Crítica | xXx: Reativado
Com o amadurecimento, vem uma noção melhor de abordar certas situações. Bom, geralmente é o ideal que isso ocorra. Por exemplo, se eu tivesse visto xXx: Reativado com meus quinze anos, teria detestado e achado tudo que vi um absurdo. É notório que alguns filmes não se levam a sério. Então, por que raios eu teria de levá-los também?
O retorno de Vin Diesel para a franquia que ninguém clamava por um terceiro filme é um desses casos: um filme tão ruim que até fica bom se não exigirmos absolutamente nada. Filmão Tela Quente bem boboca para tirar as mágoas ocasionadas por uma segunda-feira entediante e cheia de trabalho.
Após o agente Gibbons morrer ao ser atingido por um satélite enquanto recrutava Neymar Jr. para ingressar na iniciativa Triplo X, a CIA convoca uma reunião emergencial para definir o que fazer com um dispositivo chamado Caixa de Pandora que é capaz de trazer todos os satélites que orbitam a Terra de volta ao planeta transformando os equipamentos espaciais em armas de destruição em massa.
Nessa mesma reunião, um grupo de mercenários liderados por Xiang (Donnie Yen, sempre muito dedicado) rouba o dispositivo das mãos da diretora-geral da CIA, Jane Marke. Temendo pelo, Marke corre atrás do único homem capaz de resolver o serviço rapidamente: Xander Cage, o desaparecido e melhor agente da história do Triplo X.
Roger Moore regado a viagra
Pois é, o subtítulo deixará claro como é o roteiro bastante absurdo de F. Scott Frazier. O roteirista basicamente traz um remedo de histórias melhores de espionagens, muito embora o predomínio da comédia seja escrachada tentando mimetizar o espírito das aventuras de 007 enquanto protagonizado por Roger Moore.
Quem assistiu aos filmes da fase Moore lembram bem do cômico e do apetite sexual voraz de James Bond. Aqui, a sutileza britânica é deixada completamente de lado, afinal xXx é ação, testosterona, suor, adrenalina e tiroteios intensos. Como Cage e nenhum personagem tem alguma personalidade além da competência carismática dos atores, chamarei seu personagem de Vin Diesel, afinal, o filme parece ter sido criado para o ator se divertir à beça.
Frazier então faz com que a longa reapresentação do personagem seja calcada em ações. Os únicos diálogos possíveis comentam sobre como Vin Diesel é sarado e excepcional – depois disso, ele dorme com muitas mulheres antes de partir para a ação. Aliás, Diesel aqui é tratado como uma divindade, pois todo o elenco feminino não consegue resistir a seu toque. É tosco, com certeza, mas há quem se divirta, já que nem as cenas levam essas coisas à sério.
Depois de abusar de conveniências para encontrar o paradeiro dos vilões, novamente temos mais introduções de personagens caricatos que ajudarão Diesel terminar sua missão. Mas como disse, este triplo X é basicamente uma paródia de filmes de ação mais sérios e melhores como Skyfall e M.I.: Nação Secreta. Muitas das características das reviravoltas são retiradas justamente desses dois filmes tão recentes. Então é óbvio que você já cansou de ver essa mesma história antes. Até mesmo temos personagens semelhantes mimetizando M e Q.
Aliás, essa versão de Q disfarçada de Becky Clearidge (Nina Dobrev mostrando muito entusiasmo com as cenas de ação mais chatas), é o grande alívio cômico do filme. A agente é tem diversos toques característicos do inspetor Clouseau, de A Pantera Cor de Rosa, se livrando de capangas dos modos mais ridículos possíveis. Os outros personagens são pálidos demais para marcar qualquer presença, mas nenhum deles supera o DJ "pegador" tosqueira que acompanha o grupo.
Ao menos, as influências externas são boas e mantém o ritmo do filme, mesmo que ele seja estupidamente previsível e bocó. O lado antagonista também brilha pouco com desenvolvimento nulo. Não há motivação alguma para atentar contra à humanidade, além de motiva Vin Diesel a sair da aposentadoria.
Realmente não muito o que falar aqui. O roteiro deve ter menos de sessenta páginas, pois temos um fiapo de história regada a muitas frases de efeito ruins, muita exposição para que entendamos a história – acredite, é algo simples que se torna confuso pela completa inaptidão do texto – e péssimos diálogos que dão a impressão de ter sido escritos por um moleque ainda na pré-adolescência, além de toda a narrativa ser movida por um mcguffin de péssima qualidade.
zZz
Mas então o que salva em xXx: Reativado? Felizmente, D.J. Caruso consegue tornar a aventura divertida, pois como disse, o filme tem ritmo, embora se alongue demais para acabar enfiando diversas referências aos longas anteriores. A direção é sim melhor que o texto porco do filme, mas não por uma longa margem.
Caruso apenas consegue trazer uma decupagem bem diversificada aliada a um visual saturado com direito a diversos cenários exóticos. Como esperado, o filme está se lixando para as leis da física então não espere nada que tenha algum nexo realista. É um filme de espionagem escrachado a la seriados dos anos 1960 e da tentativa de revitalizar esse tipo de gênero exploitation nos anos 2000. Para ter uma ideia do quão absurdas são as cenas de ação, a do clímax consegue superar todas as loucuras apresentadas até então.
Nela, vemos Vin Diesel (canastrão como sempre) e Donnie Yen lutando contra alguns agentes dentro de avião de carga em plena queda livre. Detalhe: essa luta ocorre totalmente em gravidade zero. Não faz sentido algum, mas é tão idiota que diverte. E como filme de ação, xXx cumpre muito bem o que promete.
As peças podem não ser grandiosas, mas são mais inventivas do que a maioria dos outros filmes do gênero. Duas perseguições se destacam: uma com uma moto ski nas praias de uma ilha não mapeada e outra em uma grande rodovia. Tirando isso, há alguns flertes com 007 em um tiroteio contra uma milícia russa. Já o tiroteio final que acompanha os comparsas de Diesel é bastante sem graça.
Caruso também peca pelo excesso de tantos planos condensados na montagem frenética. O estímulo visual e tão intenso que o pisca-pisca da tela é similar ao efeito de termos o cérebro derretido aos poucos – algo conveniente para gostar desse filmão aqui. A ação, embora seja interessante, muitas vezes é prejudicada por conta de tantos cortes rápidos nas lutas. A cada soco ou empurrão dado, há um corte. Isso quando algum chinês acrobata realiza peripécias mutiladas pela edição, tirando a graça da coreografia.
O diretor mantém a encenação simples, afinal é um filme simples. Porém é de se valorizar o cuidado do desenho de produção com cenários que, mesmo prejudicados, conseguem transmitir a euforia dessa diegese com competência. A intensa sexualização que Caruso utiliza na câmera ao enquadrar as muitas mulheres voluptuosas é capaz de incomodar algumas pessoas. É linguagem publicitária de altas luzes com direito a muito slow motion para provocar desejo e sedução no espectador seja com poses “poderosas” nos tiroteios - sempre nas mulheres com os instrumentos fálicos nas mãos (facas, pistolas, rifles de precisão), no rebolado das garotas ou com os músculos protuberantes do herói.
Na verdade, é justamente o começo do longa que marca os piores momentos do filme. A conversa de Neymar com Samuel L. Jackson continua bizarra já que os dois não gravaram no mesmo local. A narrativa também não colabora em fazer sentido ali. Com tantos clichês e besteiras, o melhor mesmo é deixar a história desse longa bem afastada e não ficar pensando sobre ela.
Eu não sou herói. Sou crítico de cinema
Basicamente, xXx: Reativado é uma jornada alucinante e descerebrada regada à testosterona e adrenalina. É estúpido, mas divertido. É clichê, mas entretém bastante. Cabe apenas ao espectador já estar preparado para consumir algo que já conhece. Se é fã da franquia ou dos filmes com Vin Diesel desse tipo, é praticamente certo que vai encontrar lazer ao assistir um filme tão, mas tão bizarro que consegue transformar sua breguice na melhor qualidade.
xXx: Reativado (xXx: The Return of Xander Cage, 2017 - EUA)
Direção: D.J. Caruso
Roteiro: F. Scott Frazier
Elenco: Vin Diesel, Donnie Yen, Deepika Padukone, Kris Wu, Ruby Rose, Tony Jaa, Nina Dobrev, Rory McCann, Toni Collette, Samuel L. Jackson, Neymar
Gênero: Ação
Duração: 107 min.
Crítica | Desventuras em Série - 1ª Temporada
Em certos textos, caro leitor, é preciso começar pelo apego tão defenestrado e, talvez, pouco sadio daquela nostalgia que acalora nosso corpo, faz os olhos lacrimejarem enquanto nosso coração praticamente pula para fora do tórax. Uma imagem grotesca de se imaginar, mas sentir nostalgia é algo profundamente mágico. Algo que edifica o caráter de alguém.
O sentimento efêmero é valioso. Pelo menos, eu mesmo nutro tremenda paixão quando ele surge inesperadamente com uma lembrança surpresa ou através do relançamento de um produto que amávamos muito em outra época da vida. Um amor que molda a imaculada lembrança.
