Crítica | Amor à Flor da Pele - O Peso da Solidão
Wong Kar-Wai foi colado no mapa depois do grande sucesso gerado pelo ótimo Amores Expressos. Decorridos seis anos, além de muito planejamento, o cineasta chinês veria seu estilo cinematográfico sofrer uma transformação completa com Amor à Flor da Pele, longa que é considerado por muitos críticos como sua principal obra-prima.
Porém, essa guinada tão radical na sua forma de compreender o Cinema pode ser interpretado como uma traição do próprio estilo tão inspirado em Martin Scorsese de outrora. Os cortes rápidos e câmera fluída dão lugar a um classicismo curioso de planos contemplativos, por vezes centralizados, de um estilo imagético popularizado por diversos filmes da era Warner Bros de Stanley Kubrick.
Art House do Amor
Que Kar-Wai é um excelente contador de histórias românticas, disso não há dúvidas. Mas o que realmente torna Amor à Flor da Pele uma obra tão destacada dentre outros romances. Bebendo da fonte do clássico de David Lean, Desencanto, Kar-Wai nos apresenta a dois casais vizinhos em uma moradia rudimentar na Hong Kong de 1960. Srta. Chan e Sr. Chow trabalham copiosamente todos os dias, assim como seus respectivos cônjuges.
Com a crescente ausência do marido e da esposa dos dois indivíduos, o peso da solidão se torna praticamente insustentável até que os dois passam a suspeitar de que seus amores, na verdade, estejam os traindo. Unidos pela traição de seus esposos, Chan e Chow ficam cada vez mais próximos e iniciam uma fagulha para um verdadeiro incêndio de paixão. Porém, pela discrição da sociedade e também pela dúvida da separação, o romance dos dois logo se torna um conflito burocrático de emoções cheias de medo e insegurança.
Para quem já está familiarizado com a filmografia de Kar-Wai depois da realização desse longa, certamente não vai estranhar o estilo mais vagaroso e repleto de contemplação. O diretor/roteirista se concentra muito não-dito, recorrendo raramente a diálogos ordinários de romances, mas seguindo a escolha de mostrar a vida solitária de Chow e Chan em uma parcela generosa do longa. Com personagens cercados por uma vida miserável em um conflito similar pela solidão e abandono dos cônjuges, o roteirista tece um fundo motivador poderoso para os protagonistas.
A tensão sexual já é notada em questão dos primeiros minutos do longa, quando temos rápidas cenas em slow motion focando no caminhar sensual de Chan enquanto Chow a observa secretamente. Esse congelamento do tempo também permite o florescer da trilha musical que torna toda a atmosfera irresistivelmente romântica para o espectador – além da cinematografia e direção de arte sempre tentar trabalhar com cores muito quentes entre uma escala agradável de vermelho até o laranja.
Tudo é excepcionalmente intencional em Amor à Flor da Pele. A lentidão da narrativa, assim como do ritmo arrastado de todo o longa são reflexos diretos da projeção emocional dos dois protagonistas. Ambos se sentem desmotivados, sem energia, sem encontrar significado na própria existência enquanto amarguram arrependimentos do passado e do presente, prisioneiros de uma realidade desagradável fora de controle.
É por conta desse aprisionamento que Kar-Wai aproveita o drama para criar uma proposta estética única e verdadeiramente sufocante ao filmar quase que a totalidade inteira do longa em espaços apertados e corredores estreitos. Não há trégua nessa escolha até a última cena da obra, mas, embora torne o visual do longa bastante repetitivo, é muito funcional em complementar a angústia dos protagonistas. Ou seja, de um conflito abstrato como o da angústia da traição que pode não ser comum a todos espectadores, o cineasta se dispõe a traduzir esse sentimento através da criação dessas imagens inteligentes.
O mesmo pode ser visto em enquadramentos frequentes nos quais o diretor elabora molduras, em maioria, verticais, para restringir ainda mais o espaço desses personagens até chegar na metáfora visual mais óbvia para refletir o aprisionamento: enquadrar ambos em seus encontros noturnos por trás de grades indiferentes. Enquanto funciona nesse nível poético, a imagem também já anuncia a inevitabilidade dos destinos desgraçados daquelas duas almas perturbadas.
Aliás, muito embora Chow e Chan sejam personalidades incógnitas, já que Kar-Wai não foca em desenvolvê-los dessa forma, temos dicas preciosas sobre quem realmente são por trás das máscaras morais impostas por um código cultural rígido. O roteirista faz uma troca de clichês aqui – muito bem-vinda por sinal, já que Chow é o mais sonhador dos amantes. Ele é disposto a abandonar tudo para fugir com Chan e arriscar viver de seu sonho como autor de aventuras para quadrinhos e livros.
Enquanto isso, Chan é uma mulher totalmente racional, apesar de conservar resquícios de paixão por conta das suas vestes, maquiagem e cabelo sempre muito elegantes, pronta para ir a festas luxuosas totalmente fora de sua realidade. Ela se arruma na tentativa de conquistar o marido ausente – repare que Kar-Wai nunca apresenta os cônjuges durante a totalidade da obra, resgatando uma época de felicidade intangível.
Como toda a situação do casamento e também do caso amoroso entre os protagonistas é imersa em uma imobilidade incômoda, além do cineasta preservar sua proposta estética inflexível, assistir ao filme é uma experiência particularmente difícil, já que o art house pouco se importa em seguir normas tradicionais de filmes comerciais. É por conta dessa imobilidade que Amor à Flor da Pele também sofre, já que rapidamente as imagens, enquadramentos e movimentos de câmera se esgotam afetando negativamente a experiência. E olha que esse radicalismo estético é muito mais brando neste longa se formos comparar com outros mais recentes de sua carreira, como O Grande Mestre.
Arrependimentos repletos de repetições
Kar-Wai prova que é um cineasta de primeira linha com Amor à Flor da Pele. A subversão de diversas normas narrativas, tornam a história sofrida de Chan e Chow em algo tangível de tão realista que os sentimentos de insegurança e solidão são retratados através de um poderio visual impressionante. Porém, por conta do cineasta desejar frisar isso durante todo o filme, é possível que se torne uma experiência exaustiva mesmo que muito recompensadora já que ele usa todos os artifícios disponíveis para criar essa atmosfera única, sinestésica, onírica e decadente com toda a elegância cinematográfica possível de um cinema consagrado por um dos maiores diretores da História.
Em vidas mal resolvidas, o amor realmente pode ser repetitivo e frustrante, mas também repleto de estilo e criatividade.
Amor à Flor da Pele (Faa Yeung nin wa, China, Hong Kong – 2000)
Direção: Wong Kar-Wai
Roteiro: Wong Kar-Wai
Elenco: Maggie Cheung, Tony Chiu-Wai Leung, Rebecca Pan
Gênero: Romance, Drama
Duração: 98 minutos.
https://www.youtube.com/watch?v=BnFjSHQFVkA
Crítica | Cruzada Infinita - A Péssima Conclusão da Trilogia do Infinito
Em uma década que se provaria realmente difícil para a Marvel, o enorme sucesso provocado com a saga vista em Desafio Infinito faria o grupo editorial encomendar uma trilogia inteira para Jim Starlin salvar as vendas já muito afetadas dos quadrinhos. Porém, por mais que essas histórias vendam, elas passam longe da qualidade apresentada na primeira parte.
A decadência já havia sido sentida com Guerra Infinita, mostrando uma premissa curiosa da materialização do “lado negativo” de Adam Warlock, Magus, no mundo real tramando conquistar a Manopla do Infinito e dominar o universo. Embora seja bastante medíocre, havia uma noção mais original para dar continuidade para a narrativa de Desafio, além de trazer um novo vilão que apresentava falhas inerentes ao espírito de Warlock.
Já aqui com Cruzada Infinita, o final dessa Trilogia do Infinito, Starlin mostra sinais claros de esgotamento criativo ao apresentar uma antagonista que é o verdadeiro oposto de Magus. Ou seja, o “lado positivo” de Adam Warlock materializado no Universo. A vilã se autodenomina Deusa e, por conta dos eventos de Guerra, elabora um plano mais original para conquistar seus objetivos que parecem bem-intencionados em primeiro momento, mas no fundo são tão perversos quanto o de outros vilões.
A Luta pela Fé
Cruzada possui um escopo mais audacioso, embora falho. Todo o pano de fundo da história é uma pseudocrítica ao fanatismo religioso, já que Deusa conquista, através de manipulações psicológica, diversos importantes heróis da editora como Capitão América e Doutor Estranho para a auxiliarem em sua Cruzada a fim de levar todo o Universo para uma nova era de paz. Para isso, ela cria um Paraíso privado em um planeta distante para que os heróis a protejam enquanto ela faz os preparativos finais para executar seu plano.
Para não esgotar as Joias do Infinito, Starlin não faz a vilã partir em busca desses artefatos, mas sim criar um outro elemento místico que é realmente esquecível e de menor impacto narrativo. Logo nas duas primeiras edições também se percebe que esta saga seria facilmente comportada em uma quantidade mais modesta de páginas, já que Starlin realmente enrola o desenvolvimento da história com diversas transições entre os núcleos dos Vingadores e dos heróis aliados a Deusa.
