Certos clássicos indiscutíveis e, também, tremendas obras-primas, por vezes, afastam o interesse do espectador devido a sua duração monstruosa. Grandes filmes, geralmente, trazem grandes histórias e até mesmo conseguem manter um bom ritmo para manter seu interesse por horas a fio. Com toda a certeza, um grande mestre em sustentar obras grandiosas é David Lean.
Entre um início de carreira intimista de longas relativamente curtos para trabalhar com histórias maiores, é um fato que Lean atingiu o épico em 1957 com A Ponte do Rio Kwai, um drama de guerra importantíssimo para a História do Cinema. Porém, mais importante ainda foi seu próximo projeto, o maior filme de sua vida e, possivelmente, sua obra-prima máxima: Lawrence da Arábia.
Glória, Honra e Ego
David Lean sabia que seria um tremendo desafio adaptar as conquistas improváveis de Thomas Edward Lawrence, um dos maiores militares do exército britânico durante as campanhas no Cairo contra os turcos na Primeira Guerra Mundial. Não só devido a grande polêmica que ronda sua figura, mas bem como na dificílima representação fiel dos fatos que ocorreram na Arábia entre 1916 e 1918.
A tarefa de roteirizar os feitos dessa figura histórica muito pertinente ficou a cargo de Robert Bolt e Michael Wilson. Baseando toda a narrativa a partir dos eventos descritos pelo próprio T.E. Lawrence em suas memórias e anotações, temos a criação de uma das histórias mais épicas já trazidas para a sétima arte, apesar de sua abordagem relativamente simples.
O mérito da simplicidade da história de Lawrence da Arábia recai no ponto de interesse que Lean e os roteiristas desejavam focar: na figura histórica e nada mais, deixando de lado qualquer importância sobre contexto histórico da Guerra tampouco da situação desconjuntada da Arábia que não era um Estado unificado, ainda mais sob rígido controle do Império Otomano.
Portanto, conhecemos o jovem Lawrence (Peter O’Toole) já estabelecido no Cairo, apesar de passar seus dias na cômoda reserva britânica na populosa cidade egípcia. Porém, devido ao seu comportamento bizarro e bastante insubordinado, acaba sendo escolhido para desempenhar uma missão impossível por conta de seus conhecimentos sobre as tribos beduínas locais: encontrar o príncipe Faisal e convencê-lo a unir seu módico exército para se aliar ao Reino Unido e lutar contra os turcos. Porém, para formar um exército de verdade, Lawrence se arrisca ao máximo conseguindo um feito sem precedentes: unir as tribos árabes para lutar somente por uma bandeira.
Tendo em vista essa informação, é bastante evidente que David Lean procura fazer de tudo para tornar suas imagens muito complementares ao texto para dar essa aura complexa a Lawrence que, até mesmo após a conclusão do filme, é um homem misterioso e muito provavelmente imerso na própria loucura. Lean propõe um ferrenho estudo de personagem através de ações e silêncio, nunca apostando em diálogos expositivos.
Logo nos primeiros minutos de obra, o diretor pode nos enganar ao mostrar Lawrence como um parvo insubordinado qualquer, um jovem de espírito rebelde, mas isso logo é desmontado quando descobrimos os ares intelectuais e o grande egocentrismo do tenente. Entretanto, essas características se tornam muito úteis quando ele interage com os beduínos, também revelando a mensagem anti-imperialista da primeira parte do filme, além de enaltecer a troca de cultura benéfica entre os povos.
Desse modo, compreendemos muito bem como Lawrence conseguiu unir diversas tribos de beduínos por conta de seu interesse, respeito com o próximo e sede de saber, além de ser livre de preconceitos. Mas existem diversas ironias para o primeiro ato do longa, destituindo o poder que Lawrence acreditava ter ao conquistar seu primeiro amigo que logo é assassinado por Sherif Ali (Omar Sharif) que, futuramente, acaba sendo um grande companheiro do protagonista.