Desventuras em Série, a franquia de livros muitíssimo bem-sucedida de Lemony Snicket, é uma das que me causa tal sentimento de uma infância nem muito distante na cronologia, mas que provoca a mais digna das saudades. Não posso dizer por todos, mas pelo menos para mim, esse terrível conto tão deliciosamente escrito, despertou o verdadeiro prazer pela literatura.
Foi justamente através dos diálogos cínicos, irônicos e, muitas vezes, cruéis, que nomes de autores importantes ou de peças literárias tão marcantes em nossa História chegaram até mim. Desventuras em Série foi, é e sempre será um grande abre-alas para jovens mentes sedentas por histórias tão peculiares como a dos irmãos Baudelaire.
Com tanto zelo por esses livros dos quais tive meu primeiro contato aos meus já longevos sete anos de idade, no fatídico ano de 2001, imaginem meu cinismo já influenciado pela leitura quando fiquei sabendo que haveria uma adaptação cinematográfica da tragédia Baudelaire. Embora não fosse a adaptação perfeita que queria, hoje, nutro estima pelo longa que demonstrou soluções inteligentes, criativas e parece ter entendido muito mais a proposta dos livros.
Mal sabia eu que era aquela versão que mais teria meu respeito, enquanto no campo audiovisual, apesar de ter aguardado com boas expectativas para o seriado ordenado pela queridinha da América e da internet, Netflix.
Pois bem, se chegou até aqui após relatos nada pertinentes na expectativa de uma recomendação entusiasmada, uma crítica açucara ou uma daquelas resenhas que apenas oferecem aquela sinopse que todos já estamos cansados de saber, pare de ler agora. Isto está longe de acontecer na experiência que encontrará nessa longa dissertação.
Jogue seu celular no asfalto, dê um murro na tela de seu notebook ou lance seu tablet aos pombos. Esse texto certamente não lhe trará nada além de profunda decepção caso já tenha assistido a essa peça audiovisual e tenha achado a última bolacha do pacote. Infelizmente, lhes informo que o mundo é uma tragédia ou glória graças a esta pluralidade de opiniões – claro que muitas vezes infundadas.
A que você lê nesse exato instante abordará as mazelas, más escolhas, vista grossa, cópias infelizes, mentes anestesiadas, o declínio de um gênio, atuações tiradas diretamente de desenhos Hannah-Barbera e da bizarríssima trilha musical. Por isso, lhes aviso novamente: nesta página só há infortúnio e perturbação caso tenha amado a citada obra. Poupe sua mente e preserve sua alegria. O cotidiano já insiste em afundar nosso espírito a níveis abissais nos jogando no poço do elevador Ersatz.
Há diversos portais, sites ou blogs com opiniões muito mais saltitantes que a minha. Posso lhes recomendar os colegas do Cinematecando ou até mesmo do Plano Crítico, que já fora mais crítico, na minha modesta opinião. Para os que preferem os estrangeiros, torrentes de alegria encontrarão na análise do Entertainment Weekly. Aqui, no Bastidores, há somente esta opinião ranzinza que, embora seja escrita por mim, reflete o sentimento geral de nossa equipe.
Bom, certamente você é insistente. Já que não olhará para longe e se atentará a esse infeliz relato, sem meias palavras. O texto é obviamente longo, afinal há 360 minutos de material para analisarmos!
Portanto, preparem-se. Partiremos para a desventura em série mais ordinária de uma história que celebrava o talento da criatividade inventiva, do gosto pela boa literatura e de alguns dialetos de uma mordedora.
O trabalho dos figurinos é satisfatório, embora o estilo princesa deveras colorido para Violet fuja da proposta original.
Bom Começo
Ironicamente, minha jornada por Desventuras em Série foi deveras agradável. Mais engraçado ainda são as parábolas de Snicket – muito bem interpretado por Patrick Warburton, que muitas vezes parecem ter autoconsciência. Tomemos de exemplo a principal que marca a adaptação de Mau Começo – “melhor do que nada”.
Infelizmente para a criação do seriado desta obra e para a Netflix, os espectadores já possuem algo melhor e mais interessante surgido em 2004 no audiovisual. O que certamente é um caroço no sapato da produtora, pois, em todo momento, as comparações surgem. E, quase sempre, a Netflix perde. Por longa margem.
Algo que é interessante, de primeiro momento, é a boa escolha em adaptar cada livro em dois episódios rendendo obras com durações cinematográficas, apesar de ficarem bem distantes da qualidade de um filme de médio porte de Hollywood. O roteiro é adaptado diretamente por Daniel Handler. Sim, o autor original dos livros disfarçado sob o pseudônimo de Lamony Snicket. É curioso notar que, por vezes, Handler quase atenta contra sua obra ao apostar em certos exageros que tornam sua escrita repetitiva – importante lembrar que o material original não possuía tantas tentativas fracassadas de comédia.
Talvez, o maior equívoco de Handler fique justamente em não saber dosar bem a comédia com drama, afinal Desventuras em Série é uma tragédia de humor negro.
Os episódios de Mau Começo já delineiam muitas coisas que irão se repetir na série inteira, além de dar o primeiro vislumbre do como essa versão se portará na caricatura. Em vez de algo mais original, o diretor Sonnenfeld aposta mesmo em retratos toscos sendo que alguns funcionam como os da Sunny. Já outros, transformam todo o núcleo antagonista em vilões Hannah-Barbera seja de Corrida Maluca ou Scooby-Doo.
A maquiagem em Neil Patrick Harris é um dos pontos mais altos! Ótima caracterização!
Definir se essa tosquice é prejudicial à obra é algo completamente subjetivo. Como este é um artigo de opinião, eu vejo que, sim, é algo que foge bastante de atmosfera proporcionada pelos livros, tanto mais sóbrios e menos ridículos. Quem não consumiu as obras anteriores, é capaz que adore a atmosfera leve do seriado, já quem experimentou outros pontos de vista, possivelmente nem tanto.
Mau Começo são os episódios com o menor dos males, na verdade, pois a dosagem está próxima do correto, ainda que raramente haja quaisquer impactos da perda súbita dos pais dos irmãos Baudelaire. É bizarro apontar isso, mas, estranhamente, os irmãos mal conversam entre si, já que praticamente estão sempre interagindo com outros personagens estúpidos demais como o senhor Poe e tia Josephine ou elaborando planos para escapar das garras de Olaf. Nisso, o drama sai prejudicado no seriado como um todo.
Handler tenta contornar a situação com as inserções da narração de Lemony que ainda permanecem muito criativas e até mesmo com direito a histórias inéditas. Snicket pontua, frisa a tristeza dos Baudelaire e pronto. Não há esse momento de luto, pesando o drama um pouco mais com tantas tragédias que acontecem com os irmãos. Não há lágrimas ou pesar em Desventuras em Série da Netflix – o que é uma verdadeira pena. Uma regra do showbiz que nunca deve ser ignorada: show, don't tell. Handler, por ser do meio literário, talvez ainda precise se adequar ao novo meio.
Já que o drama é falho aqui e na série como um todo, como se sai a comédia? Apesar de medíocre em grande parte graças à caricatura e falta de um texto mais ácido para a televisão, é um elemento que se sobressai. Algumas vezes, boas ideias como a de Sunny jogar pôquer são revertidas em péssimas soluções graças ao uso nefasto de CGI porco – Sunny é quem mais sofre com os péssimos efeitos injustificáveis.
Em suma, Handler ainda consegue nos arrancar boas risadas. O problema é: a cada boa piada, ele ressuscita uma esgotada. Por sorte, ela não tem muita chance de aparecer nos episódios de Serraria Baixo-Astral. Trata-se da inaptidão completa de fornecer tiradas mais interessantes para Olaf. Seja como Olaf, Stephano e ou Sham, Handler escreve o mesmo conceito de humor: o personagem que se trai a todo instante pelas próprias palavras. Isso sempre acontece quando Olaf conversa sobre os órfãos e, acidentalmente, revela seu real interesse neles: a fortuna.
A Sala da Netflix
Enquanto Mau Começo consegue pintar uma boa impressão, os pequenos problemas de outrora tornam-se mais evidentes pela repetição. A Sala dos Répteis ainda mantém um bom padrão de qualidade perto da deplorável adaptação de O Lago das Sanguessugas.
Aasif Mandiv consegue criar um tio Monty interessante e fascinado pelos répteis que cuida. Fez o básico, assim como a dupla Malina Waissman e Louis Hynes como Violet e Klaus – em Serraria Baixo-Astral, há uma nítida melhora na performance de ambos.
A graça da adaptação é que consegue contar de modo competente a história do livro. Nisso, Handler não desaponta no seu teleplay. Para o seriado, ele sabiamente já insere um mistério maior que sonda os Baudelaire e o Conde Olaf envolvendo, obviamente, C.S.C. que ainda não fora mencionada nominalmente. Esse mistério pode ser considerado uma boa faca de dois gumes, pois enquanto lhe mantém interessado sobre do que se trata esse conflito que assombra as narrativas, te provoca decepção por não chegar perto de oferecer algo mais sólido.