Assim como nessas grandes sagas de Starlin, temos uma presença massiva de personagens que pouco são trabalhados. Todo esse conjunto de heróis tem a finalidade apenas de Starlin engenhar sessões de porradaria entre os heróis favoritos dos leitores. Porém é tudo tão sem imaginação e com reviravoltas óbvias – como ataques na retaguarda de inimigos distraídos, que logo se tornam um verdadeiro teste de paciência.
A leitura para chegar até esse momento também já é um grande esforço, pois Starlin usa um vai-e-volta irritante entre núcleos que simplesmente parecem não sair do lugar. Isso é apenas diluído com o núcleo realmente importante da obra focado em Adam Warlock e Thanos que passam a trabalhar juntos para deter a Deusa. Thanos ainda é o personagem mais interessante da obra, já que o roteirista insiste em manter as intenções de Warlock sob uma neblina tão espessa que as reviravoltas de seu plano quase se tornam incompreensíveis, pois inventam regras novas a todo momento.
Isso obviamente tem a ver com as escolhas envolvendo o famigerado Soul World de Warlock permitindo que o herói desapareça por enormes porções da jornada. Com tantos personagens fracos ou de propósito rasteiro nessa história, é fácil ficar desinteressado. Porém, é preciso apontar algumas boas ideias nada desenvolvidas que Starlin traz nessa conclusão. Ele pretende discutir as mazelas do livre-arbítrio, da fé cega e da purificação da alma, mas acaba reduzindo tudo ao extremo do jogo eterno entre o bem e o mal conseguindo deixar tudo o que foi apresentado até então em meros caprichos criativos.
Ao menos, durante o clímax da obra, temos uma boa reviravolta assim como os desenhos pouco inspirados de Ron Lim ganham mais vida chegando até mesmo a brincar com metalinguagem. Infelizmente, Deusa apenas se torna mais uma vilã esquecível do panteão cósmico da Marvel, assim como toda essa história pouco relevante dentro do universo da editora.
A Cruzada da Leitura
É realmente uma tarefa árdua concluir Cruzada Infinita apesar do interesse do leitor ser provocado pela conclusão em cliffhanger de Guerra Infinita. Starlin está totalmente esgotado criativamente com essa trilogia a ponto de inverter a ordem de ideias já apresentadas e que se provaram pouco eficazes na condução de uma narrativa. Ainda que o lendário roteirista pretenda trabalhar temas complexos e a polêmica da religião aqui, há muita poluição em arcos e núcleos pouco interessantes que somente servem para confundir o leitor. Pior ainda são as decisões editoriais da Marvel que insere diversos tie-ins importantes para compreender algumas reviravoltas injustificadas dentro da saga.
Cruzada Infinita (The Infinity Crusade, EUA – 1993)
Roteiro: Jim Starlin
Arte: Ron Lim
Arte-final: Al Milgrom
Cores: Ian Laughlin
Letras: Jack Morelli
Editora: Marvel Comics
Crítica | Thanos - Volume 2: O Confronto dos Deuses - Pancadaria Visceral
As primeiras seis edições de Thanos por Jeff Lemire foram uma grata surpresa, afinal não é fácil escrever de um personagem que é praticamente uma divindade devido ao nível de poder absurdo. Por isso, a ideia de subverter a premissa do poder absoluto e tornar Thanos em uma criatura doente e muito fraca é eficiente, apesar de bastante óbvia.
Com a preparação de todo o terreno nos primeiros seis volumes nos quais temos jornadas simultâneas entre Thanos e Thane, um tentando sobreviver e outro buscando o poder, vemos como essas duas pontas terminam em contrastes absolutos com Thanos derrotado e se retirando para as ruínas do seu reino morto enquanto Thane reina resoluto com a Senhora Morte exterminando diversas vidas ao redor da galáxia.
Alianças Inesperadas
Nessas novas seis edições, Lemire conclui sua fase com Thanos e, de longe, a primeira é a mais interessante deste volume. Acompanhamos o protagonista recluso e deprimido, temendo morrer e sobrevivendo na completa miséria ao se alimentar de criaturas podres e apanhando de marginais. Nesse núcleo sem esperanças, o vilão é obrigado a aceitar uma ajuda inesperada com uma estranha trupe cósmica constituída por Eros, seu irmão, Nebulosa e Tryco, o campeão do universo.
Se antes tínhamos uma história muito focada em diálogos para trabalhar os opostos entre pai e filho, aqui temos ação do início ao fim, já que Thane, após descobrir que Thanos fugiu, logo parte em busca do pai para assassiná-lo de uma vez. A dinâmica então é tão rápida e mais centrada no poder dos desenhos fenomenais de Deodato que trazem ação inventiva do início ao fim.
É uma história bem mais simples e somente focada na porradaria, mas ainda assim, funciona muito bem. Tanto que quando Lemire tenta inventar a solução para a cura da doença mortal que acomete o Titã, temos uma sequência que começa muito promissora ao inverter a vilania do personagem, mas que é encerrada de modo quase cartunesco e de pouca relevância. O desafio que Thanos precisa superar é, no mínimo, muito boboca.
Apesar dessa sequência repleta de falta de imaginação, Lemire compensa com o embate entre pai e filho, mimetizando algumas frases trocadas por Thanos e seu pai no volume anterior. Além disso, há uma abordagem adulta para o núcleo concentrado em Nebulosa e Tryco que serve muitíssimo bem como um alívio cômico mais interessante, mostrando facetas raras nos quadrinhos da Marvel.
A conclusão da narrativa também não deixa a desejar já que Lemire resgata melhor a função do encontro com as Irmãs das Estrelas nos confins do Universo. Há uma reviravolta inesperada e bem-humorada, além do roteirista resolver bem o problema de Thanos com a Senhora Morte. O conflito é resolvido sem maiores problemas, além de conservar um retrato para o vilão inescrupuloso coerente com o que havia escrito até então.
Finalmente há essa essência de pura vilania e invulnerabilidade que faz de Thanos um verdadeiro tirano no universo Marvel sendo um de seus melhores vilões. Esse período que Lemire trabalhou com o vilão foi proveitoso para mostrar essa esfera extremamente violenta e sádica do personagem que pode ser muito abrandado em sagas com heróis mais populares em audiências mais jovens. Com essa boa história e uma conclusão que apetece os fãs, o roteirista encaminha um Thanos reformado e bastante poderoso para a conclusão perfeita dessa pequena saga com o arco escrito por Donny Cates que consegue trazer uma história ainda melhor do que as escritas por Lemire.
Thanos Vol. 2: O Confronto dos Deuses (Thanos: The God Quarry, EUA – 2017)
Roteiro: Jeff Lemire
Arte: Mike Deodato Jr.
Editora: Marvel
Edições: 7 a 11
Crítica | Amores Expressos - A Ascensão Excêntrica do Amor
Mesmo já adquirindo boa experiência com duas ficções e um documentário, Wong Kar-Wai experimentaria um sucesso monumental com um dos dramas românticos mais interessantes de sua carreira: Amores Expressos. Em uma inesperada janela de exibição para o mundo, o cineasta chinês conseguiu imprimir um estilo verdadeiramente único enquanto se inspirava profundamente pela técnica de Martin Scorsese na montagem.
Apesar de ser considerado um drama, Amores Expressos é um filmes simpático e bem-humorado que tem diversos toques de doçura tão rara, além de momentos poéticos que revelam o furor criativo que Kar-Wai experimentava nessa fase que seria muitíssimo generosa para com ele a ponto de cunhar sua obra-prima incontestável com Amor à Flor da Pele.
Paixões de Momentos
Kar-Wai basicamente realiza dois filmes em um com história diametralmente opostas. A primeira delas é a mais agitada, injetando uma dose espetacular de energia no começo da obra, tornando toda a experiência realmente magnética. Nessa narrativa acompanhamos dois personagens, dois protagonistas. O policial de número 223 patrulha as ruas de Hong Kong diariamente em busca de criminosos. Dentre perseguições diversas, o homem agoniza por um amor não correspondido. Sem superar o termino de um caso amoroso, 223 passa noites em claro procurando algum sentido no viver.
Paralelamente, enquanto 223 se perde entre cumprir a Lei e sofrer em sua solidão silenciosa, conhecemos outra alma perdida nas noites agitadas da cidade: uma mulher que usa constantemente um disfarce nada sutil por conta da volumosa peruca loira. Sua aparência suspeita é apenas a porta de entrada para a escuridão de sua rotina. Envolvida com o narcotráfico, a mulher organiza viagens para transportar a droga em indianos pobres que se sujeitam ao trabalho de mulas. Porém, em um momento de desatenção, a mulher perde o grupo inteiro e também a droga que estava com eles, virando um alvo para a máfia local.
Antes de tudo, é preciso levar em conta o título bem traduzido do longa. Kar-Wai elabora essa primeira história realmente como um amor expresso. Esse segmento dura apenas pouco menos da metade da obra, mas pelo ritmo desenfreado apaixonante da montagem do diretor, parece passar voando. Isso também é auxiliado por conta da atmosfera que resgata os neo-noirs dos anos 1970, principalmente de Taxi Driver, por conta da narração over que nos permite conhecer bastante as mazelas daqueles dois personagens tão distintos.