Lean, dessa forma, avança a narrativa exibindo rapsódias das barbáries cometidas pelos beduínos viciados pela violência enquanto Lawrence tenta unificar todos para combater os inimigos. Nota-se, também, uma estrutura que é inspirada pela conquista no diálogo tão bem apresentada em Os Sete Samurais de Akira Kurosawa. Ou seja, os aliados nunca são conquistados à força, mas através de promessas feitas pela língua ferina de Lawrence que busca controlar tudo e todos, em uma clara manifestação de desejo pelo controle pleno sobre homens e a natureza.
Isso é recorrente através de imagens enigmáticas de pequenos tornados observados no horizonte dos desertos e pelas más escolhas egoístas que Lawrence assume sempre escolhendo o caminho com maior perigo. O personagem deseja desbravar e se tornar mestre de seu próprio destino – o que torna o começo do filme bastante irônico. Aliás, esse ponto do “um homem faz o que ele quer” é o mais exposto em diálogos muito concentrados na primeira metade do longa.
Muitas vezes, Lawrence e Sherif se confrontam por conta de suas ideias sobre destino e determinação do próprio homem. Como Lawrence crê em sua invulnerabilidade por ter feito o impossível em acumular um grande exército, acaba motivado a resgatar um companheiro que acabou perdido no deserto por causa do cansaço e esgotamento físico. Sherif se opõe a tentativa heroica absurda que Lawrence pretende tomar, mas o protagonista escuta apenas a si mesmo e parte em busca do infeliz desconhecido.
Com absoluta certeza, temos o ápice criativo e emocional de Lean com Lawrence da Arábia de tal modo que essa pequena cena merece uma análise por si só.
O Surgimento do Herói
Nesse instante, Lean elabora sua arte na expressão máxima do visual que o Cinema se vale. Com o auxílio muito perspicaz da montagem, não revelando de antemão se Lawrence foi feliz em sua missão, o diretor restringe o ponto de vista do espectador em Daud, um garoto órfão que vira lacaio do protagonista. Com o restante do exército já se mobilizado, apenas o menino aguarda Lawrence em meio ao deserto de Nafud com poucas esperanças de ver seu amigo novamente.
É justamente aí que a magia acontece como podem ver no trecho abaixo:
Lean primeiro observa o garoto desanimado e um tanto mortificado pelo calor olhando o horizonte. Nesse raro momento, o cineasta usa uma câmera subjetiva mostrando o que parece ser uma miragem de algum ser pequenino se aproximando no horizonte. Incrédulo, o garoto parte sem acreditar nos próprios olhos. Novamente alternando entre a objetividade da ação de vermos o órfão galopando em seu camelo para a subjetiva em um raríssimo travelling em profunidade, avançando para dentro do deserto em velocidade crescente, Lean então permite a explosão do magnífico tema musical de Maurice Jarre, até enfim revelar Lawrence conquistando seu próprio destino.
A catarse é tão poderosa que Lean encerra sua bela cena com um dos mais belos planos gerais que compõe ao longo do filme, observando tudo a distância em toda organicidade da ação e do encontro atrapalhado de Daud com o protagonista. Apenas com duas cores majoritárias e instrumentos simples, Lean arquiteta um dos momentos mais maravilhosos que o Cinema já nos proporcionou.
Obviamente, por se tratar de um momento tão poderoso, ele tem reverberações em sequências menores, mas igualmente fantásticas. A mais impactante tem a ver com o desfecho do personagem que Lawrence salva, jogando nosso protagonista no cargo de divindade controladora que ele tanto desejava. Esse momento também marca o início do declínio do herói, já embriagado pelo poder e com flertes psicóticos pela conquista e guerra.
A partir da troca de relações com Sherif, observamos a troca de costumes e ideias ser melhor aprofundada com o árabe se tornando mais diplomático enquanto Lawrence se torna mais violento e selvagem, como uma criatura esfomeada do deserto. A graça da fluidez da narrativa se encontra justamente nesses altos e baixos que eles experimentam a cada novo acontecimento importante. Logo, se temos uma ascensão para Lawrence, certamente temos o declínio.