É algo para ser trabalhado no decorrer das três temporadas, mas sua inserção já na primeira é de causar estranhamento por alguns motivos. Primeiro, a conspiração maior remove o aspecto intimista de drama familiar, perseguição e abusos que os órfãos sofrem, já que é um elemento distrativo. Ao colocar C.S.C. na 1ª temporada faz com que seu impacto real na narrativa se perca consideravelmente – a sigla só surge no livro quinto e então passa a ser desenvolvida até o final.
Já colocar tio Monty como um membro ativo da sociedade e da inserção da personagem Jacquelyn é algo totalmente subjetivo. A história de Desventuras é forte o suficiente sem a necessidade dessas passagens que se comportam como fillers. Os problemas mais presentes nesses episódios estão concentrados na segunda parte.
É aqui que começamos a ver como Neil Patrick Harris, mesmo se esforçando, parece não conseguir captar bem a essência de conde Olaf – algo que Jim Carrey conseguiu ao modo dele. Desde Mau Começo, Harris praticamente não se movimenta em cena, apostando apenas em alguma variedade de expressões faciais para cada novo personagem que Olaf se disfarça. Harris quase nunca usa seu corpo para favorecer o disfarce como Stephano ou Sham, ficando imóvel em cenas que ele deveria brilhar elevando sua atuação.
Ironicamente, Harris atua como uma estátua um personagem que é ator - mesmo que Olaf seja um péssimo ator. Ser um ator ruim não tem nada a ver com imobilidade ou vozes engraçadinhas. Harris não entendeu isso por boa parte do seriado.
Enquanto há uma boa autonomia de texto entre os Baudelaire e Monty, é vergonhoso ver um diálogo tão escrachado e infantil aparecer durante o jantar entre os quatro e Stephano acerca de entretenimento: cinema vs. televisão. Era para ser piada, mas certamente o recado da Netflix foi dado com bastante soberba.
Um mau momento de solução de roteiro já aparece neste aqui e se repetirá na próxima adaptação: as fugas de conde Olaf.
A Janela Discreta
Definitivamente o ponto mais baixo do seriado se encontra na adaptação de O Lago das Sanguessugas. Embora a história seja basicamente transcrita com alterações que a diminuem, os episódios 5 e 6 são quase insuportáveis pelo exagero do “hannah-barberismo” ou pastiche que absurdamente foge do que havíamos visto até agora.
De supetão, temos o exagero forçado da atuação de Alfre Woodard. A direção deve ter ficado tão apreensiva de repetir o fenomenal desempenho de Meryl Streep que, basicamente, não filtrou as ideias ruins. É difícil elogiar qualquer ponto da atuação de Woodard como Josephine já que basicamente não o há. Fora os bizarríssimos gritos inseridos em momentos inoportunos, a essência da covardia de Josephine praticamente se esvai ao ela se assustar até mesmo com o próprio reflexo. Woodard também não trabalha bem com expressões de medo reforçada por gestos de seu corpo. Aliás, já é redundante afirmar: o elenco inteiro basicamente não se dedica em nada em explorar um pouco mais da teatralidade trazida pelo visual do seriado.
É linguagem básica para os diálogos no pior modelo de esquema televisivo: o de novelão. Os únicos atores que tentam sair desse vício de se portarem como manequins são os integrantes da trupe de Olaf, Don Johson como Senhor e Joan Cusack entregando a melhor atuação como Juíza Strauss. Um belo desperdício de bons nomes. Somente K. Todd Freeman se aproxima de um desempenho tão decepcionante quanto o de Woodard.
Novamente, Harris apenas modifica a voz, apresenta umas caretas novas e não aproveita a oportunidade de brincar mais com as fantasias de Olaf. Os problemas de O Lago das Sanguessugas permeiam bastante coisa, principalmente seu desfecho. Enquanto a dinâmica dos irmãos parece melhorar – principalmente no uso de suas habilidades, algumas alterações de Snicket e diversas barbeiragens visuais do diretor Sonnenfeld conseguem sempre piorar a experiência geral desses episódios.
Apesar de os dois episódios contarem com momentos péssimos, me limitarei a apenas três para ilustrar meu ponto de vista. O primeiro é a representação visual da biblioteca de Josephine que basicamente rasga um conceito originalíssimo da sala oval suspensa com uma enorme janela. No seriado, a wide window fica devendo e muito – basta comparar com as ilustrações originais ou com a concepção visual impecável proporcionada pelo filme de 2004.
A destruição da casa de Josephine é outro momento que eu gostaria de esquecer. No livro e no filme, o senso de urgência é implacável, além de fornecer outro trabalho em conjunto dos irmãos para se salvar do furacão e da queda da casa. Aqui, Klaus dá piruetas no mesmo lugar (?). É absolutamente brochante ver como o seriado não leva muito à sério as situações mais tensas da obra original. Até mesmo a péssima trilha musical de James Newton Howard atinge um patamar ridículo com melodias que acompanhariam os piores esquetes de galhofas clown - sim, estou falando de Lazytown.
(SPOILER)
O terceiro e o pior momento desse conjunto de episódios, infelizmente é o ataque das sanguessugas e do resgate de Olaf. A morte completamente patética de Josephine perde totalmente a penumbra de incertezas que configura a tragédia da mulher no livro. Handler, numa decisão ruim, também muda a essência da personagem ao fazê-la ter um desenvolvimento desnecessário ao confrontar Olaf. A potência dramática da “tia” dos Baudelaire implorar por sua vida e oferecendo as crianças ao vilão é aterradora. Mostra que os verdadeiros monstros estão por todos os lados.
(FIM DO SPOILER)
Aqui, novamente ocorre a suspensão de descrença enorme exigida pela fuga de Olaf, mais se assemelhando a Scooby-Doo em má fase do que com Desventuras em Série. Handler insiste em usar toda a trupe do Olaf desnecessariamente em A Sala dos Répteis e aqui também. Quando Poe finalmente é confrontado pela verdade de que Sham é Olaf, fica difícil crer que todos os vilões preferem dar no pé em vez de simplesmente matarem o banqueiro e sequestrarem as crianças.
A direção acerta em "pausar" as cenas para inserir os monólogos de Snicket. Ponto alto do seriado.
Seriado Alto-Astral
Após essa queda abissal de qualidade com O Lago das Sanguessugas, o seriado se fortalece com Serraria Baixo-Astral. Talvez justamente por se livrar das inevitáveis comparações com o filme que era infinitamente mais criativo que o seriado. Ou simplesmente porque seria difícil superar a "qualidade" dos anteriores.
Chegado este momento da crítica, é hora de analisar o trabalho geral dos diretores Barry Sonnenfeld, Bo Welch e Mark Palansky. Como Sonnenfeld e Welch são os mais presentes, a maioria das responsabilidades recaem em seus ombros.
Em termos de originalidade, o seriado é uma profunda decepção. Os diretores decidiram copiar o estilo cinematográfico de Wes Anderson a um nível absurdo. Enquanto na estética, há semelhança, Desventuras em Série não possui o menor brilho das obras de Anderson justamente por conta do diretor entender melhor de encenação e atuação que os do seriado.
Enquanto há essa linguagem cinematográfica, a teatralidade da série é morta graças as atuações pálidas e sem graça que não injetam vida ou dinamismo de cena. É subjetivo, mas o seriado tem um ritmo muito chato justamente por conta dessa completa inoperância da direção que parece ter medo de ousar um movimento de câmera mais interessante ou de quebrar um pouco a lógica dos enquadramentos centralizados.
Graças aos enquadramentos similares na obra inteira e na completa falta de contraste da cinematografia pálida de Bernard Couture, Desventuras em Série é uma mesmice visual que só quebrada pela riqueza de detalhes de alguns cenários interessantes como a casa de Olaf e tio Monty, do cinema, dos dormitórios da serraria e do restaurante Palhaço Ansioso. Lembrando que a falta de contraste é algo grave. Mesmo em filmes que se baseiam com esquemas de cores mais monocromáticos, há sim contraste. Basta ver o filme dessa mesma obra que foi tão bem fotografado por Emmanuel Lubezki.
Fora isso, dificilmente dá para comentar mais elementos da direção do trio. Quando tentam inventar algo na encenação, acabam errando e criando um efeito tosco vide os péssimos momentos de O Lago das Sanguessugas. O melhor do trabalho dos diretores está restrito justamente quando não inventam nada e seguem a receita do bolo pré-definida na decupagem. O esquema de cores também sai a la Tim Burton, com leve influência nos enquadramentos. Sonnenfeld também incorpora elementos de Pushing Daisies, uma das séries que dirigiu.
Mas como havia dito, Serraria Baixo-Astral apresenta melhoras significativas e ainda consegue resolver uma ideia que teria sido ruim caso se concretizasse – a boa reviravolta que marca o destino dos personagens de Cobbie Smulders e Wil Arnett. Neil Patrick Harris finalmente passa a utilizar melhor seu corpo ao se travestir de Shirley oferecendo outra gama inexplorada de humor até então. Os irmãos finalmente entram em conflitos que podem destruir o laço familiar entre eles através da hipnose de Georgina Orwell. Apenas um comparsa acompanha Olaf, conferindo o ar original dos livros, além de toda a resolução da relação vilão vs. herói ser mais crível ao conseguir injetar mais tensão no clímax.