É neste núcleo que Kar-Wai tem maior liberdade de ir e vir com sua câmera e aproveitar a troca dinâmica de cenários. O estilo cinematográfico gerado pelo efeito da câmera na mão confere um realismo orgânico raro de se ver, mais pertencente a um documentário direto do que uma ficção totalmente ensaiada. É possível notar que esse estilo repleto de imagens em ângulos inusitados está diretamente ligado na pressa das filmagens da obra que duraram apenas vinte e um dias.
Através da história da vida do policial 223 e da moça da peruca, o cineasta explora as ruelas caóticas de Hong Kong, bem como o estilo de vida urbano muito ligado ao capitalismo e da confusão visual trazida pelos famosos neons. De certo modo, Kar-Wai afirma que as vidas solitárias se tornam menos insuportáveis com esses rituais curiosos de compra que os dois personagens passam. Com 223, o observamos em uma jornada excêntrica da compra de diversas latas de abacaxi em conserva, comida favorita da ex, que possuem a mesma data de validade. A busca pelo devorar a validade é uma vã tentativa de 223 trazer sua amada de volta, além de elaborar uma filosofia tocante sobre o prazo de vencimento sobre as próprias relações humanas.
Para ele, tudo vence. Até a existência. Já com a moça da peruca, o lirismo desaparece para a praticidade surgir, já que sua relação com o capitalismo é oposta à do policial, afinal ela utiliza dos diversos produtos disponíveis em um mundo globalizado como instrumentos facilitadores do seu trabalho nada glorioso do narcotráfico, além de se valer da exploração da miséria de um povo alheio a sua nação.
As duas jornadas individuais são tão poderosas que quando o breve encontro dos dois acontece, o efeito é um tanto banal e decepcionante, mas nada que seja um verdadeiro defeito da obra, já que o cineasta está interessado em mostrar duas rotinas que são, de certa forma, extraordinárias, para ter justamente um clímax tão banal.
Um Trânsito Inesperado
Concluído esse ato, Kar-Wai não faz muito cerimônia para trocar totalmente o núcleo narrativo – apenas utiliza a técnica do frame congelado (também inventada por Scorsese) para realizar o efeito, além de alterar o tom do filme que agora mais se aproxima de uma pequena comédia romântica do que um neo-noir como acontecia antes. Nessa história temos os constantes encontros entre um policial 663 com a garçonete chamada Faye de uma simples lanchonete local.
Aqui, o cineasta traz a imobilidade da personagem em contraste com os aparecimentos constantes do policial simples. Essa questão de Faye estar sempre aprisionada no trabalho é colocada em choque com seus sonhos expansivos de conhecer o mundo, representado então pela repetição incessante da música California Dreamin’.
Apesar de parecer um segmento mais lento, o diretor dribla isso com elipses constantes para forçar a evolução do relacionamento dos dois que sofre uma reviravolta quando Faye toma pose de uma cópia da chave do apartamento do policial. Novamente um tratado de vidas solitárias surge, mas com uma identidade totalmente oposta e marcada pelo humor natural dos atores e das situações bizarras que o cineasta cria ao longo de toda a situação.
Agora Kar-Wai se concentra totalmente no realismo da imagem e da fluidez dos cortes entre as ações de Faye e dos encontros com 663. Além dos ângulos curiosos de pontos de vista sempre diversos, o visual sofre mudanças radicais para abandonar a fotografia sombria e colorida de neons, além de nunca mais utilizar o recurso poético dos fotogramas borrados que são tão marcantes no começo do filme. Vale mencionar também que a trilha musical, antes agitada com temas sintetizados, se torna mais romântica com composições belas criadas com pianos e saxofones melancólicos vindos diretamente de Taxi Driver – eu avisei que Scorsese era uma influência grande aqui.
A Surpresa do Amor
Poucos longas são tão apaixonantes e excêntricos sem pender para o brega repleto de idealismos bobos, mas felizmente este é justamente o caso de Amores Expressos, uma obra realmente rara de muita qualidade. Wong Kar-Wai conduz seu filme com alma muito leve, além de uma criatividade invejável para sintetizar imagens e relacionamentos humanos com filosofias universais tangíveis a todos espectadores. Essa dramédia romântica merece ser apreciada por todos.
Em quase um quarto de século de existência, Amores Expressos prova que a arte de imensurável qualidade não tem data de validade.
Amores Expressos (Chung Hing sam lam, Hong Kong – 1994)
Direção: Wong Kar-Wai
Roteiro: Wong Kar-Wai
Elenco: Brigitte Lin, Tony Chiu-Wai Laung, Faye Wong, Takeshi Kaneshiro, Valeria Chow
Gênero: Drama, Romance, Crime
Duração: 102 minutos.
https://www.youtube.com/watch?v=Bjd7PFf_TFw
Crítica | O Deserto dos Tártaros - A Paranoia da Guerra
A resiliência de Valerio Zurlini parecia não ter fim. De longe, sua carreira é uma das mais sofridas dentro da História do Cinema, já que o cineasta possuía um talento similar ao dos maiores nomes do Cinema Italiano e, mesmo assim, era completamente escanteado enquanto seus colegas continuavam a receber elogios mesmo já aposentados. Talvez seja um fato que Zurlini tenha começado a trabalhar na época, concentrando a maior parte de sua carreira nos anos 1960 enquanto o mundo prestava atenção nas novidades do Cinema Francês.
Mesmo assim, Zurlini entrou na década de 1970 com produções importantes, apesar de poucas. Em A Primeira Noite de Tranquilidade, o cineasta trouxe um panorama ideológico profundo enquanto explorava as diversas tonalidades da depressão melancólica. Em 1976, o cineasta encerraria sua carreira com o filme mais caro e mais audacioso de sua carreira: o épico solitário O Deserto dos Tártaros.
Alienação e Medo
Zurlini traz a adaptação do clássico livro de Dino Buzzati, considerado uma das obras-primas da literatura italiana. Seguindo à risco a proposta do autor, conhecemos o jovem tenente Giovanni Drogo (Jacques Perrin) que recebe alegremente a convocação de servir a guarda do Forte Bastiani, localizado nos limites do território do império que encara a vastidão do Deserto dos Tártaros, em uma eterna vigília contra os “selvagens” que lá vivem, apesar de que em toda a existência da vigília, nenhum militar ter testemunhado a existência desses nômades.
Ao chegar em Bastiani, um forte totalmente esculpido nas rochas naturais daquele lugar desolado. Uma imobilidade eterna que faz da guarnição, literalmente, parte da geografia da fronteira. Drogo se estabelece rapidamente e ganha destaque no lugar, conquistando rivalidades e amizades ao longo dos muitos anos de serviço.
Mesmo sendo uma obra escrita durante os anos 1940, Zurlini faz uma adaptação que conversa paralelamente muito bem com a paranoia da Guerra Fria e da iminência de um conflito nuclear que nunca chegou. Dessa forma, como a narrativa atravessa décadas, temos um épico solitário mostrando uma infinidade de eventos moribundos em Bastiani que não necessariamente focam no protagonista apenas. O cineasta visa criar um lugar orgânico, mas ainda assim muito artificial pelo propósito da vigília ser um tanto absurda diante dos fatos apresentados sobre a existência dos tártaros que praticamente são uma lenda entre a guarnição.
Como temos focos muito dedicados para alguns dos colegas de Giovanni, vemos como o constante estado estressante dessa impaciente espera se reverte em agressões, síndromes de pequenos poderes, além de outros elementos repletos de paixões humanas negativas. Os únicos acontecimentos que tiram o estado perene de sobrenaturalidade daquele lugar são as raras visitas de oficiais que geram luxuosos e estranhos jantares, algumas emoções noturnas de vigílias suspeitas, as breves visitas na cidade mais próxima e, por fim, nas constantes desistências de outros integrantes da guarnição.
Se tratando de um drama silencioso, com pouca quantidade de diálogos e muita contemplação dos ricos cenários e paisagens estonteantes, Zurlini deixa a cargo da passagem temporal para desenvolver as angústias de Giovanni que transita sempre no conflito eterno se deve ou não abandonar seu posto, mesmo quando acaba gravemente doente. O cineasta mostra um aspecto muito íntimo da vida militar e sobre a honra que os homens guardam que praticamente os transformam em uma parte vitalícia de Bastiani, mesmo que o lugar seja inóspito e nada agradável.
A vida acaba se resumindo apenas ao ofício e nada além disso. O ritmo vagaroso da montagem em um filme já excessivamente longo, transfere perfeitamente essa angústia da imobilidade, do tempo congelado e da perene situação que aqueles homens se encontram, desperdiçando vidas inteiras. Ao mesmo tempo que Zurlini cria uma crítica às guerras, também mostra a necessidade da vigília ao concluir a obra em um dos momentos mais angustiantes de sua filmografia inteira.