O curioso é que os roteiristas não abordam o declínio daquele modo clichê e muito martelado por diversos outros filmes, mas sim através da realidade que Lawrence sempre menosprezou: a motivação dos integrantes tribais de seu exército. Tão logo uma promessa é paga, rapidamente Lawrence se encontra sozinho, mas ainda bastante iludido acreditando que todos retornarão para o seu comando e batalharão por seu nome.
O fato do homem se julgar extraordinário e então se deparar com uma situação que o diminui para o ordinário rende momentos sempre curiosos que flertam tanto com o psicológico perturbado do militar quanto com sua sexualidade. Nesse ponto, o protagonista simplesmente busca se reestruturar, mas acaba se tornando uma antítese de si próprio na segunda metade da obra.
A Derrocada
Enquanto a primeira parte do longa é praticamente sublime, a segunda é ligeiramente inferior por conta do grau mais estacionário do desenvolvimento narrativo de Lawrence, além de uma grande fragmentação via elipses que podem tornar tudo demasiadamente apressado. Entretanto, é importante salientar que isso não interfere negativamente na experiência, afinal Lean consegue explorar um pouco mais o lado sombrio da mente de Lawrence, demarcando sua completa transformação.
Rapidamente o personagem entra em contradição e, para não perder seu sentimento de grandiloquência, acaba fazendo o impossível para unir seus aliados novamente recorrendo a lealdades superficiais que tornam sua liderança totalmente falsa, apesar do exército britânico ainda admirar seus feitos. Logo, Lean constrói duas sequências muito impactantes mostrando Lawrence como um de paixões selvagens, o colocando como um falso profeta, um militar inescrupuloso e, pior, um criminoso de guerra responsável por um dos massacres mais viscerais do confronto.
O último ato sintetiza o que torna Lawrence apenas um humano normal, um herói falho e muito questionável e, pior de tudo, apenas um inglês, um elemento exógeno que nunca seria capaz de liderar o povo árabe. Justamente por isso que o final do longa é tão poderoso ao contrastar a miséria silenciosa de um homem com a felicidade de outro, completamente ignorante a dor alheia.
Essa questão sobre ser ou não ser um britânico, praticamente é sustentada por Lean e pela atuação de O’Toole. Basta reparar como o personagem se comporta ao vestir as vestes militares de seu país, andando de modo incômodo e se portando de modo infantil. Porém, quando recebe as túnicas brancas icônicas, Lean nos apresenta a um momento íntimo do herói ao se afastar de seu exército para dançar sozinho, se sentido totalmente confortável com as vestes, acreditando ser um verdadeiro árabe.
A partir desses pequeninos detalhes, da composição exemplar de O’Toole em sua atuação e da sensibilidade visual de David Lean que temos a criação de um personagem tão imprevisível e misterioso, mas perfeitamente compreensível ao espectador desvendar boa parte dos desejos, conquistar e falhas desta figura tão bem construída.
Conceito das Circunstâncias
David Lean foi extremamente radical em sua proposta para retratar a história de T.E. Lawrence: ou ele filmava nas locações onde ocorreram os eventos, ou nada disso seria realizado. Com um orçamento relativamente apertado, o enorme desafio de filmar no deserto e o pesadelo logístico envolvendo quatorze meses de fotografia principal em locações instáveis ou totalmente imprevisíveis, a produção de Lawrence da Arábia tornou-se tão histórica quanto o filme.
Devido a essas dificuldades logísticas e também do peso absurdo dos equipamentos, logo Lean se viu limitado ao sacrifício de gravar nas locações que desejava, afinal ele não tinha controle sobre a luz, tempo, clima, etc. Nas primeiras dificuldades enfrentadas, portanto, Lean decidiu se ater a uma proposta estética bastante radical que, felizmente, dá bastante certo e pode ser bem imperceptível para alguns espectadores.