Os novos personagens como Senhor, Charles e Georgina Orwell interpretada muito bem por Catherine O’Hara, passam a ser menos paródias dos originais da literatura se comportando de maneira mais realista com um quê de absurda – exatamente como deve ser. Há mais integridade narrativa nesses episódios como um todo os colocando diretamente no rol dos melhores do seriado, além do humor ser mais funcional e inteligente. Os únicos poréns continua mesmo com o uso péssimo de CGI em Sunny que te remove da imersão proposta e da trilha musical de James Newton Howard.
Desventuras em Série
Enfim, caro leitor, termina o relato de alguém que sempre acompanhou com fidelidade cada lançamento dos livros e, agora, das obras variadas deles. Pela minha introdução, realmente achei que ficariam horrorizados, mas creio que consegui desatar esse nó górdio apresentado pela Netflix de modo balanceado.
Apesar de eu não ter gostado de praticamente ¾ da experiência que a série me proporcionou, não afirmo de modo algum que é algo abismal, mas sim desperdiçado. A criatividade ficou restrita à muitas ideias ruins que tentaram fugir da comparação das boas ideias e soluções visuais que o filme empregou em 2004. Em seus pontos altos, estão as participações de Snicket, das diversas referências a elementos dos livros e também da adaptação mais pura da história que tivemos até agora, apesar das derrapadas que mais conferem ar de paródia do que de verdadeiras adaptações.
A jornada dos órfãos Baudelaire sempre fica cada vez mais trágica e injusta ao decorrer dos livros então torço muito para que a produção não tente limitar tanto o drama da tragédia do modo que aconteceu aqui.
É justamente pela tragédia que o autor demonstra o quão poderoso é o espírito de seus personagens diante da corrupção ética e moral, da negligência e da morte violenta de quem mais amam. Por isso que Snicket/Handler tinham conquistado tanto minha atenção na infância. A mensagem edificava e era valiosa cheia de nuances culturais inteligentes de ótimo vocabulário e tons acinzentados de seus personagens. Ver como os Baudelaire não resignavam diante de tanta injustiça e perversidade certamente influenciaram o caráter de quem leu essas desventuras.
Há essa esperança de que os produtores da Netflix pesem menos a mão no pastiche e não entreguem mais um produto tão efêmero, bobo e estéril de fortes mensagens. É de bom tom entender que é possível criar produtos infantis que tocam todas as idades como Handler criou em 1999. Aqui, a Netflix não entendeu isso. É sim um bom seriado para crianças bastante novas nascidas em uma era repleta de blindagens, onde até mesmo a tragédia da perda paterna não é minimamente mensurada apropriadamente em um produto cultural destinado a elas. Diversão, comédia, letargia.
Infelizes de nossos tempos.
Crítica | Assassin's Creed
Se podemos considerar uma pessoa fã número 1 da franquia Assassin’s Creed, ela seria Michael Fassbender. O tempo passa voando, caro leitor, e nossa memória tende a ser curta. A novela da produção do filme que adaptaria as histórias mirabolantes da série vem desde 2012. Mesmo que Fassbender nunca tivesse jogado algum game na época, o ator/produtor se comprometeu tanto em trazer esse filme para a realidade que é impossível desconsiderar os esforços hercúleos.
Para termos ideia do quão complicado o projeto era, somente em 2015 que a adaptação ganhou um diretor. Justin Kurzel só entrou na produção também por causa da amizade com Michael Fassbender, após as gravações de seu filme anterior: Macbeth.
Entretanto, mesmo com tantos problemas e incertezas, finalmente Assassin’s Creed veio à luz do Cinema. Porém, infelizmente, o longa recai na maior certeza cinematográfica de todas: filmes de games simplesmente não funcionam.
Acompanhamos a história de Callum Lynch, um homem condenado à morte por conta de um homicídio. Após receber as doses da injeção letal, Lynch desperta acreditando estar morto. Porém, o homem ressuscitado descobre algo pior: estar aprisionado em um complexo da Abstergo, um laboratório de biomedicina e tecnologia que pretende usar seu DNA para reviver as memórias de seu ancestral que viveu durante o ano de 1494, em plena Inquisição Espanhola.
Através do Animus, Sofia, chefe do setor na Abstergo, tentará fazer Lynch encontrar o fragmento de memória ideal que pode revelar a localização de um dos artefatos místicos mais importantes da história da humanidade. O propósito para a busca de tal instrumento é somente um: dominar o mundo.
Potencial oculto
Três roteiristas tentam trazer a história de Assassin’s Creed do modo mais cinematográfico possível. Pena que a maioria dos esforços ficaram somente na tentativa. O roteiro comete erros muito similares aos já vistos em diversos outros filmes de videogames. Dentro de sua história razoável, quem mais sofrem são os personagens. E, acredite, muito pouco se salva nos trabalhos destinados ao desenvolvimento e motivação de praticamente todos eles.
A proposta era promissora: trazer uma história original que se comporte dentro das características únicas dos games. O começo do longa já denota isso com uma sequência em flashback que flerta com os primeiros minutos do jogo original de 2007 e, depois, ao mostrar um segmento traumático da infância de Cal, já ligando a história do protagonista de modo mais próximo com o Credo dos Assassinos e a Ordem dos Templários – os dois lados antagônicos do universo Assassin’s.
Enquanto tudo isto é condensado por uma elipse de trinta anos, é fácil para o espectador não familiarizado ficar completamente perdido tentando entender o propósito dos dois lados, já que o roteiro não faz muita questão de explorar as duas sociedades secretas na tentativa fracassada de definir tons de cinza para fugir do clássico jogo dos extremos entre bem e mal.
Com isso, já é complicado definir a torcida por um dos dois lados – nos games a distinção é mais clara e eficiente, preservando essa linha cinzenta entre as forças antagônicas. Tudo se torna mais burocrático graças a personalidade de Cal Lynch que, por sua vez, odeia o Credo mesmo conhecendo absolutamente nada sobre a sociedade.
A maioria do desenvolvimento do protagonista vem de seu contato com Sofia, cientista-chefe do Animus e filha a de um dos principais templários, Rikkin, CEO da Abstergo. Através de uma exposição meia boca, o espectador tem contato com o que se trata elementos chave da franquia como o Animus, a ideologia anarquista do Credo e do totalitarismo dos Templários e da Maçã do Éden, o artefato que controla o livre arbítrio.
Nesses “respiros” da estrutura do roteiro, temos longos diálogos a fim de nos afeiçoarmos com Sofia e Lynch. O problema é que essas conversas recebem um tratamento de escrita raquítico os transformando em verdadeiros manifestos sobre a chatice.
O discurso da motivação antagonista também falha em convencer o espectador: o fim da violência. Claro que é um artifício para esconder o verdadeiro propósito que é a dominação mundial. Porém, ver Marion Cotillard e Jeremy Irons conversando sobre a aspiração maquiavélica é completamente anacrônico e brega. O plano dos templários seria muito mais acomodado à realidade dos filmes 007 dos anos 1990.
Os fiapos de desenvolvimento tentam criar laços entre os dois personagens, porém tudo é jogado no lixo pelo tenebroso terceiro ato. Lynch passa por uma transformação muito súbita que dificilmente traria a superação de seu trauma pessoal – ainda mais porque os outros assassinos presentes na Abstergo são personagens pálidos e irritantes, além de serem péssimos em persuasão.
E, como de lei, temos aquela crítica ao capitalismo “malvadão”. São clichés muito defasados que insistem em aparecer a todo momento. Desde a insurgência dos Assassinos, ralés da sociedade guiados pela fé, contra os Templários poderosos e esnobes, guiados pela inteligência e capital.
Como puderam perceber, apenas discorri até agora sobre o tempo “presente” da diegese do filme, não comentando muito sobre as memórias de Aguilar, o assassino espanhol. Bom, é inevitável graças às escolhas bizarras de narrativa que os roteiristas tomaram neste caso. Para quem costuma jogar Assassin’s Creed, sabe que a história do presente de Desmond ou do protagonista randômico que está presente desde Black Flag é a pior parte do jogo. O que vale mesmo, é a história do assassino vivendo um contexto histórico incrível como o Renascimento ou a Revolução Industrial.
Pois bem, o principal pedigree da franquia aparece somente em três sequências nas quais Aguilar entra mudo e saiu calado. O personagem não possui um pingo de personalidade, assim como seus companheiros assassinos que o acompanham nas sequências que tem única função de injetar ritmo e ação em um filme sonolento. O melhor elemento dos jogos é um desperdício inacreditável, além do filme não encaixar perfeitamente na linha do tempo do game.
Extremamente sóbrio e competente
Geralmente os filmes de jogos são uma calamidade em todos os sentidos cinematográficos. Embora o roteiro de Assassin’s Creed seja boçal e sacrifique muita coisa boa dos jogos, o projeto é abençoado pela técnica gloriosa de Justin Kurzel, o diretor que Fassbender trouxe consigo para gravar o filme.