Sua tristeza e desesperança transparecem com temas densos que ele traz aqui, já indicando o rápido avanço da melancolia que por fim também conduziria Zurlini para o suicídio. A solidão, a morte e a tortura de uma vida sem prazeres e alegria resplandece nas imagens sombrias e monocromáticas do lugar, além do contraste sempre evidente entre os uniformes militares com o branco amarelado do calcário de Bastiani indicando o fato de não-pertencimento e alienação.
É uma atmosfera similar a de um museu abandonado com certo misticismo assombrado que o cerca. Zurlini nunca havia acertado tanto na atmosfera de uma obra como ocorre aqui. O trabalho de câmera, mesmo que seja sutil e muito menos movimentado que obras anteriores, possui grande precisão cinematográfica, potencializado sempre pelo uso correto da trilha musical, além da segmentação correta da montagem que compreende toda o paradoxo da atmosfera ser inquietante e, ainda assim, muito tranquila.
O Silêncio do Isolamento
Entre diversos filmes de sua carreira, O Deserto dos Tártaros certamente é um dos mais desafiadores de Zurlini. O conceito do silêncio, medo e isolamento são trabalhados de modo realmente sublime, mas exigem muito tempo em um filme já bastante longo que explora situações redundantes propositalmente para exibir essa crítica à guerra e ao medo do desconhecido. Sendo a última obra de sua vida, nota-se a grande preocupação do cineasta dar tudo de si para criar um épico solitário que poderia ser melhor lembrado pelos curadores da crítica histórica responsáveis em jogar luz a obras relativamente desconhecidas.
Difícil, indigesto e por vezes confuso, há imagens assombras aqui que mostram todo o cansaço de um artista talentoso totalmente negligenciado tanto em vida quanto na morte. Essa era a carta de despedida de Zurlini.
O Deserto dos Tártaros (Il deserto dei tartari, Itália, França, Alemanha Ocidental – 1976)
Direção: Valerio Zurlini
Roteiro: Valerio Zurlini, Dino Buzzati, André G. Brunelin, Jean-Louis Bertuccelli
Elenco: Jacques Perrin, Vittorio Gassman, Giuliano Gemma, Helmut Griem, Philippe Noiret, Max Von Sydow
Gênero: Drama, Guerra
Duração: 140 minutos.
https://www.youtube.com/watch?v=79JjUel7q3E
Crítica | A Primeira Noite de Tranquilidade - A Depressão de Zurlini
O irremediavelmente desconhecido Valerio Zurlini, um diretor italiano de excelente qualidade, sofreu uma queda ainda pior de popularidade após Dois Destinos, seu segundo maior sucesso durante os anos 1960. Experimentando um constante fracasso, mas lidando com valorosos elogios, o cineasta entra nos 1970 praticamente reformulado, mais sábio e mais deprimido.
O primeiro de seus dois filmes nesta década seria o ótimo A Primeira Noite de Tranquilidade que comprova a relevância do nome de Zurlini no Cinema Mundial em conquistar atores repletos de talento para integrar em suas produções. No caso, o galã francês, Alain Delon, que já havia trabalhado com nomes gigantescos do Cinema Italiano como Luchino Visconti, é o protagonista desse filme profundamente melancólico que trazia muito do ar dos dramas noir urbanos que fariam fama na Nova Hollywood nessa mesma década vide o sucesso de Taxi Driver.
Almas Perdidas
Uma década é capaz de mudar profundamente um artista. Zurlini já era conhecido pelo seu ativismo ideológico expresso de modo sutil e elegante em sua arte, mas ainda assim sempre havia um resquício de atmosfera romântica. Embora ela exista nesta narrativa, Zurlini demonstra sua maturidade como roteirista ao centrar sua história de um modo mais compreensível que o visto em outros de seus filmes.
A começar, temos um protagonista mais interessante pela apresentação repleta de minúcias curiosas sobre sua personalidade. Daniele Dominici (Alain Delon), um poeta especializado na literatura italiana, é contratado como professor substituto no Liceu. Apesar de seu nítido desinteresse em tudo que há a sua volta, incluindo o casamento fracassado, o homem cumpre sua rotina como docente até reparar em uma bela jovem estudante, Vanina Abati (Sonia Petrovna).
Ela, namorada de um ricaço local, tem fama de prostituta na escola, mas Dominici não dá ouvidos e acaba se aproximando da moça. Inevitavelmente, a misteriosa mulher e o homem deprimido se apaixonam de modo bastante ambíguo, mas que leva somente a um trágico destino.
Embora tenhamos uma estrutura bem intimista para o romance entre esses personagens, Zurlini se apega ao tempo e ao ritmo lento para trazer retratos realmente humanos dessas duas almas sofridas que entram em sintonia quando finalmente encontram o diálogo que tanto procuravam para dar razão à própria existência.
Enquanto Dominici é um espírito mais livre, não se importando com seu futuro, já que ele não possui nada, vemos como Vanina é uma mulher aprisionada por conta da sua dependência financeira pelo namorado Marcello. Zurlini mostra a relação conturbada que ambos possuem, com o personagem tratando sua namorada como um mero objeto de prazer sexual para ser exibido como um troféu. Tudo é feito através da encenação muito clara de Zurlini que atinge ápices em A Primeira Noite de Tranquilidade sendo facilmente um de seus filmes mais poderosos visualmente.
Na metade do longa, por exemplo, há um trabalho cuidadoso entre planos e contraplanos mostrando Dominici observando Vanina dançar com seu namorado horas depois dos dois terem trocado o primeiro beijo apaixonado em um momento bastante romântico. O diretor quebra o estado mental de serenidade do protagonista com essa revelação perturbadora, além da mulher se comportar de modo mais frio. É uma cena realmente magnética e poderosa que estabelece todo o conflito de intenções que rola nessa triangulo amoroso: o desejo depressivo de Dominici, a sordidez de Marcello em perceber que os dois estão apaixonados e, por fim, a melancolia da bela aprisionada.
Praticamente um ditame narrativo de contos de fada transportado em um realismo perturbador. Zurlini traz novamente um choque de classes, portanto, mas de modo orgânico, já que Marcello também é um personagem foge dos tons mais superficiais que filmes ideologizados tendem a seguir. O cineasta vê o pobre como propriedade do rico e também totalmente desornado quando enfim consegue conquistar sua independência, muito por conta do medo da retaliação pela violência. Nesses níveis, o filme é muito eficiente em não soar pedante, mas sim trágico e poético.
Com o desenvolvimento dos personagens, a mesma excelência é apresentada. Uma pena que, por termos um punhado de outros rapazes, alguns causem certa confusão para o espectador. Mas no que realmente importa, o protagonista e seu triângulo amoroso, é algo bem trabalhado com diversos diálogos de qualidade. Até mesmo a relação com sua esposa, totalmente conturbada, é curiosa pelos nítidos casos de projeção que ele cria através do falso desejo do protagonista.
Zurlini apenas perde a mão no terceiro ato bastante burocrático apesar do início potente culminando no conflito entre Dominici e Marcello por Vanina. Com situações apressadas e despedidas de pouco sentido, além de surgimentos inesperados de outros personagens já claramente esgotados como Spider. Mesmo concluindo o longa preservando o cenário decadente e muito infeliz proposto desde a primeira cena, há muita confusão para Zurlini chegar até ali, perdendo o momentum que havia conquistado pela concretização do novo casal.
Na direção, é curioso notar que mesmo trazendo a atmosfera depressiva, o cineasta ainda maneja as cenas com movimentos de câmera precisos para alterar os enquadramentos em dois momentos, favorecendo a movimentação dos atores posicionados milimetricamente na composição. É um capricho cinematográfico bastante clássico que vai de encontro com a pesada narrativa. Embora haja esse vigor cinematográfico, nem mesmo ele consegue tirar o longa do marasmo provocado pelos minutos finais.
Uma Noite Sem Sonhos
Zurlini prova que, às vezes, o avançar do tempo pode trazer maturidade o suficiente para tratar de obras mais complexas que oferecem diferentes tipos para conflitos há muito experimentados como o caso do triângulo amoroso. A Primeira Noite de Tranquilidade é um dos melhores filmes de sua pequena filmografia e certamente merece ser conferido por um cinéfilo que esteja atrás de nomes injustamente desconhecidos. Zurlini é grande e até hoje é carente do reconhecimento que não recebeu em vida.
A Primeira Noite de Tranquilidade (La prima notte di quiete, Itália – 1972)
Direção: Valerio Zurlini
Roteiro: Valerio Zurlini, Enrico Mediolli
Elenco: Alain Delon, Giancarlo Giannini, Sonia Petrovna, Renato Salvatori, Lea Massari, Salvo Randone
Gênero: Drama
Duração: 132 minutos.
https://www.youtube.com/watch?v=RYCb6-EdTiw
Crítica | Desafio Infinito - Thanos, o Todo-Poderoso
Sendo uma leitura tão clássica no rol das Sagas da Marvel, é curioso e cruel a dificuldade que diversos fãs tiverem por anos para conferir Desafio Infinito, a clássica HQ de Jim Starlin que inspirou o filme ápice da Marvel nos cinemas: Vingadores: Guerra Infinita. Felizmente, em uma jogada de sorte, o consagrado quadrinho enfim recebeu um tratamento de luxo pela Panini em lançamento simultâneo com o filme.