Basicamente, Lean sempre mantem a ação em um único eixo, exatamente como veríamos em um palco de teatro. Os personagens se movem horizontalmente e conversam entre si quase que somente de perfil para a câmera – o cineasta praticamente sustenta os diálogos com planos únicos. Obviamente que um diretor do gabarito do britânico se esforça para trazer composições majestosas muito bem construídas valorizando a direção de arte quando preciso, mas totalmente atenta as paisagens magníficas capturadas em planos abertos estonteantes, além de composições que visivelmente valorizam a profundidade de campo com figurantes passeando a todo momento.
Assim, vemos a imensidão do poder da natureza e toda a pequeneza dos homens que ousam desbravar o deserto. Algo bem clássico da linguagem do western que Lean traz para seu filme. Isso também colabora visualmente para diminuir a figura egocêntrica e narcisista de Lawrence que sempre acaba perdendo seus duelos contra a natureza. Desse modo, o espaço da ação é sempre definido em travellings elegantes ou lentas panorâmicas que vão sempre da esquerda para a direita – isso, segundo Lean, visava trazer mais impacto de progresso para a jornada de Lawrence.
Raras são as vezes que o cineasta movimenta sua câmera em profundidade, ou seja, adentrando a ação e se livrando da estrutura bidimensional que comanda a estética da obra. Tanto que quando Lean se aventura a movimentar a câmera desse modo, acaba criando justamente a cena que mencionei anteriormente no texto. É fenomenal. Porém, é justamente por Lean se manter tão fiel a estética ornamentada que isso não se torna um incômodo, afinal ele também cria uma decupagem bastante rica que explora a hierarquia dos planos tanto como a altura da câmera.
É visualmente rico e majestoso. O mérito, obviamente, também está na cinematografia exemplar de Freddie Young que fez uso de objetivas com distâncias focais homéricas para conseguir o efeito quase impossível de replicar a ilusão óptica de uma miragem. Além disso, há um controle magistral de iluminação artificial misturada com a intensidade castigadora de luz solar no deserto, sempre conseguindo o feito absurdo de expor corretamente o brilho da areia em contraste com o vibrante azul do céu. Não há palavras para descrever, é simplesmente divino.
Divino de tal modo que Lean trouxe uma das transições visuais mais apaixonadas do Cinema: um fósforo se apagando para cortar subitamente na aurora de um sol gigantesco.
Conquistador de Tudo e Nada
É preciso ver para crer no caso de Lawrence da Arábia. Não é à toa que se trata de um dos maiores épicos que a Sétima Arte já proporcionou, além de ser a obra-prima máxima de um cineasta monumental. Superada a barreira da duração, é possível ficar imerso nessa enorme conquista do Cinema saboreando arte cinematográfica da mais alta qualidade.
Filmes tão realistas e elegantes como esse simplesmente não existem mais. Tudo respira, é orgânico e visualmente majestoso nessa obra, incluindo suas memoráveis cenas de batalha também feitas em total aposta no realismo concentrando um exército de homens, cavalos e camelos. Depois de todo o esforço de Lean, da trilha musical hipnotizante e toda a força deste clássico histórico, o leitor não tiver o interesse despertado, simplesmente quem perde é o mesmo.
A história do conquistador de tudo e nada é a superação completa de todos os sentidos do cinema naquela época e até mesmo hoje.
Lawrence da Arábia (Lawrence of Arabia, Reino Unido – 1962)
Direção: David Lean
Roteiro: Robert Bolt, Michael Wilson, T.E. Lawrence
Elenco: Peter O’Toole, Alec Guinness, Anthony Quinn, Jack Hawkins, Omar Sharif, Claude Rains, Arthur Kennerdy
Gênero: Biografia, Drama, Guerra, Aventura
Duração: 227 minutos.