bem mais livre que ousava ridicularizar a própria idiotice dos integrantes da banda com piadas ofensivas que realmente funcionam. O curioso é notar como o humor varia dependendo da alternância de destaque entre os músicos, permitindo um alcance bem mais abrangente da comédia.
Nisso, Reiner cria cenas memoráveis envolvendo tanto o mito por trás dos inúmeros bateristas da banda – uma sátira clara do senso-comum de ser o membro mais descartáveis dos grupos, tanto como das constantes interferências de uma namorada dos integrantes causa na dinâmica dos terríveis negócios comerciais da banda, além de desagradar um agente atrapalhado, mas completamente apaixonado pelo trabalho.
Não cabe descrever as situações na crítica, pois certamente elas perderiam a graça quando o leitor fosse procurar o filme posteriormente, mas digo que existem momentos geniais, além de Reiner conseguir trazer uma aura absurda para as canções repletas de cunho sexual infantil, apesar dos arranjos serem sempre muito bem feitos.
O fato mais interessante é que, apesar de Reiner ter criado muitas das situações sem planejamento prévio antes da produção, muita gente envolvida com bandas de rock bem-sucedidas pensou que a Spinal Tap era uma banda real e que se tratava de um documentário sério. Quando descobriram que assistiram uma farsa, ficaram impressionados com a acuidade dos fatos que o diretor retratou no longa, pois diversos deles haviam experimentado diversas das situações embaraçosas apresentadas no longa.
Outro fato muito interessante é o de Reiner ter criado sim paródias intencionais para ridicularizar a pose de algumas bandas como Os Beatles e Led Zeppelin, porém acabou prevendo algumas galhofas que se aconteceriam anos mais tarde em shows históricos do Black Sabbath e do Kiss.
Na direção, em vez de Reiner se limitar a apenas fazer abordagens adequadas via cinema-direto, sempre há algumas sequências de entrevistas tradicionais muito inteligentes para conhecermos melhor cada um dos músicos e de suas histórias. Também é impressionante o nível de comprometimento do elenco que nunca abandona seus personagens, levando a sério o tom ridículo do longa que permite deixar o espectador ainda mais confuso.
O Falso Registro
Isto é Spinal Tap se trata de um dos filmes mais importantes da História por conseguir elaborar um bom caminho das pedras para os cineastas que desejavam muito criar uma ficção na estética muito livre dos documentários. Apesar de Rob Reiner ser um cineasta um pouco quadrado, é um fato que tenha conseguido se livrar de muitas amarras para criar essa história bizarra repleta de risadas genuínas, além de permitir uma olhadela no absurdo mundo dos bastidores das bandas de rock.
Na subversão plena da proposta conceitual do gênero documentário, tivemos a popularização de uma das formas mais eficazes da comédia cinematográfica. Nada melhor que uma farsa para trazer diversão verdadeira para todos.
Isto é Spinal Tap (This is Spinal Tap, EUA – 1984)
Direção: Rob Reiner
Roteiro: Rob Reiner, Christopher Guest, Michael McKean, Harry Shearer
Elenco: Rob Reiner, Tony Hendra, Christopher Guest, Michael McKean, Harry Shearer, Bruno Kirby, Billy Crystal
Gênero: Documentário, Comédia
Duração: 82 minutos
https://www.youtube.com/watch?v=N63XSUpe-0o
Crítica | Desencanto - David Lean e a Subversão do Romance
Antes de David Lean avançar sua carreira para os famosos épicos como Lawrence da Arábia e Passagem para a Índia, o cineasta estava concentrado em filmes mais tímidos e intimistas, de poucos cenários, mas incrivelmente ousados em seus temas à frente do tempo de seus respectivos lançamentos. Desencanto, de 1945, trouxe não só a primeira indicação de Lean como Melhor Diretor no Oscar, mas também colocou em discussão como o adultério pode ser cometido na incessante busca pela felicidade.
É bem evidente que no mundo pós-Segunda Guerra, o tema de divórcio e adultério não era muito desejado para ser retratado na arte, afinal a força do Sonho Americano estava a todo vapor solidificando os valores e união da família, trabalho e lar. O britânico David Lean apenas tocou o dedo na ferida sempre exposta em inúmeros relacionamentos ao apresentar um ponto de vista menos moralista sobre a motivação ao adultério.
Escrita Benevolente
Adaptando a peça de Nöel Coward, Lean traz a história da simples Laura Jesson (Celia Johnson), uma mulher casada e mãe de dois filhos que sempre viaja às quintas-feiras para Milford, uma cidade relativamente distante de onde mora. Sua rotina de fazer compras, realizar almoços e ir ao cinema logo é balançada pelo aparecimento súbito do simpático médico Alec Harvey (Trevor Howard) em sua vida.
Após um breve primeiro encontro marcado pelo destino e carinho no qual ele remove um cisco de seu olho, Laura e Alec passam a se encontrar mais vezes nas tardes passadas em Milford e uma incômoda e proibida paixão passa a florescer. Porém, ao mesmo tempo que se aventura mais com Alec, a perturbada mulher sente a responsabilidade de trazer a infelicidade para si e para seu lar com a possibilidade de destruir um casamento que não é ruim, mas que também não é ótimo.