Kurzel traz um peso visual e de encenação a la Macbeth. E, infelizmente, toda a competência na criação dessa diegese pútrida e antiga vai para o ralo por conta da violência censurada. Assassin’s Creed não possui praticamente uma gota de sangue, mesmo que os personagens sejam degolados a olhos vistos. Logo, o contraste da atmosfera é tão absurdo que a torna ridícula dando a impressão errônea da roupagem do filme ser pretensiosa.
Em maioria, o diretor mais acerta do que erra, apesar de a experiência geral do filme ser bastante tediosa. Há construções de cenas memoráveis como a da execução de Callum Lynch, da primeira regressão ao Animus e a conclusão do salto de fé. A cada boa cena, percebemos o quanto Kurzel se esforçou em trazer uma decupagem diversificada e satisfatória, tornando o filme muito rico visualmente.
Os únicos momentos que sua decupagem não funciona são os diálogos destinados ao par Sofia e Lynch. É estranho comentar, mas há um espectro da chatice rondando essas cenas. O texto consegue ser tão ruim nesses diálogos que conseguem te tirar do filme, prejudicando qualquer tentativa de Kurzel em fazer as cenas funcionarem.
Kurzel também parece não criar muito no poder simbológico que história carrega, apenas apostando na arquitetura semelhante a uma arca do prédio da Abstergo. Uma boa ideia do diretor em conjunto do design de produção é a atualização do funcionamento do Animus. Aqui, em forma de garra, torna a experiência da regressão muito mais ativa do que a do jogo, permitindo que o diretor crie bons cortes entre as acrobacias de Aguilar em sincronia com as de Lynch no laboratório. É óbvio que se for levar a sério demais o instrumento, o espectador encontrará perguntas que nunca serão respondidas.
Kurzel e o cinematografista Adam Arkapaw capricham mesmo em termos de enquadramento e iluminação. Assassin’s Creed é um dos poucos blockbusters contemporâneos que possuem um visual arrojado e bem elaborado, mesclando tons mornos e frios a todos os momentos com demarcações de sombras diversas mesmo que os períodos da regressão sejam muito mais carregados por tons pastéis quentes e com granulação maior.
No que Kurzel é equivocado, facilmente reconhecemos. O filme é incompetente para lançar as referências certas aos games, de toques que fariam a felicidade dos fãs. Há apenas o óbvio ali: parkour (muito bem coreografado), hidden blades, saltos de fé e um excesso abundante de elipses de tempo focando na águia que sobrevoa diversas cenas.
Aliás, diversas tomadas aéreas ótimas são sacrificadas por tanta fumaça digital que há nesse filme. É absurdo o nível de CGI ruim que oculta os efeitos práticos bem feitos. Nisso, Kurzel não consegue valorizar o design de produção em diversos sentidos: seja nos cenários bonitos contemporâneos e históricos ou no estupendo trabalho de figurinos e outros adereços de cena.
As três sequências de ação são irregulares em qualidade. Enquanto a primeira se destaca pela boa montagem e diversidade de enquadramentos, as outras duas regressões são fracas sendo a segunda a pior delas. Nessa longa perseguição, a segunda unidade e Kurzel se atrapalham em gravar em espaços apertados, causando um vômito visual de tão grotesca que a passagem se torna, além de seu final anticlimático injustificado.
Suicídio de Fé?
A estreia de Assassin’s Creed nos cinemas poderia ser muito superior ao que foi apresentado aqui. Há sim bons conflitos e pretensões esboçadas pelo roteiro que sempre falha em desenvolvê-las ou resolvê-las de modo mais memorável. O rol de personagens é um desperdício tremendo, pois é perceptível o quanto Fassbender, Cotillard e Irons estavam se dedicando em tornar as figuras desses indivíduos em algo tanto mais complexo.
A querela paterna que Lynch e Sofia partilham seria algo a se valorizar, além de uma abordagem mais incisiva sobre as duas sociedades que movem a narrativa do filme. A busca pelo artefato facilmente renderia uma aventura mais voltada ao estilo Indiana Jones do que um thriller de loucura e suspense épico que Kurzel investiu na obra.
Assassin’s Creed obviamente não é um filme todo ruim, como apontei em passagens no texto. Inclusive, é um dos melhores de games da História, mas isso também não quer dizer grandes coisas para um cenário de tamanha calamidade. Entre os elementos que mais se destacam além do visual e da direção arrojada, certamente é a trilha musical de Jed Kurzel que confere todo o ar épico e tenso para as perseguições no filme. O compositor captou e acrescentou em precisão do que se trata a música dos jogos.
São erros demais para expô-los todos no texto, escolhas equivocadas demais. Acredite, caro leitor, torcia para que o filme de uma das franquias de jogos que mais gosto fosse realmente bom, mas não é o caso. Esse projeto convergiu tanto talento para desembocar apenas em decepção.
Se há alguma coisa que berra entre o imenso tédio que o filme proporciona, é somente a palavra, escancarada a todo canto: desperdício. E esse desperdício pode ter sepultado de vez as chances de revermos Assassin’s nas telas dos cinemas em um futuro próximo.
Assassin’s Creed (Assassin's Creed, 2016, EUA)
Direção: Justin Kurzel
Roteiro: Michael Lesslie, Adam Cooper e Bill Collage
Elenco: Michael Fassbender, Marion Cotillard, Jeremy Irons, Brendan Gleeson, Michael K. Williams, Charlotte Rampling, Ariane Labed
Gênero: Ação
Duração: 115 min
Review | Star Wars: The Force Unleashed II
Obs: contém spoilers do game anterior
Graças ao imenso sucesso de The Force Unleashed, a LucasArts já foi sábia em encaminhar uma sequência que foi lançada dois anos depois da estreia da franquia. Também cercado por hype, Force Unleashed 2 foi um título que prometeu muito e cumpriu muito pouco não conseguindo superar a sombra do primeiro jogo.
A má recepção do último game da LucasArts repercutiu bastante na época do lançamento do game. Entre as principais reclamações da crítica especializada e dos jogadores assíduos, a que mais se destacava em uníssono era: o jogo é curto demais. É de fato é.
The Force Unleashed 2 é um game aquém de seu potencial ao mostrar como a LucasArts trocou os pés pelas mãos em 2010.
Guerras Clônicas?
O roteiro é novamente capitaneado por Haden Blackman, o mesmo autor do primeiro jogo. O objetivo da história é fazer com que ela parece bastante independente da anterior, apesar de não conseguir esse feito integralmente, embora seja difícil se perder no roteiro ainda mais simples deste jogo.
Com toda a certeza, a principal mazela de Force Unleashed 2 é sua história que definiu a pífia duração do jogo – é possível zerar o game em quatro horas. Dessa vez, encarnamos novamente Starkiller. Darth Vader, ainda obstinado a conseguir um aprendiz perfeito que obedeça suas ordens sem questionar a moralidade das missões, “clona” Starkiller através do DNA de seu cadáver.
Testando o clone mais promissor, Vader ordena que Starkiller mate um dróide disfarçado de Juno Eclipse, o interesse romântico do herói no primeiro jogo. Por conta de alguns insights de seu corpo original ou de suas memórias suprimidas, o “clone” de Starkiller não consegue ferir o robô e escapa do confinamento de Vader.
Fugindo de Kamino, o planeta especializado na produção de clones, Starkiller parte em busca de reencontrar General Kota e Juno para redescobrir seu verdadeiro papel na guerra contra o Império.
Se eu falasse que o roteiro praticamente acaba em apenas duas viradas após isso, ficariam incrédulos, mas realmente é o que acontece. Como jogo, Force Unleashed 2 é basicamente um espirro. Um espirro muito divertido.
No storytelling, Force Unleashed 2 é basicamente um fracasso, não conseguindo agregar em absolutamente nada para o ex-cânone de Star Wars. A única discussão que envolve é a desconfiança se Starkiller realmente é um clone ou se ele de fato é o protagonista do jogo anterior que sobreviveu depois da luta contra Darth Sidious.
De resto, muito pouco se salva, apesar da história manter seu interesse aceso. Nunca temos um desenvolvimento nítido para o personagem que basicamente não questiona sua natureza como clone. Não há interesse em descobrir se ele é mesmo o Starkiller original ou algo do tipo. Nem a relação com Vader ou os outros personagens como Kota ou Yoda torna-se memorável. Aliás, Kota vira um personagem irritante por sempre tentar desmotivar o resgate de Juno que basicamente vira um mcguffin descarado para conferir propósito em uma jornada sucateada.
Ainda dividindo a conclusão entre finais bons e ruins, a história de Force Unleashed 2 não consegue nem mesmo se fechar satisfatoriamente recorrendo à pretensão de um terceiro jogo.
Apesar de raquítica, como disse, a história não é detestável, mas se torna basicamente um filler sem nenhum propósito.
Reformas na Força
Se a história falha consideravelmente, a LucasArts ouviu os fãs e reformou bastante a mecânica do jogo em sua sequência. Muita da atmosfera excepcional da física de partículas e colisões foi preservada, mas também diversos elementos foram aprimorados. Jogar The Force Unleashed 2 é uma dádiva de tão fluido que é seu gameplay.