O resultado foi o esperado: edições esgotadas com extrema rapidez a ponto que eu mesmo me considero sortudo por ter encontrado um exemplar. No meu caso, esta seria a primeira vez que leria a tão almejada e elogiada saga. Nesse compilado, há a presença bem-vinda de Thanos em Busca do Poder, uma minissérie que mostra a ressurreição do vilão pela própria Morte e logo depois indo em busca das seis Joias do Infinito.
Apesar de não ser uma leitura obrigatória, recomendo que o leitor gaste seu tempo para saborear essa introdução muito divertida que pode até mesmo cativar mais que o arco principal em si. Isso ocorre principalmente por conta do jeito bem direto de Starlin ao iniciar Desafio Infinito com Thanos se desesperando em não conseguir cativar a Morte, sua verdadeira paixão, por conta de ter ficado ainda mais poderoso que ela própria ao reunir as Joias do Infinito.
Com as constantes ignoradas silenciosas da entidade, Thanos enlouquece e passa a realizar proezas maléficas sempre crescentes a ponto de considerar dizimar metade da vida no Universo para provar seu amor. Após realizar essa loucura, os principais heróis e seres cósmicos da editora se reúnem para impedir que o vilão acabe destruindo até mesmo a realidade que todos vivem.
A Luta Infinita
Há muitas qualidades na narrativa de Starlin ao conseguir manejar uma história crível para um vilão onipotente e indestrutível. Com as primeiras edições mostrando tanto o núcleo de Thanos com a morte, seu irmão Eros, Mefisto e a neta Nebulosa, o roteirista é particularmente muito cuidadoso em exibir uma jornada decadente de um “deus” rejeitado disposto a tudo para conquistar a amada. Apesar da ideia de vermos um personagem apaixonado pela Morte, literalmente, ter envelhecido mal, o conceito é vital para que a história se desenvolva a ponto de justificar as trapalhadas muito pueris que Thanos comete em momentos-chave da história.
Starlin faz um contraste nítido entre o Thanos intelectual e estrategista de Em Busca do Poder com o vilão muito emocionado e aborrecido, repleto de birras, que vemos aqui. Tanto que suas cenas logo parecem redundantes já que o vilão apenas surge para cometer atrocidades ainda maiores. O irônico é que, apesar disso, seu núcleo é facilmente o mais interessante, pois há uma verdadeira mistura de heróis sendo que alguns são claras exigências da editora.
Em geral, apenas Doutor Estranho, Surfista Prateado e Adam Warlock – vital para essa saga, que possuem relevância nesse cenário. Aliás, os embates nervosos entre o Surfista e Adam valem bastante para transmitir o quão inflexível é Warlock sobre suas cruéis estratégias para tentar dizimar Thanos. Apesar do texto ficar bem fraco e até mesmo burocrático com as mudanças entre núcleos mostrando diversas reações pelo Universo por conta do terrorismo do vilão, há a curiosidade de como Starlin consegue de modo bem objetivo resgatar figuras cósmicas pouco conhecidas pelo grande público da editora.
Mesmo que haja uma sensação de incômodo pela falta de conhecimento, Starlin rapidamente supre isso com a demonstração rápida de poderes ou através da narração expositiva ora de Eros, ora do Vigia que assiste todo o confronto impassivelmente. Mesmo que tenhamos uma disparidade enorme entre níveis de poder com os Vingadores e Thanos, há uma boa desculpa para motivar o vilão a não ser Todo-Poderoso durante o confronto, possibilitando uma brecha para que Warlock faça uma investida de mestre contra o antagonista.
O quebra-pau oferecido pelo lendário George Pérez em seus desenhos, trazem um escopo de batalha, apesar de grandioso e épico, bastante centrado e criativo, permitindo que o vilão dizime os heróis favoritos dos leitores sempre de modos bastante peculiares. Como Pérez sempre possui uma visão cinematográfica para a diagramação dos quadrinhos, o efeito é quase sempre bem arrebatador e imersivo.
Apenas há uma desordem quando tanto Starlin e Pérez apostam no abstrato para trazer a luta do Titã contra os poderosos seres cósmicos até termos, enfim, a reviravolta muito curiosa. Embora seja um momento icônico da saga, também revela um buraco narrativo em Desafio Infinito, já que vemos Doutor Destino quase morrer automaticamente ao tentar remover a Manopla do vilão. Embora isso seja um erro de quebra de regras bastante grave, Starlin compensa pela imprevisibilidade do evento permitindo uma escala de piora dos cenários e da probabilidade do plano de Warlock dar certo.
Justamente por isso, em um Universo já totalmente devastado, que temos uma edição final muito interessante devido a completa imprevisibilidade da escrita, ainda que Starlin recorra a um recurso narrativo banal para colocar a ordem da Casa das Ideias de volta aos trilhos. Também é incômodo que a Morte acabe totalmente escanteada e até mesmo desaparecida nos momentos finais dessa história. Ao menos há uma conclusão corajosa que acabou ficando eternizada para o destino final de Thanos.
O Desafio de Ignorar
Regada de elogios merecidos, principalmente pela condução repleta de surpresas por Starlin, Desafio Infinito é uma obra que merece seu lugar de destaque na estante de qualquer colecionador ou fã da Marvel. Mesmo que não seja uma história perfeita, livre de falhas ou confusão, há momentos simplesmente icônicos que marcaram uma saga bastante corajosa para uma década que se provaria tão árdua para a editora em termos criativos. É uma leitura simplesmente obrigatória, ainda mais nesse momento tão especial.
Desafio Infinito (Infinity Gauntlet, EUA – 1991)
Autor: Jim Starlin
Arte: George Pérez, Ron Lim
Cores: Max Scheele
Editora: Marvel Comics
Páginas: 238
Que Símbolo era Aquele? | O Final de Vingadores Guerra Infinita Explicado
SPOILERS
O final de Vingadores: Guerra Infinita é desalentador. Impossível ficar tranquilo depois de vermos Thanos concluir o objetivo de sua cruzada, estalar os dedos e dizimar metade do universo. Nessa queda, vemos diversos amigos de longa data simplesmente sumirem da existência como Homem-Aranha, Pantera Negra, Bucky Barnes, Falcão, Drax, Mantis, Groot, Peter Quill, Doutor Estranho e Feiticeira Escarlate. Outros já haviam morrido de formas mais violentas como Loki, Heimdall, Gamora e Visão.
Logo, os sobreviventes, em suma, se resumem aos Vingadores da primeira formação, além de um possível auxílio de Rocket Raccoon, Nebulosa e Máquina de Combate no próximo filme. Entretanto, enquanto não temos uma pista se quer de como o grupo de heróis derrotado poderá reverter a situação em Vingadores 4 durante o longa em si, há uma valiosa pista que muita gente pode não entender durante a cena após os créditos.
Nela, vemos Nick Fury e Maria Hill presenciando o desaparecimento de diversas pessoas que se transformam em pó. Decorrência, obviamente, do estalar dos dedos de Thanos durante o clímax. Ao observar Maria Hill morrer em frente aos seus olhos, Fury rapidamente vai até seu carro e pega um dispositivo e envia uma mensagem.
De Volta para o Passado?
Ao perceber que também não sobreviverá a esse ataque sem precedentes, acaba deixando o aparelho cair no chão. Vemos então um pager – dispositivo de comunicação clássico de 1990, bastante modificado. A mensagem é recebida por alguém que logo responde com o próprio símbolo. Esse alguém é ninguém menos que a própria Capitã Marvel.
Com a estreia marcada para o começo do ano que vem, será uma obrigatoriedade assistir ao filme solo da heroína para entender a narrativa do próximo Vingadores. Como o filme ocorre durante os anos 1990, é bem provável Fury tenha enviado uma mensagem para o passado, provavelmente. É bem capaz que tenhamos uma narrativa que envolve então a alteração da linha temporal, já com os Vingadores partindo atrás de Thanos imediatamente após a Batalha de Nova Iorque em Os Vingadores – fotos do set já mostram os heróis com uniformes antigos.
Porém, por outro lado, é bem possível que Steve Rogers apenas tenha aceitado seu antigo uniforme de volta, eliminando parcialmente a narrativa que envolve alteração da linha temporal que permitira o retorno de todos os personagens que foram mortos nas mãos de Thanos.
A segunda probabilidade para o retorno desses heróis, porém somente os quais viraram pó ao fim do filme, é a destruição da Joia da Alma ou a manipulação benevolente desta. Dentro da Joia, há uma dimensão chamada Soul World que preserva as almas em uma espécie de Purgatório eterno. É capaz que tenhamos visto essa dimensão quando Thanos estala os dedos e logo se encontra em um lugar misterioso reencontrando Gamora enquanto troca um bonito diálogo.
Logo, fiquem todos tranquilos, pois teremos muitos dos heróis que pereceram neste longa novamente vivos para futuros filmes desse universo sempre em expansão da Marvel nos cinemas. Muito em breve publicaremos uma lista com as principais teorias sobre o que pode acontecer no novo filme do supergrupo.