Pela época, não só o tema é inusitado, mas bem como seu ponto de vista da protagonista feminina. Desencanto é um dos filmes mais literários de David Lean utilizando à exaustão o recurso da narração. A verdade é que o longa tem sim uma estrutura bastante estranha trazida através de um enorme flashback enquanto Laura mantém a narração contando toda a história de seu romance revelando o âmago de seu emocional.
Isso traz um tom realmente antiquado para o longa que o envelhece de um modo bem inusitado, já que Lean se esforça para trazer uma atmosfera noir que consegue sustentar toda a beleza de sua decupagem relativamente teatral (de início). A narração somente fica bastante redundante quando ela passa a, literalmente, descrever algumas ações já vistas em tela não atingindo a escala poética pretendida, mas se tornando brega.
Esse, acredito, seja o defeito mais notável do longa tratado com muito carinho pelo realizador. É evidente que, para potencializar a mensagem do longa bastante simpática a aventura apaixonada que Laura trilha, negligencie ferrenhamente o núcleo familiar da protagonista, os tratando meramente como apêndices. Embora isso trate a família como descartáveis, também diz bastante sobre Laura, a tornando bastante complexa.
É nítido, portanto, que a família dela não ocupe significativamente sua vida, além de trazer uma rotina tediosa, repleta de moralismos incessantes e burocracias bobas da vida de casado. Com uma situação ordinária e sem emoção, é totalmente compreensível o gosto de Laura pelo proibido e da enorme sensação que é estar apaixonado. Isso é bastante curioso, pois Lean também trabalha a enorme culpa que a personagem sente por querer se livrar de um casamento bom e da responsabilidade enfadonha trazida pela maternidade.
Lean é esperto por apostar no simples, trazendo uma ocorrência de eventos bastante conectadas e lógicas para o espectador a fim de apresentar quem é a Laura, sua rotina, sua família e, por fim, seu enorme conflito. O romance construído entre ela e Alec também segue um sequenciamento simples indo de pequenos encontros, para passeios propriamente românticos até os calorosos beijos para um desfecho bem apropriado e perturbador.
Enquanto os dois se relacionam e se tornam adúlteros, Lean mostra uma descida preocupante da corrupção ética que Laura e Alec embarcam para preservar o romance se tornando mentirosos e negligentes com a profissão e família. Essas problemáticas pesam em momentos mais sombrios da obra, nos quais Laura está sozinha, porém quando os dois estão juntos, há uma explosão de sinergia bem agradável tornando esse romance bastante palpável.
O sofrimento mútuo é notável nos dois, mas Lean nunca entra no mérito do fogo daquela paixão ser tão vulnerável quanto o romance. Ele simplesmente mostra um amor adolescente na pele de dois adultos. Aliás, servindo como cenário de diversas das cenas, é curioso notar um esforço gigantesco em tornar as personagens que rondam aquele lugar, de alguma forma, relevantes, até mencionando casos de divórcio e as investidas cheias de flerte. Embora seja um núcleo bem chato, não chega a incomodar, pois estão ali apenas por mera conveniência.
Como disse, Lean adota ares bastante teatrais aqui, incluindo a verborragia, mas equilibra tudo ao adicionar uma apaixonante atmosfera noir através da iluminação e enquadramentos distantes que valorizam a figura das sombras nos planos. Totalmente mergulhado no sentido clássico da linguagem cinematográfica, raras as vezes que Lean traz algo realmente fantástico. Mas, mesmo que raras, essas ocasiões existem.
Em duas cenas, Lean traz colagens estupendas para mostrar os devaneios de Laura. Em uma delas, a mais poderosa, vemos a personagem sentada em direção ao marido, enquanto a imagem diante dela logo desaparece para surgir outra contendo os últimos beijos de seu amante. Tudo é feito através de uma colagem bastante precisa que alcance um onirismo profundamente realista. Já a segunda é mais poética, com Laura observando a fina chuva enquanto viaja de trem, até a janela ser totalmente envolvida com as cenas mais românticas e ingênuas que uma apaixonada deseja.
A Infelicidade de um Sonho Impossível
Desencanto realmente é um filme fantástico de David Lean ousando avançar os limites do drama em 1945 chegando até mesmo a ser censurado em alguns países como a Irlanda. A história de amor proibido e adúltero nunca foi menos moralista e tão apaixonada, tratando até mesmo os “vilões” de uma traição como pessoas comuns presas facilmente na tragédia por cederem tão rápido ao fervor das paixões. No fim, a miséria de ambos chegaria cedo ou tarde.
Desencanto (A Brief Encounter, Reino Unido – 1945)
Direção: David Lean
Roteiro: David Lean, Noël Coward, Ronald Naeme, Anthony Halelock-Allan
Elenco: Celia Johnson, Trevor Howard, Stanley Holloway, Joyce Carey
Gênero: Drama, Romance
Duração: 86 minutos
https://www.youtube.com/watch?v=oGDCTlVWduk