A principal novidade é a mudança no sistema de combos e combate. Dessa vez, Starkiller porta dois sabres de luz tornando o game ainda mais rápido. Podemos misturar alguns poderes da Força para desferir ao longo dos golpes sem quebrar a sequência como usar um empurrão embutido na lâmina ou disparar raios sith através da espada. Com a manutenção da esquiva potencializada pela Força, o combate é extremamente dinâmico. Basicamente se torna o melhor combate de hack n’ slash que já vi em um jogo do tipo.
Os poderes da Força foram igualmente aprimorados. Digamos que eles têm mais “peso” ao serem lançados. Tanto o empurrão quanto o raio e o force grip, o “agarrão”, agora se comportam com mais violência ao interagirem com inimigos e cenário. O raio, em seu último upgrade, consegue incendiar os inimigos, além de iluminar boa parte do cenário. Já o force grip foi consertado significativamente. Agora é mais fácil pegar inimigos e objetos para lançarmos aos ares. Porém, a adição mais fantástica do grip é o massacre dos TIE Fighters que se comprimem até virarem uma bola de aço quando usamos a Força.
O sistema de evolução do personagem também é menos complexo. A árvore de habilidades foi reduzida apenas para aprimorar a Força e seus poderes. O sistema de compra é feito pelos pontos adquiridos ao cumprir objetivos ou destruir oponentes. Para aumentar as barras de vida e força, é preciso pegar alguns holocrons espalhados pelas fases.
Aliás, ainda é preservado, em escala reduzida, a customização de sabres e vestimentas do personagem. A cada nova fase, um figurino novo é desbloqueado e os cristais coloridos – agora com adicionais já embutidos na cor, estão espalhados em holocrons. É possível combinar sabres de duas cores distintas ao mesmo tempo.
Redução a custo de?
Em entrevistas na época, os produtores do game já diziam que teríamos menos oponentes no jogo se comparado ao primeiro título. E realmente é um fato. A redução de inimigos é gritante. Não enfrentamos alienígenas em basicamente momento algum. Os oponentes entram no rodízio de 3 variações de troopers, guardas reais com sabres vermelhos, guardas sensitivos à Força, AT-STs, um andador que dispara foguetes e lança chutes e dois outros andadores que lançam chamas ou vapor de gelo. Basicamente, é isso o que deixa mais evidente o quanto o jogo é repetitivo.
O game não conta com a variação de objetivos presente no 1 e nem com as divertidas caçadas aos Jedi que marcaram tanto as lutas contra chefes de fase. Em termos de game design, The Force Unleashed 2 é uma decepção tremenda também. A LucasArts, atenta a novos modelos de gameplay, tentou conferir vislumbres mais inspirados para o jogo. Uma pena que essas seções mais “roteirizadas” nitidamente inspiradas em Uncharted só aparecem duas vezes e se repetem em mais outras duas, tornando a grande novidade algo absolutamente broxante.
O mesmo acontece com o level design, muito mais empobrecido ante o jogo anterior. A diversidade de cenários não é tão expressiva como antes, já que em diversos momentos é possível notar locais reciclados ao longo do progresso linear das fases. Ao longo do progresso, temos apenas 4 ambientes diferentes sendo que somente 3 são verdadeiramente abertos para a jogatina: Kamino, Cato Neimoidia e a nave Salvation.
Kamino e Neimoidia são os cenários mais interessantes. Kamino é recriada com bastante acuidade fílmica apresentando uma nova dimensão do planeta chuvoso dos clones. Já Neimoidia possui cenários majestosos por conta de ser uma cidade içada aos ares constituída por pontos, arranha-céus e cassinos.
Já nas fases destinadas à Salvation, a direção do jogo toma um rumo inesperado e mais interessante ao fazer o game flertar com a atmosfera de survivor horror como em Dead Space. A atmosfera assustadora é garantida pelo rastro de destruição que acompanhamos na Salvation, além da iluminação ser melhor elaborada, trabalhando com mais sombras e escuridão. É justamente aqui que um dos pontos mais altos do jogo se faz notado: o estupendo design de som.
Os mesmos objetivos, novas texturas
Mesmo assim, com as três mudanças de ares em cada fase, o jogo permanece bastante repetitivo pedindo os mesmos objetivos, sempre. Basicamente, matamos muitos oponentes indo do ponto A para o B, resolvemos um puzzle simples para abrir um portal e retomamos a matança até chegar no chefe de fase. Dessa vez, não é possível percorrer o nível inteiro livremente matando pouquíssimos troopers. A LucasArts corrigiu isso recorrendo aos “portais” que só liberam após limparmos aquela seção da fase. Esse entrave só contribui para deixar mais evidente a repetição massiva em um jogo de somente 4 horas.
O exagero também retorna em The Force Unleashed 2. Em busca do épico, a LucasArts comete os mesmíssimos equívocos de outrora. Somente um dos três chefes de fase tem a duração correta de batalha por conta das mudanças de estratégia que assumimos a cada proporção de dano que o Gorog recebe na arena gladiadora de Neimoidia. É uma luta fascinante e bastante divertida em totalidade.
Porém, as outras duas, contra o Walking Terror, um robô-aranha protegido por escudos, e contra Darth Vader, decepcionam bastante. A primeira, em Salvation, é um porre de ser concluída por conta da burocracia exigida para desativar os escudos do droide. Fora o fato dele lançar os pequenos robozinhos que drenam energia a todo o momento. Com bastante paciência, é possível derrotar o Terror.
Já com Vader, a luta mais intensa do game, o time comete o exato mesmo erro do chefe anterior. A batalha é divertida, em partes, porém muita coisa é comprometida por conta da extensão colossal da luta. É como se os desenvolvedores estendessem ao máximo esses trechos para render alguns minutos a mais para a duração ridícula do jogo.
Com o lorde sith, na primeira metade da luta, temos a insistência em jogar diversos clones não finalizados contra o jogador. Alguns, sensíveis à força, outros que usam sabres – reciclagens de outros oponentes prévios do jogo. Com Vader pulando de plataforma em plataforma, além disso, a luta se torna maçante pela repetição dos elementos: combater clones, jogar tanques em Vader, pular para outra plataforma e, enfim, batalhar contra o vilão. Chato. Repetitivo.
Um precursor visual
Diante de tantas roubadas feitas pela LucasArts em game design e das más escolhas tomadas pelos fatores já expostos, é impressionante a evolução da engine gráfica própria da desenvolvedora entre os dois jogos com apenas 2 anos de diferença.
Não é exagero dizer que Force Unleashed 2 é um dos dez jogos mais belos da geração passada. Aliás, os gráficos conseguem se sustentar até hoje, caso jogue a versão de PC no setting máximo. A riqueza de detalhes, cor e saturação adequada deixam qualquer um fascinado, além das texturas ricas que estampam o mundo do game. Desde aço derretido, roupas molhadas, oscilações nos sabres de luz, na física da chuva reagindo ao vento, cenários e personagens, enfim, é de deixar qualquer um maravilhado.
Essa perfeição técnica realmente consegue dar um grau de imersão e realismo nunca vistos até Star Wars: Battlefront. Nos sentíamos verdadeiramente dentro do universo exuberante de Star Wars. Uma pena que o visual estupendo seja sacrificado por cenários pouco inspirados e reciclados.
A Força Moribunda
Diante do jogo anterior, é bizarro notar o retrocesso deste game que marca o epitáfio da gloriosa LucasArts. Como uma equipe tão criativa que conseguiu realizar um dos melhores jogos da franquia também deu origem a um dos jogos mais decepcionantes de uma geração inteira? Em vez de ser um retorno apaixonado, The Force Unleashed 2 mais pareceu um retorno amargo e obrigatório para dar prosseguimento a um projeto de franquia milionária. Tanto que o terceiro game já estava encaminhado até ser limado com o fechamento da produtora.
De modo algum Force Unleashed 2 é um jogo horroroso ou deplorável. Ele diverte até certo ponto, apresenta melhorias de mecânicas necessárias, além de contar com uma parte técnica exuberante com seus gráficos e desenhos sonoros. Porém, tudo vai por água baixo diante da inacreditável repetição presente em um jogo de míseras quatro horas.
Agora cabe à EA Games em resgatar o saudoso espírito dos jogos da LucasArts. Nada mais propício para este 2017 que promete muitas novidades para a franquia. Uma nova esperança.
Pontos positivos: excelente desenho de som, gráficos de ponta, gameplay fluido excepcional, novo sistema de combos, menus mais intuitivos e rápidos, mudanças interessantes de atmosfera, simplificação da árvore de habilidades, boa dublagem, possibilidade de desmembrar inimigos com golpes de sabres de luz, novos poderes como Jedi mind trick e Jedi Rage, novas texturas e animações para os poderes da Força.
Pontos negativos: inacreditavelmente curto, repetitivo e pouco inspirado, lutas contra chefes se alongam além do necessário, pouca variação de inimigos, intensa reciclagem de cenários, história filler, personagens perdidos que traem sua essência, poucos planetas e cenários, trilha musical inexpressiva, final broxante, bugs ocasionais, versões de consoles e pcs sem todo o conteúdo – versão de Wii tinha fases adicionais e mudanças de estrutura mais interessantes.