Crítica | Dois Destinos - O Grande Melodrama de Zurlini
Apesar de não ser um dos maiores realizadores italianos e não possuir vasta filmografia, Valerio Zurlini certamente tem sua parcela de importância. Mesmo sendo repleto de ideologia, Zurlini sempre foi capaz de contar histórias com fundos sociais de panoramas complexos sobre injustiças e sofrimentos, mas também aliava isso a um escopo gigantesco de drama profundamente romântico e sensível.
Ainda que Dois Destinos não seja o longa mais comentado de sua breve carreira – este posto é o do histórico A Moça com a Valise, Zurlini traz seu melhor para a obra que apenas sofre de um roteiro excessivamente burocrático para uma história relativamente simples, mas repleta de complexidades emocionais que podem fisgar facilmente o espectador.
Amor Fraterno
Zurlini traz uma adaptação pouco conhecida de um romance ainda menos conhecido de Vasco Patrolini. Apesar de não haver muita clareza e objetividade no silencioso começo da obra, conhecemos Enrico (Marcello Mastroianni), um jornalista bastante pobre que recebe a péssima notícia de que seu irmão havia morrido naquela tarde. Desolado, Enrico caminha para sua humilde moradia e passa a recordar dos últimos momentos de Lorenzo (Jacques Perrin).
A maior burocracia da obra está no momento da transição para o enorme flashback que é todo o filme, pois Zurlini não demarca isso com muita clareza através de seu estilo sutil e pouco ousado com a montagem. Como o longa é basicamente conceitual, se apoiando incisivamente no texto, temos muitas cenas de diálogo entre os dois irmãos. Desde o encontro até a despedida.
Zurlini procura estabelecer um forte contraste social entre os dois homens, sendo Enrico o irmão mais velho. O drama envolve um grande trauma do passado já que o protagonista presenciou sua mãe abdicar da guarda do recém-nascido Lorenzo para um rico casal inglês. Os dois crescem separados. Um na fartura e outro na miséria. Mas enquanto um sofre com a realidade econômica de uma Itália complicada, ainda aproveita o amor maternal biológico, enquanto Lorenzo simplesmente vive dentro de uma bolha até decidir descobrir suas raízes.
Isso leva a uma infinidade de situações ternas e muito humanas com Enrico tentando acolher o irmão mais novo enquanto apresenta a dureza da vida real, dos problemas sociopolíticos do pós-Guerra e também a própria família – pelo menos a avó, já que a mãe dos dois já havia morrido. Entretanto, como temos somente essa longa apresentação e alguns poucos conflitos envolvendo a falta de noção de Lorenzo, rapidamente há um esgotamento narrativo já que os personagens parecem imóveis.
Não fosse a atuações hercúlea fenomenal de Mastroianni, o filme de Zurlini não teria grande impacto apesar do diretor ser talentoso em seu estilo romântico repleto de ênfase na grandiosa trilha musical acompanhadas de movimentos de câmera elegantes e vagarosos. Quando enfim chega na virada derradeira da obra, com a doença inexplicável de Lorenzo, temos o maior contraste entre indubitável qualidade e defeitos medíocres.
Os defeitos, infelizmente, se concentram na atuação de Jacques Perrin, extremamente fraco para conseguir oferecer o peso dramático que suas cenas moribundas tanto necessitam. E não ajuda nada o fato dele atuar do lado de Mastroianni que está inspiradíssimo transmitindo um amor tão forte por seu “irmão” que é quase palpável de tão realista. O texto também se comporta de modo bastante melodramático, além de Zurlini oferecer abraços acalorados e closes repletos de lágrimas quando a iminência da morte se aproxima.
Apesar dos dois destinos serem a principal mensagem da obra, da luta pelo viver, o espectador deve considerar o fundo político que Zurlini quer dizer aqui, afinal o contraste do rico com o pobre e da completa desestrutura do rico não são por acaso. O cineasta transmite a delicadeza do irmão mais favorecido através da jovialidade, fragilidade, das vestes sempre de tons mais claros, além da delicadeza completa das feições do ator. Já com Enrico, temos o contrário, afinal Mastroianni era bastante robusto e feições mais masculinizadas, além de sempre vestir roupas mais escuras e ser acostumado com a dureza do ambiente que vive.
Com isso, mesmo vivendo na sujeira e sem poder ter grandes perspectivas de futuro, Zurlini faz de Enrico um lutador apto para encarar as enormes adversidades do viver enquanto Lorenzo, seu completo oposto, não. Adoece e padece. Mesmo que seja uma visão simplista entre classes, o cineasta é bastante terno em afirmar que não importa se somos ricos ou pobres, todos são irmãos sofredores em um mundo indiferente.
A Crônica Familiar
Há sim diversos probleminhas com Dois Destinos, principalmente nos que tangem a montagem e a fluidez desta boa história que Zurlini pretendeu contar. Com tanta delicadeza e um olhar realmente humano sobre o problema atemporal da enorme desigualdade, o cineasta italiano criou um pequeno clássico repleto de grandes momentos com uma atuação assombrosa de Mastroianni.
Dois Destinos (Cronaca Familiare, Itália – 1962)
Direção: Valerio Zurlini
Roteiro: Valerio Zurlini, Vasco Pratolini, Mario Missiroli
Elenco: Marcello Mastroianni, Jacques Perrin, Salvo Randone, Serena Vergano
Gênero: Drama
Duração: 110 minutos.
https://www.youtube.com/watch?v=4kaz4vVmzI0
Crítica | Mogli: O Menino Lobo (1967)
Razão
Certos filmes crescem a partir do momento que passamos a descobrir, pouco a pouco, os acontecimentos de seus bastidores. Todas as complicações e alegrias vindas da produção inteira de uma obra de tamanha complexidade. Seja com as histórias absurdas e fantásticas vindas diretamente da nova Hollywood dos anos 1970 ou aqui, em uma obra considerada pequena diante de outros filmes que Walt Disney produziu ao longo de sua carreira sendo Mogli a última animação que teve seu envolvimento direto.
A concepção para uma animação baseada na obra de Rudyard Kipling veio de Bill Peet, um ilustrador parceiro de Disney desde A Branca de Neve e os Sete Anões. Tendo trabalhado em praticamente todos os longas animados de peso como Pinóquio, Dumbo, Fantasia, 101 Dálmatas, Peter Pan e Cinderela, Peet era uma figura de extrema confiança dentro do estúdio.
Porém, assim como Disney, Peet veria sua história no estúdio acabar também em Mogli. O motivo foi simples e compartilhado em suas memórias: divergências criativas. Peet fez diversosstoryboards para o filme, porém, sempre guiando a história para tons mais sóbrios, sombrios e reflexivos vindos diretamente do livro de Kipling. Incomodado pelo pouco envolvimento pessoal com projetos de longas-metragens e das críticas a 101 Dálmatas e A Espada era a Lei, Walt Disney decidiu intervir mais em Mogli.
Ao se deparar com a coloração sombria que seu filme estava tomando, imediatamente foi reclamar com Peet que permaneceu irredutível em relação as mudanças propostas por Disney. Nisso, após desenhar praticamente todos os storyboards da obra, Peet abandonou o projeto e também seu emprego no departamento de animação. Uma cisão que marcou história abalando o restante da equipe.
Entrando de cabeça no projeto, Disney orientou a produção inteira para formar uma das animações mais fantásticas de sua história. A guinada para o tom mais leve, divertido e muito livre da obra original foi feita assim como desejava Disney. Nisso os quatro roteiristas, principalmente Lerry Clemons, se dedicaram em tornar a aventura de Kipling menos fragmentada e burocrática. Simplificaram tudo ao máximo até dar origem a história que temos aqui.
De fato, eles pouco se preocupam em estabelecer algum backstory para Mogli, afinal os storyboards de Peet – sim, muitos foram mantidos por Disney mesmo depois da saída dele do projeto – já conseguem sugerir que Mogli é uma criança perdida graças a uma enchente que levou o barquinho onde estava até a floresta. Os indícios da tragédia só são sugeridos e nunca abordados de frente. Talvez por saber que já estava no fim de sua vida, Disney viu essa necessidade em deixar sua última obra com o tom mais leve possível.
O núcleo narrativo com os lobos, significativamente maior no livro, também é resolvido rapidamente. Há algum vislumbre de Mogli e sua felicidade em conviver com sua família de lobos. Apenas é avisado ao espectador, durante uma reunião do conselho da alcateia, que Shere Khan, um maligno tigre-de-bengala que odeia os homens, voltou para aquele território da floresta à procura de Mogli colocando em risco todos os lobos. Sem a consciência do garoto, Baguera o leva para uma caminhada com a intenção de separá-lo da alcateia.
Com o início da jornada até a aldeia dos homens, a aventura começa de vez. O caráter episódico realmente desaparece e as coisas acontecem com naturalidade a cada inserção de novos personagens abarrotados de carisma. Com todos, há cenas boas de desenvolvimento. Algumas se dão pelas tradicionais canções da Disney que sempre agregam mais para a narrativa do que até mesmo os diálogos.
