Conquistando o sucesso absoluto tanto artístico quanto financeiro com Lawrence da Arábia e A Ponte do Rio Kwai, dois épicos históricos exemplares, David Lean almejou outra tarefa quase impossível: adaptar o famigerado romance Doutor Jivago de Boris Pasternak que por anos fora censurado na União Soviética até finalmente ser publicado em 1957. Contando uma história romântica que atravessa anos, repleta de encontros e desencontros, situada bem no meio de toda a Revolução Russa, praticamente tínhamos uma história dificílima de ser adaptada tanto pelo custo orçamentário, das dificuldades de produção quanto pela abrangência de seus personagens.
Nessa tarefa, é bem possível medir os esforços de Lean, bem como o efeito que Lawrence da Arábia causou em suas marcas autorais estéticas que se tornaram bastante rígidas, mas igualmente incompetentes. Embora Doutor Jivago seja um clássico, ele não chega perto da qualidade de outras obras do diretor que conseguiu cunhar um filme imperfeito, apesar de muito dessa imperfeição estar concentrada na adaptação atrapalhada de Robert Bolt no roteiro.
O Épico Atropelado
A abordagem inicial de Bolt já é um tanto pretensiosa ao repetir a mesma fórmula de narrativa a la Cidadão Kane que havíamos visto em Lawrence da Arábia: começar o longa com um pequeno mistério e então iniciar toda a narrativa em flashback. Enfim conhecemos a infância de Jivago (Omar Sharif) na qual temos a presença de um narrador over contextualizando sua relação com o jovem protagonista. A sequência inteira, apesar de muito estranha, apenas serve para apresentar um objeto, uma balalaica, que a mãe de Jivago tocava com perfeição, inferindo um apego maior do personagem à guitarra para suprir a ausência de sua mãe que morre doente logo no começo da narrativa.
Os anos passam e então encontramos a Rússia em meados do fim do Czarismo na década de 1910. A pequena burguesia da qual Jivago faz parte ignora a crescente revolta social contra a fome e repressão da polícia czarista. Nesse cenário de insurgência, a Primeira Guerra Mundial desperta e a Rússia atende ao chamado dos Aliados para lutar contra a Tríplice Aliança. Convocado para ser médico no front, Jivago, já casado com uma antiga paixão de sua infância, Tonya (Geraldine Chaplin), acaba conhecendo e trabalhando com Lara (Julie Christie), iniciando um romance proibido, já que a moça também é casada com um soldado que futuramente se tornaria um dos principais líderes na Guerra Civil que ocorre pouco tempos depois da Revolução Russa em 1917.
O cenário histórico e político certamente é um dos mais complexos e pela escrita bastante simplista de Bolt, é fácil ficar perdido entre as passagens dos anos e das mudanças sociais radicais que Rússia passa em toda a década de 1910. Logo, para compreender em totalidade Doutor Jivago, é muito necessário que o espectador tenha um conhecimento histórico razoável sobre tudo o que aconteceu, já que o longa é falho em estabelecer o menor dos contextos.
É curioso que mesmo com poucos personagens e muito tempo de duração, Bolt e Lean evitem ao máximo diálogos e passagens que sejam um pouco mais claras e levemente didáticas no primeiro ato. Apesar de termos a presença inconstante, fria e invasiva do narrador, ele não supre pequenas questões envolvendo os relacionamentos anteriores de Jivago e Lara, principalmente de Lara já que temos muitas cenas dedicadas ao conflito amoroso da jovem com o nojento Komarovsky (Rod Steiger), um burguês simpático aos revolucionários comunistas.
Pelo fato do longa tratar seus personagens de modo maniqueísta e bastante superficial, é fácil definir quem merece a empatia do espectador, apesar de todos serem um completo mistério. É muito estranho que Bolt não se dê ao trabalho de desenvolver satisfatoriamente nenhum deles, apenas apresentando suas características como se fossem verdades concretas como o fato de Jivago ser um grande poeta, apesar de só vermos ele escrever poesia em uma bonita cena já próxima do final do filme, ou também de suas características que definem a motivação de suas escolhas tão bizarras ao decorrer da obra como a tal da “grande paixão pela terra natal” que nunca é demonstrada.
O mesmo ocorre com Lara, Tonya, Komarovsky, entre outros. E, pior ainda, não temos a mínima dedicação para desenvolver o romance entre Lara e Jivago, assim como não vemos a dinâmica familiar do protagonista com Tonya e seu filho, deixando tudo bem rasteiro e de pouca importância, afinal o espectador realmente não conhece aqueles personagens e, por mais que coisas terríveis aconteçam a eles, se torna um tremendo desafio torcer pela felicidade dos mesmos ou chorar pelas inesperadas separações que ocorrem no meio do caminho.
Isso é uma característica que pesa muito no enredo de Doutor Jivago, pois todo o drama e romance depende da força dos personagens e das relações construídas entre si. Essa característica de blocos episódicos separados por elipses imensas tornam o protagonista ainda mais inconsistente, incluindo uma bizarra situação na qual sua primeira família desaparece e, ainda assim, Jivago não se esforça em nada para encontra-los. Poderia ser facilmente justificado, mas não é assim que ocorre.
Tenho plena ciência que o livro homônimo de Pasternak compartilha dessas inúmeras deficiências do roteiro de Bolt que acabou ganhando o Oscar de Melhor Roteiro Adaptado na época. Ao mesmo tempo que é louvável o esforço do roteirista em deixar a obra a mais próxima possível do material original, também é um enorme empecilho em sua adaptação já que o formato episódico mais prejudica do que ajuda uma narrativa cinematográfica.