Crítica | Moana: Um Mar de Aventuras
A Disney segue por intensa reformulação apostando em caminhos cada vez menos ortodoxos e audaciosos. Zootopia e Detona Ralph são bons exemplos de como o estúdio está procurando mais diversidade em suas animações, seguindo abordagens diversificadas próximas as da Pixar. Desde a Renascença, período marcado pelos sucessos do estúdio nos anos 1990, a Disney ousou em explorar outras culturas que fugissem da sua ênfase em obras inspiradas por contos anglo-germânicos europeus.
Os novos ares árabes, africanos e orientais renderam histórias magnificas como Mulan, O Rei Leão e Aladdin. Com Moana é a primeira vez que vemos a Disney visitar a Polinésia. A escolha combina com a vertente ousada dos diretores Ron Clements e John Musker, os responsáveis pela princesa afrodescendente de A Princesa e o Sapo, pegando a temática riquíssima de Nova Orleans.
A dupla traz toda a exuberante cultura do arquipélago do sul do Pacífico para ilustrar uma história cheia de cores explosivas e bons significados. Moana inicia assim como qualquer outro conto de fadas da era de ouro do estúdio: através da longa exposição sobre a mitologia e do evento base que moverá toda a jornada, em flashback.
A Odisseia de Moana
Maui, um semi-deus, rouba uma pedra mística que oferece vida para todas as ilhas do Pacífico. Porém, ao fazer isso, o herói condena toda a vida do arquipélago em uma onda de corrupção e podridão agressivas que destroem tudo o que há pelo caminho. Antes de reparar seu erro fatal, Maui é exilado e a pedra some no fundo mar.
Anos depois, na ilha Motunui, Moana, ainda bebê e filha do líder da tribo, é escolhida pelo Mar para salvar toda a Polinésia da corrupção ameaçadora. Porém, seu pai, o chefe Tui, a proíbe de chegar próxima do oceano. Ele quer que sua filha vire a líder que a vila merece. Moana cresce, e seu destino a chama cada vez mais.
Completamente apaixonada pelo oceano, o mar apresenta a rocha para Moana, a invocando para a jornada. Sem resistir, a princesa navega pelos mares em busca de Maui para ajudá-la a reparar os erros do semi-deus retornando a pedra em seu local de direito, restaurando todo o equilíbrio do ecossistema, afinal, a podridão chegou em Motunui devastando toda a fertilidade de sua terra.
O que sempre me impressiona nos filmes Disney é a capacidade de organizar o pensamento de tantas cabeças pensando na mesma história. O argumento de Moana foi escrito por sete pessoas, incluindo seus quatro diretores. Tudo organizado no tratamento de Jared Bush. Como podem perceber, é muita gente para elaborar uma narrativa tão simples de jornada do herói básica, mas com requintes modernos sobre o papel feminino, tradição, herança cultural e determinação.
Mensagens importantes e valiosas para as novas gerações que a Disney encantará por anos a fio. Um dos maiores méritos do texto de Moana é justamente investir no estabelecimento da mitologia polinésia e da história de sua protagonista já inferindo todos os conflitos que guiarão a trama.
Vemos a personagem dividida entre cumprir seu papel social como a próxima governante de Motonui, algo imposto pelo patriarca da vila, enquanto lida com sua imensa vontade em explorar o mundo, navegando pelo Pacífico. Os conflitos de Moana são bem imediatos e bem contornados: não demora muito para que o Chef Tui se oponha vorazmente com a vontade da filha em explorar o oceano. O que poderia ser gratuito e fajuto, rende uma boa motivação – importante citar que muitos dos trabalhos de motivação são clichês.
Servindo de contraponto ao pai, a avó de Moana a encoraja a cumprir seu destino. Logo, a relação dela com os dois personagens é eficaz, mesmo que ligeiras. Como em todo musical Disney, as músicas servem de síntese para expor os desejos internos de Moana e Maui. É exposição, sim, mas de uso inteligente, além da qualidade das canções serem excelentes.
Quando Moana parte, o roteirista não se alonga para apresentar novamente Maui para o público. Na relação dos dois, é onde o filme brilha de modo muitíssimo inteligente. Os diálogos, sempre adequados ao feeling da cena, divertem pela dinâmica ligeira entre eles. Maui, por ser um semi-deus com poderes mágicos graças ao uso de seu gancho, é arrogante, convencido e orgulhoso servindo de contraponto para Moana, ainda insegura e ingênua em encarar os diversos perigos da jornada.
Trabalho básico entre opostos, mas com uma jogada bastante inteligente. Maui, por ser muito poderoso, sempre põe em cheque a competência de Moana por ela ser humana e fraca. Não é preciso pensar muito para ver que se trata de uma metáfora para as constatações machistas do personagem. É evidente que o confronto é bem trabalhado e, conforme o filme avança, as certezas de Maui são postas em cheque.
Outra relevância do roteiro é enxergar na completa desnecessidade de um núcleo romântico. Creio que esse seja o primeiro filme da marca Princesas que deixe isso ausente, já colocando outra forma de pensamento sobre as personagens femininas da Disney, cada vez mais independentes e aventureiras. Isso é frisado com certa frequência, pois Bush usa linhas de diálogo que escancaram um exercício metalinguístico dessa animação. Ou seja, o texto tem consciência de que se trata de uma narrativa de princesas em um filme Disney.
Friso que isso nem chega perto de ser panfletário. A ordenação é bem inteligente em trabalhar polemicas com naturalidade e humor. Também é inteligente a solução de seu clímax na aventura, subvertendo a figura do antagonista de modo mais profundo do que já visto em Frozen.
Talvez, as fraquezas do longa estejam nos excessos e na estrutura previsível e manjada ao extremo. Como o longa tem insights valiosos e trabalhe com uma jornada do herói muito similar a de Odisséia, de Homero, a narrativa derivada não incomoda tanto. O personagem do Galo, um alívio cômico, é usado demais com piadas repetitivas, além de um diálogo sofrer um anacronismo miserável.
Fora isso, não muito com o que reclamar de Moana. É um filme que satisfaz imensamente.
E o faz apostando em uma aventura expansiva e épica enquanto centra seu núcleo em esferas intimistas e delicadas, cativando pela quantidade seleta de personagens muito cativantes. Destaque para a avó de Moana, também trabalhada em clichés vistos em Pocahontas e Kung Fu Panda, porém, novamente, temos essa consciência tão valiosa sobre as limitações do filme.
Diretores Antropólogos
É impossível se desapegar de certas tradições. A Disney frisa isso em todos os filmes, justificando o longo trabalho de produção de cada um dos longas. Para a empresa, é preciso conhecer de perto a realidade do tema que será retratado na ficção para ser o mais acurado possível. Com Moana não é diferente.
A dupla Clements e Musker viajaram por diversas ilhas da Polinésia para compreender a cultura local, aplicando o conhecimento transcendental a favor da narrativa. Inegável notar isso em tela. O contato com a natureza, a importância da família, da cultura, da herança, de seu papel na sociedade é frisada compartilhando a cultura local seja com tatuagens, com os hábitos alimentares, na arquitetura fidedigna dos barcos, dos adereços, da decoração apropriada, da mitologia e religião e, principalmente, no caso do oceano que vira um personagem ativo na obra, seja como elemento dramático ou cômico.
É uma dualidade encantadora de pavor, medo, paixão, humor e alegria. Nisso, ambos sabem trabalhar bem. Apesar do oceano ter escolhido Moana para a aventura, não significa que ele é responsável por ela – logo o filme se livra de muitos problemas de conveniências narrativas e deus ex machina.
A voz da Polinésia
Até mesmo as escolhas dos atores são convenientes com o tema. Dwayne Johson, descendente de povos originários do arquipélago da Polinésia, arrasa com Maui, conseguindo atingir a potência vocal necessária para elevar a imponência do personagem. Até arrisca em uma sequência de canto excelente onde os diretores apresentam um recuso sensacional que dura no restante do filme: o uso das tatuagens de Maui, animadas tradicionalmente com traço único, como elemento narrativo catártico e moral para o personagem – tem a função de side kick como Olaf, Grilo e Mushu.
O maior destaque fica para a protagonista Auli’i Cravalho, havaiana, que oferece uma explosão de vida para Moana. É uma voz um pouco rouca que combina com os sentimentos refreados da personagem, além de ambas serem adolescentes – os pitis são genuínos. O talento musical também é destaque, superando o desempenho da cantora oficial em How Far I’ll Go.
Fotorrealismo abundante, técnica elegante
Com O Bom Dinossauro, a Pixar alçou o fotorrealismo em animações feitas por computação gráfica em outro patamar. Moana é o correspondente no feito para a Disney. O conceito é similar. Os cenários são bastante realistas, de cores saturadas com iluminação impressionante e de texturas sinestésicas. Os diretores valorizam o trabalho dos artistas e clamam por diversos desafios para os animadores. Esse é, possivelmente, o melhor mar animado que tenhamos visto em filmes do gênero. O que justifica completamente a escolha da computação gráfica.
Seria uma pena notar que toda a riqueza visual do filme talvez fosse prejudicada se optassem pela animação tradicional. Não somente pela qualidade da animação, das artes conceituais, dos cabelos volumosos ou da intrincada tecnologia de iluminação exemplar, mas principalmente na modelagem dos protagonistas que carregam traços do povo indonésio.