Os personagens, em maioria servem como alegorias, fugindo do básico. Para a tropa dos elefantes do general Rathi, há certo contexto que sugere um veterano saudoso das tropas dos antigos tempos – Segunda Guerra e Guerra da Coréia, enquanto se comporta com novos recrutas desanimados. Se levarmos em conta o ano da produção de 1967 e com o fim da Guerra do Vietnã acontecendo somente em 1975, é possível depreender o que Disney queria dizer aqui. Até há a menção ao corte de cabelo “rebelde” de um dos elefantes até ser cortado por Rathi à escovinha, corte tradicional do exército. Também é possível interpretar a confusão da tropa como uma boa metáfora à ocupação inglesa na Índia que só veio a terminar em 1947, vinte anos antes de o longa ser lançado.
Esse pequeno núcleo narrativo é onde os roteiristas passam a desenvolver Mogli apropriadamente, se não considerarmos o breve diálogo que ele tem com Baguera após partir de sua casa. Mogli então, ainda sem entender o que é ser um humano, passa imitar outros animais. Isso ocorre durante o filme inteiro, mas é mais explícito com os elefantes, com Balu e na sequência do Rei Louie.
Aparecendo sem a menor cerimônia, espontaneamente, surge o melhor personagem do longa, o simpático urso Balu. Ao contrário de outras obras como O Cão e a Raposa, Reitherman e os roteiristas conseguem imprimir rapidamente essa forte união entre Mogli e Balu inferindo até mesmo uma mensagem bonita sobre adoção. Na possivelmente melhor canção de uma trilha musical fantástica, eles bolam um divertido jogo onde Mogli tenta imitar as ações de Balu, mas nunca conseguindo ser bem-sucedido graças as diferenças naturais entre os dois: pele, força e peso.
Neste roteiro, Mogli tem suas decisões mais respeitadas por Baguera que não insiste em levar o garoto embora depois que Balu o adota. Aliás, Baguera pouco insiste em praticamente a tudo em relação a Mogli, porém o sentimento de compromisso é sempre presente para socorrer o garoto. É bem verdade que o filme praticamente joga a pantera em escanteio a partir do momento que Balu surge, algo que considero bem adequado visto a energia e presença de cena que o urso possui.
Logo depois do discurso do desapego e livre de stress que Balu prega, evocando o modo de vida descompromissado, Mogli é sequestrado pelos macacos. Então, pela primeira vez, Balu é confrontado com a responsabilidade. Sem reação, ele clama ajuda de Baguera. Isso é importante destacar, pois é o primeiro dos três momentos definitivos da evolução de Balu ao longo do filme – é um cerne deveras profundo e emocionante do longa.
Chegando ao templo abandonado onde o Rei Louie vive, Mogli tenta se adaptar mais uma vez a um novo ambiente. Somente neste trecho, há a menção ao fogo, um elemento que Kipling marreta no livro inteiro com o nome de “flor vermelha”. Algo que Mogli nunca tinha visto em sua vida. O interessante disso é que a motivação de Louie é extremamente perversa e genocida – novamente, estamos falando do século XX, um dos mais violentos de nossa História e, além disso, Rei Louie é um personagem original do longa animado. Louie quer o fogo para dominar a floresta, representar uma ameaça a todos os animais refletido também pelo desejo de se “transformar” em homem – ainda que seja no sentido figurado a partir do momento que ele dominaria o fogo. Entretanto, é interessante como o orangotango tem essa motivação autodestrutiva em sua conquista insana e narcisista, exatamente como nós, homens. Sem saber, o macaco já tinha virado Homem com seus pensamentos torpes.
Já tive esse tipo de percepção sobre as entrelinhas muito inteligentes que Disney colocava em seus filmes, principalmente com Dumbo. Ainda acho um exercício maravilhoso ver como nosso olhar acerca desses filmes mudam tanto conforme ficamos mais sábios. Mogli é um filme extremamente presente na minha infância, eu amava cantar Somente o Necessário e ver Rei Louie cantando Quero ser como você e dançando junto de Balu. No alto de minha inocência, se tratava apenas de uma canção muito divertida e de personagens carismáticos, alegres e cheios de vida. Que realizador genial. Uma perspicácia em tornar seus filmes atemporais que pouquíssimos mestres têm.
Ainda na sequência de Rei Louie, Balu falha em ser responsável. Se encanta pela canção dos macacos e coloca em risco a segurança de Mogli. Porém, com tudo dando certo no final, seguimos para a cena onde ocorre a segunda vez onde o urso é confrontado por Baguera que insiste para que Mogli retorne à vila dos homens. Esse segmento não é nada menos que genial, além do teor do diálogo ser bastante denso envolvendo diversas problemáticas. Mas também quando Balu, de acordo com Baguera, vai conversar com Mogli para trazer as más notícias.
Nessa cena, Reitherman e os animadores acertam em cheio ao apostar nos contrastes da animação de Mogli e Balu. O garoto está todo agitado e feliz em viver como um urso, achando a vida do somente o necessário a melhor coisa que poderia lhe acontecer, pulando pelo cenário caçando uma borboleta e estampando um belo sorriso. Já Balu anda com passos lentos, gesticula com melancolia e desespero, seu rosto é cheio de expressões que buscam a coragem necessária para contar algo que sabe que partirá o coração do menininho. Essa é a primeira transformação de fato onde Balu age sozinho com responsabilidade, ainda que impulsionado por Baguera.
A transformação na atmosfera da linguagem corporal dos dois é sentida a partir do momento que Balu finalmente confronta Mogli que foge para a floresta. Talvez, nessa parte, o filme perca um pouco de sua força costumeira. Nas três cenas que constituem nesse segmento, Mogli se sente abandonado e sozinho, é quase comido novamente por Kaa – a cobra carismática cheia de sinusites e de olhares hipnotizantes – Baguera e Balu pedem ajuda para a tropa de Coronel Hathi – um arco que é logo esquecido, mas que finalmente introduz Shere Khan. O antagonista é excelente, ainda que receba pouco tratamento no roteiro bastante expositivo, porém os diálogos, a malícia expressada por suas caras e bocas, o design de corpo esguio com patas corpulentas repletas de enormes garras e o trabalho de voz impecável de George Sanders tornam esse personagem absolutamente poderoso, vivo em nossa memória.
Sensibilidade
Nisso, Mogli volta a tentar ser bicho, pela última vez, dentro de um subtexto absolutamente sinistro com os abutres, uma sequência que antecede o clímax do longa. O quarteto de abutres que funcionam como um barbershop quartet foram feitos inicialmente com a intenção de serem dublados pelos Beatles figurando em um número músical de rock, porém os planos de Disney morreram assim que John Lennon recusou com um simplório “não”. Acertadamente o núcleo dos abutres foi mantido. Eles injetam nova vida ao filme quando Mogli está completamente triste e sem a menor identificação com ninguém.
As aves puxam a canção para tentar animar o garoto, mas a letra é genial, pois toca temas como a morte, a solidão e a alimentação deles mesmos. Na versão dublada, a adaptação é ainda melhor – aliás de todas as canções, foi um trabalho excepcional que marcou história da dublagem nacional. Eles dizem que são os amigos de todos vós, na solidão, eles alegram o coração de todos, uma fina ironia. Se está perto do fim, com o sofrimento atroz, quem vem são eles. Quando não há nenhum dos seus, a vida vem dizer adeus, eles não recusam animal nenhum. Se ele por acaso perder a voz, quem vem são os abutres. Colocar um número musical com essa letra, dentro do contexto de tentar alegrar Mogli sugerindo a iminência de sua morte – Shere Khan encerra a canção dos abutres, é algo de riqueza e sensibilidade cinematográfica digna de aplausos.
No clímax, com o confronto de Shere Khan, tanto Mogli quanto Balu, finalmente se transformam em definitivo. Balu, dessa vez completamente sozinho e agindo por conta própria, defende o garoto ao lutar com o tigre, quase morrendo no embate – altruísta e responsável deixando sua filosofia de vida de lado por um momento. Já Mogli, abraça a humanidade ao manipular o fogo pela primeira vez, porém agindo a favor de seu amigo amarrando o arbusto em chamas na cauda de Shere Khan que foge, aterrorizado. Em mais um jogo de cena inteligente, Reitherman consegue tirar o clima sombrio e pesado da morte de Balu com Baguera declamando um discurso em memória ao sacrifício do urso que acorda em meio a isto tudo e fica escutando as belas palavras de Baguera. Assim o diretor rapidamente abandona o único momento verdadeiramente triste do filme com muita organicidade.
O final clássico também mantém o tom leve, cômico do filme. Com Mogli sendo conquistado por sua semelhante: uma garotinha misteriosa que se interessa pelo garoto que se torna, enfim, humano. Uma jornada completa e quase livre de falhas. Mas não é somente o bom roteiro que brilha aqui. Mesmo com orçamento limitado por conta do fracasso comercial de A Espada era a Lei, Disney diminuiu o contingente de profissionais. De quarenta animadores, sobrou um time de cinco mestres de longa data para fazer todas as animações dos bichos.