O que realmente tem muita qualidade no texto de Bolt são as críticas sutis ao regime comunista instalado na Rússia e em toda a drástica mudança das consequências do evento, não temendo apontar as diversas falhas desumanas características do período, além da suprema negação da verdade e extermínio humano. Isso é tão poderoso que o filme até mesmo reconquista grande parte de seu vigor quando Jivago e sua família embarcam em um trem absolutamente lotado buscando refúgio fora de Moscou.
Nessa sequência temos o melhor da genialidade de Lean como diretor, assim como Bolt eleva o nível dos diálogos com a inserção de um personagem anarquista interpretado vividamente por Klaus Kinski que não tem medo de confrontar os comunistas, sabendo que sua liberdade não é a física, mas a das próprias ideias. Fora isso, narrativamente, temos uma verdadeira bagunça repleta de buracos e tratamentos pífios para os personagens. Algo muito irônico visto que o filme é gigantesco.
Quando os Grandes Tropeçam
Talvez pela estafa de emendar as produções de dois dos maiores filmes de sua carreira, Lean tenha desempenhado um menor rendimento criativo e artístico para Doutor Jivago. Se em Lawrence da Arábia, Lean não ousava em movimentos de câmera e preferia manter uma estética quase bidimensional, em Doutor Jivago o mesmo ocorre por uma ironia consideravelmente cruel: cenários apertados.
Com enquadramentos abertos, conseguimos ver os ornamentados cenários de parede a parede, obviamente limitando o que Lean poderia fazer com a câmera em um espaço confinado. Portanto, assim como no épico anterior, há muito trabalho em cima do eixo teatral de ação horizontal e leve trabalho de profundidade na encenação. Como a maioria do filme está localizada nesses espaços pequenos em uma história já bastante atrapalhada, Lean se esforça para manter o interesse do espectador criando alguns enquadramentos realmente bonitos, além de trabalhar incansavelmente com janelas para criar uma atmosfera bem claustrofóbica.
Embora seja feliz em passar essa atmosfera de constante aprisionamento, incerteza e medo, rapidamente isso afeta o ritmo já bastante custoso da obra que já é bastante vagaroso e sem foco. A verdadeira beleza do cineasta surge em transições visuais entre as elipses com uma muito poética envolvendo fractais que viram girassóis em um fade certeiro.
Aliás, esse é facilmente um dos filmes mais repletos de simbologias visuais da carreira do britânico, apostando intensamente em iluminações diversas para situar o clima e até mesmo trabalhando o apego em objetos para simbolizar o amor materno e o amor romântico na vida de Jivago que é dividida pelo apreço a balalaica herdade (e ignorada inexplicavelmente), assim como nas vívidas flores amarelas que representam a presença de Lara, o seu amor verdadeiro.
Em outros dois momentos muito fortes, Lean e seu cinematógrafo, Freddie Young, ornamentam feixes de luz que só iluminam os olhos pesarosos de Jivago e de Lara (em sequências separadas), inferindo a forte emoção da despedida e do reencontro, além da verdadeira conexão que há entre eles. Não fossem esses detalhes muito perspicazes de Lean em sua composição visual, o romance entre Lara e o protagonista se tornaria ainda mais fraco, mas felizmente é apenas razoável.
Já nas cenas mais, digamos, épicas da obra, Lean novamente brilha com seus gigantes planos gerais que exploram a geografia das locações que visam mimetizar o bioma russo – uma ilusão muito bem-feita, vale mencionar. Nas grandes sequências de guerra e batalha, o cineasta é menos espetaculoso do que antes, mas utiliza o enorme poder da imagem para contextualizar como os soldados czaristas rapidamente se aliaram aos revolucionários depois de anos batalhando uma guerra abstrata para o país.
Logo depois, a direção de arte e o diretor conseguem mostrar as mudanças drásticas em um país totalmente desestruturado pela violenta revolução desorganizada e também pelos efeitos da Guerra. Transformando os cenários que já havíamos visto em locais totalmente diferentes, Lean explora a vastidão da miséria que atingiu todas as classes sociais, novamente elaborando uma crítica visual forte.
O cineasta mantém esse cuidado estético por toda a obra, incluindo um ápice fantástico no terceiro ato envolvendo o palácio de gelo, mas falha em toda a questão de manter a obra verdadeiramente coesa e emocional, além de usar de modo excessivo o belíssimo Tema de Lara de Maurice Jarre, fazendo a composição musical perder força sempre que surge de modo inadequado. O mesmo ocorre com o estupendo trabalho do elenco que realmente se esforça em trazer humanidade para personagens tão desinteressantes.
A Paixão Desapaixonada
Dentro de uma carreira tão generosa de épicos consagrados, é estranho observar como Doutor Jivago é um ponto fora da curva, repleto de trapalhadas curiosas para um diretor que já havia feito o impossível em outras oportunidades. Não é que a história de Pasternak seja desinteressante ou o triângulo amoroso arquitetado, impotente, mas simplesmente falta muita substância nessa estranha adaptação que não é um enorme fracasso, mas também não chega perto de ser uma estupenda obra de arte, apesar de sua técnica requintada. Lean apenas cria um bom filme, não necessariamente memorável dentro de todo seu potencial desperdiçado.
Doutor Jivago (Doctor Zhivago, EUA, Reino Unido, Itália – 1965)
Direção: David Lean
Roteiro: Robert Bolt, Boris Pasternak
Elenco: Omar Sharif, Julie Christie, Geraldine Chaplin, Rod Steiger, Alec Guinness, Tom Courtenay, Klaus Kinski
Gênero: Drama, Romance, Guerra
Duração: 200 minutos