Para a sorte deles, Wolfgang Reitherman foi o escolhido para dirigir o filme e, graças as técnicas de reciclagem de animações de outros filmes e também do próprio projeto, os animadores tiveram uma carga menos avassaladora de trabalho. Além de ser um diretor muito mais contido na já muito limitadas movimentações de câmera em desenhos tradicionais. Em diversas passagens do filme é perceptível como Reitherman repete as dancinhas alegres de Mogli ao bater palmas e se chacoalhar de lá e para cá ou com a exata mesma sequência para as duas cenas com a tropa do Coronel Rathi. Ou até mesmo com animações vindas de 101 Dálmatas. Porém nada tira o brilho e dedicação deles ao estudar a movimentação de felinos para animar Baguera a Shere Khan – aliás, com toda a graciosidade, além de conferir o peso necessário em seus passos. Com Balu, muita coisa é artificial, porém há um empenho notável em detonar tantas expressões sejam corporais ou faciais em todos os personagens. É uma gama vasta de refinamento vindo de anos de experiência dentro dos estúdios Disney que talvez tenha marcado o ápice da carreira desses animadores.
Diversas sequencias de dança contam com animações complexas como a de Balu com o Rei Louie, além dos outros personagens que preenchem o cenário no momento da canção. Porém nada impressiona mais do que a movimentação de Kaa em sua sessão de hipnose contra Mogli. A cobra se transforma em diversos caminhos onde Mogli anda incessantemente até ser envolvido completamente pelo abraço mortal dela.
Fora do campo das animações, os artistas de background também brilham com diversas composições exuberantes e paradisíacas para ilustrar a floresta onde Mogli vive. Tudo cheio de vida, cor e energia. Apenas durante a clímax que o cenário se torna estéril, junto com o estado de espirito derrotista do menino naquele momento.
Reitherman também aborda vertentes do pensamento “russeauniano” sobre o bom selvagem com Balu e Mogli. A comédia é quase sempre trabalhada na base do slapstick, além de vibrações cômicas geradas pelo sempre presente michey mousing e outras sincronias da trilha original composta pelo subestimado George Bruns que também tem em Mogli, possivelmente, o ápice artístico de toda a sua carreira.
Atente que não estou comentando das canções originais, mas sim sobre a trilha musical que permeia o filme inteiro com melodias singelas que se tornaram clássicas com a idade. Ao contrário de muitas trilhas contemporâneas, muito espalhafatosas e enormes, Bruns opta por manter sua música bem calma, nada intrusiva, casando organicamente com a imagem. Os temas são maravilhosos, desde a abertura até Jungle Beat ou Baby. Os tons melódicos se baseiam firmemente nos harmoniosos instrumentos de sopro – Bruns é proficiente em Jazz Dixieland. Mesmo se sustentando bastante com tubas, trompetes e saxofones, o compositor quase sempre deixa a melodia a cargo de flautas doces. A vertente clássica aparece bastante com violinos chorosos para temas de apoio dramático juntamente com as flautas, mas ele não limita sua música e seus instrumentos em ritmos morosos. Também em sequências de ação a música passa por transformações naturais e bem características dos desenhos dos anos 1940 de Disney, Bruns sabia como agradar seu chefe ao fazer sua música contar histórias por si mesma.
Com seu trabalho impecável na trilha musical, Bruns ainda consegue fazer algo genial e totalmente por sua conta, sem a orientação de Disney. Se repararmos bem, em diversos temas, há sempre um conjunto melódico que é apresentado em sua totalidade quando Mogli conhece a garotinha no lago. A canção se chama My own Home que ela canta enquanto conquista Mogli. Ao inserir essa melodia tão bem outros temas, ele já passa a construir um presságio da conclusão da jornada do menino. Como se a música estivesse o atraindo para um só destino, marcando presença em tantas passagens no filme. É muito legal notar esse esforço de Bruns para amarrar tão bem o filme não só no texto, mas também em sua trilha musical – algo raríssimo que só compositor românticos e clássicos como Williams e Steiner se preocupam em fazer.
Não apenas a trilha de Bruns marcou história. Mogli é considerado um dos filmes Disney com a melhor cartela de canções originais. As composições são imortais: Bare Necessities, Trust in Me, Colonel Hathi’s March, I Wanna Be Like You, That’s What Friends Are For e My Own Home. Todas têm seu próprio brilho único e carregam histórias fantásticas de bastidores, mas só vou me concentrar em apenas duas.
As canções foram compostas originalmente por Terry Gilkyson, porém, também influenciado pelo trabalho de Peet, o músico seguiu uma linha muito sóbria para as canções – algo que deixou Disney ainda mais descontente. Disney queria se livrar de todas as canções que ele tinha escrito, porém a equipe resistiu e tentou convencê-lo de manter ao menos uma, pois era absolutamente fantástica. Esta canção era The Bare Necessities, no Brasil, Somente o Necessário. Justamente a única canção do longa que foi indicada ao Oscar e também responsável em penetrar na memória afetiva de tantas pessoas. Uma peça musical vital para o establishing de Balu, muito bem arranjada com vida por Bruns, além de contar com a letra contagiante que não sai da nossa cabeça – fora o trocadilho de Bare com Bear. Muitos anos mais tarde, Somente o Necessário foi inspiração direta para Elton John compor Hakuna Matata.
Com 90% do trabalho de Gilkyson no lixo, Disney foi atrás dos irmãos Sherman, artistas que já haviam colaborado em outros projetos do estúdio, além de serem protegidos pela afeição do produtor. Disney enfatizou que precisava de canções mais felizes e divertidas. Dito e feito. Com essa mistura fenomenal de Gilkyson com os lendários irmãos Sherman, Mogli se tornou um dos filmes com o melhor rol de canções da História do Cinema.
Fugindo do normal para a criação das canções naquela época, os Shermans começaram a escrever enquanto o filme já estava sendo produzido. Conhecendo o roteiro e colaborando de perto, as canções encaixaram perfeitamente nas cenas. Novamente, o maestro Bruns fez o arranjo voltado para o jazz muito claramente em I Wanna Be Like You. O que colabora ainda mais para essa forte pegada para o jazz foi a escolha ousada de Disney ao escolher os talentos para as vozes de Balu e Rei Louie.
Ao contrário de hoje, não era nada comum escolher artistas conhecidos como atores de telenovelas, músicos, radialistas ou jornalistas para dublar desenhos até Mogli. Escolhendo duas figuras muito famosas, carismáticas e talentosas por serem exímios músicos de jazz, Disney deu a Phil Harris o personagem de Balu e Rei Louie para Louis Prima. A dublagem como sempre é da mais alta finesse estética e profissional, porém provou ser um acerto escolher os dois já que as canções mais impactantes também foram cantadas por eles. Há inclusive uma foto histórica de Louis Prima e sua banda tocando I Wanna Be Like You em um grande ginásio dentro dos estúdios tentando fazer o pitch para a escolha do papel. As onomatopeias que Rei Louie e Balu cantam vem diretamente do improviso musical já característico de Prima.
Já Phil Harris pediu permissão para improvisar diversas de suas falas. Reitherman, concordando que as frases de Balu soavam mesmo artificiais, deu sinal verde ao ator. Novamente, o resultado é exemplar. Balu é Harris. A maioria dos diálogos foi completamente improvisada por Harris, um trabalho original que influenciou todas as redublagens que o filme sofreu ao ser exportado pelo mundo.
A excelente dublagem brasileira foi refeita recentemente para o lançamento do blu ray nacional. É inegável que há sim certa perda de qualidade do trabalho feito há décadas com as vozes de Alberto Perez, Luiz Motta, José Moraes Neto, Roberto Maya e Magalhães Graça. Não se trata apenas de saudosismo mesmo que eu tenha crescido com a tão excelente dublagem clássica cheia de personalidade. A nova dublagem, cujo elenco não possuo em mãos para listar, é muito boa. O novo Balu ainda se inspira muito no talento de Perez e a versão de Quero Ser Como Vocêdessa nova dublagem é muito superior à antiga. De resto, boa parte da essência é mantida, há sim dedicação em entregar um serviço à altura, as emoções dos personagens são sentidas e relevantes ao contrário do que aconteceu no trabalho nacional do remake dirigido por Jon Favreau. Mesmo excelente, a nova dublagem levará algum tempo para ficar mais natural para quem já havia escutado à original.
Mogli: O Menino Lobo é um dos melhores clássicos que Disney fez em sua vida mesmo contando com tantas limitações de valor de produção e problemas em sua longa produção de três anos. Dizer muito com tão pouco certamente é um talento mágico que envolve a maioria das produções que Disney nos trouxe tanto em vida quanto na morte, afinal até hoje há longas animados formidáveis. Nesse seu atestado de mensagem altruísta, repleta de vida, cor, movimento e emoção, Disney se despediu de seu público, amigos e colegas de trabalho da melhor maneira possível.
Na première do filme, a enfermeira que acompanhou Disney até seus últimos momentos de vida no hospital puxou Wolfgang Reitherman, na época o novo cabeça do estúdio, para lhe fazer uma confissão em meio a calmas lágrimas. Ela disse que o final do filme com Balu e Baguera caminhando em direção ao pôr do sol cantando e dançando era exatamente como Disney iria se despedir de todos: somente com o necessário para alegrar gerações a fio, realizando sonhos e indo embora, feliz, deixando a vida seguir seu rumo.