Esse é um filme mais apressado em termos visuais. Os diretores apostam em muitos planos com variedade tremenda de linguagem cinematográfica, além de esbanjarem criatividade para as sequências musicais com destaque para Shiny, que é uma cena bem mista em termos de qualidade. Visualmente ótima, mas muito dilatada com uma música a la David Bowie que destoa bastante do tom das outras – há uma justificativa, mas é estranho de toda a forma.
Particularmente, mesmo que seja um filme abundante aos olhos, os dois não demonstram muitas jogadas visuais inteligentíssimas ou particularmente sensíveis. É tudo correto e condizente, sombrio e contemplativo quando necessário e efervescente, pulsante em outros momentos. A única jogada espetacular é a solução visual lindíssima para uma tragédia que atinge profundamente a vida e o emocional da personagem. Uma sequência de primeira catarse digna de aplausos.
Aliás, os dois consegue se valer bastante de metáforas com o mar para representar o vai-e-vem emocional da personagem. Infelizmente, diria que a direção de A Princesa e o Sapo é um pouco mais criativa nesse tipo de riqueza metafórica, mas ainda se trata de um trabalho exemplar.
Mar de Aventuras
Apesar de seu roteiro se sustentar em arquétipos clássicos e conflitos manjados, além de se movimentar por conta de um macguffin, Moana é uma animação nada menos que excelente. Cativa pela sutileza, pelo carisma impressionante e da própria qualidade visual soberba. O cuidado antropológico e cultural é vasto, além de contar com uma trilha musica digna de Oscar captando completamente a atmosfera da Polinésia. Não somente por esses cuidados, mas por possuir soluções narrativas para repensar a figura do antagonista e da mulher nos filmes de princesa do estúdio.
Moana é a melhor Odisseia que seu filho pequeno pode ver e, com certeza, as mensagens adequadas sobre valores tradicionais e ecologia encantarão os mais adultos. É a mágica da Disney. Encantar pessoas, não importando sua idade.
Moana: Um Mar de Aventuras (Moana, 2016, EUA)
Direção: Ron Clements, Don Hall, John Musker, Chris Williams
Roteiro: Jared Bush, história de Ron Clements, John Musker, Chris Williams, Don Hall, Pamela Ribon, Aaron Kandell e Jordan Kandell
Vozes originais: Auli’i Cravalho, Dwayne Johnson, Rachel House, Temuera Morrison, Jemaine Clement, Nicole Scherzinger, Alan Tudyk, Oscar Kightley
Gênero: Infantil, Comédia, Aventura
Duração: 107 min.
Crítica | Animais Noturnos
Certos diretores talentosos de cinema não necessariamente surgem já na sétima arte. Boa parte deles faz o clássico caminho do videoclipe para o cinema como David Fincher, Marc Webb ou Spike Jonze. Porém, nunca tinha visto um diretor vir do mundo da moda dar seus pitacos como cineasta. Em 2009, tivemos a grande estreia de Tom Ford, renomado estilista, para o mundo cinematográfico com o excelente Direito de Amar.
Depois da celebração de sua estreia, o diretor entrou em hiato até agora. Sete anos depois recebemos um filme especial: Animais Noturnos. Longa que, aliás, conversa bastante com sua vida por conta de retratar temas muitos inerentes ao ambiente texano.
O roteiro de Ford adapta o romance Tony e Susan escrito por Austin Wright. Ao contrário do livro, Ford optou por uma narrativa não linear que certamente favorece o modelo cinematográfico de storytelling. Acompanhamos a vida de Susan Morrow, uma curadora bem-sucedida de um museu de arte pós-moderna. Entre cortejos, festejos, riqueza e um casamento fadado ao fracasso, Susan leva sua vida entediante dia após dia. Até que recebe um pacote em sua casa.
Seu ex-marido, o escritor Edward Scheffield, envia a cópia de seu novo livro, Animais Noturnos, batizado em homenagem as insônias constantes de Susan. Intrigada, Susan começa a ler a obra inspirada nela, mas o que encontra escrito nas páginas conversa diretamente com a problemática história regressa dos dois. Conforme a história do livro fica mais violenta, Susan relembra do passado com seu ex-marido, repensando ações equivocadas.
O thriller diabólico
A escolha da narrativa de Animais Noturnos certamente é seu maior diferencial. Temos uma característica das mais difíceis de serem realizadas no Cinema: a ficção dentro da ficção. Ou seja, a história do livro de Edward também é adaptada para o longa. E para gostar por completo de Animais Noturnos, é preciso compreender os personagens e a atmosfera de cada espaço temporal dos três que o filme aborda. Além de ter certo conhecimento extra-filme para poder apreciar por completo.
A tom do texto de Ford é crítico e ácido quase extrapolando no cinismo. Animais Noturnos é um filme cínico sobre a natureza humana mais comum: a crueldade. Seu início aborda o casamento frio e opaco de Susan com o marido rico, galante, mas chato e entediante. Sua vida segue a rotina pré-definida, estável e sem aventura alguma. Até receber a bendita cópia do livro do ex-marido.
O texto, até então silencioso e de conflitos mornos, adapta toda a monstruosidade descrita nas páginas sangrentas de Animais Noturnos. Nessa narrativa, vemos a tragédia de Tony Hastings, um homem que viajava com sua família pelo interior do Texas até ser abordado por um grupo de caipiras de índole pervertida. Com a filha e a mulher sequestradas pelo grupo, Tony fará de tudo para reaver sua família no meio terra desolada.
A narrativa do livro, obviamente, atrai mais o espectador por conta de a história possuir mais conflito e personagens carismáticos ante a narrativa do tempo presente de Susan. Como sempre temos transições entre três linhas temporais, a narrativa do livro, por vezes, é um pouco apressada, possuindo diversas elipses que condensam até mesmo anos podendo causar certo estranhamento.
Porém, o conflito que o protagonista passa é exemplar para comprarmos sua dor, além de Jake Gyllenhaal estar estupendo neste papel. Basicamente é uma história de faroeste moderno que carrega toda a decadência moral e social que ocorre no Texas contemporâneo sobre o modo que o ambiente afeta a vida de homens bons e maus.
Nisso, há o excelente personagem de Michael Shannon encarnando o xerife local Bobby Andes. Um coadjuvante digno de atenção por sintetizar um pessimismo latente sobre toda aquela terra. Seu desenvolvimento impressiona também por ser muito coeso. Há uma transformação que consegue tocar o espectador a ponto de mudar a primeira impressão que tivemos do personagem que corrobora toda uma impressão inicial do arco de Tony: o fato de ninguém expressar muita vontade em querer ajudá-lo a reencontrar sua esposa e filha.
Metamorfoses
O roteiro de Ford, além de conseguir contar competentemente três histórias, é extremamente eficaz em conectá-las. Assim que Susan começa a ler o livro do ex-marido e sacar que toda a história de vingança e sofrimento que o protagonista sofre é uma elaborada metáfora da vida regressa do casal, a terceira narrativa em flashback surge.
Temos então uma Susan completamente distinta da que protagoniza o tempo presente. A narrativa acompanha o relacionamento de Susan com o ex-marido Edward – também encarnado por Jake Gyllenhaal que consegue criar camadas distintas e similares para cada personagem. Aqui, há todo o começo do relacionamento dos dois, ainda jovens, aspirantes a sonhadores. O conflito é muito pertinente, pois ele é originado através de outro flashback excelente de Susan com sua mãe – performance destruidora de Laura Linney, enquanto almoçam.
Para quem estiver atento, o cerne da mensagem do filme está nesta cena. A partir disso, temos dois núcleos narrativos com excelentes conflitos em contraste com a vida insossa que Susan leva no presente. Só o fato da leitura do livro despertar essas memórias na protagonista, já torna a história muito mais instigante do que ela é. A grande eficiência de Animais Noturnos não está centrada no roteiro e no desenvolvimento pleno dos personagens, mas sim na excepcional técnica que Ford possui em conduzir o longa.
Corte e Costura
A abertura de Animais Noturnos – que, inclusive, foi censurada em alguns países, já sintetiza boa parte da vida de Susan e da subversão de beleza que o filme aborda. As mulheres obesas, idosas e nuas que dançam na abertura já trançam uma ironia pertinente ao filme inteiro sobre a lembrança de uma terra em completa decadência, seja estética, moral ou ética.
Todo o figurino e adereços utilizados pelas senhoras são os mesmos que várias mulheres “fantasia” jovens e voluptuosas vestem para celebrar o feriado de 4º de julho, independência americana, em festivais ou paradas urbanas. Ou seja, todo o bastião da liberdade de outrora representando pela famosa beleza americana é subvertido – o que se prova por todas as ações dos protagonistas e antagonistas que vão contra a moral vigente para diversas classes da sociedade americana.
A maior ironia se concentra justamente quando é revelado sobre o que se trata aquilo tudo: de uma peça de arte pós-moderna. O ranço de Ford pelo movimento é expressado pela síntese da chatice ególatra prepotente com exposições estúpidas e pseudo-intelectuais que Susan é obrigada a conviver e curar diariamente. Até mesmo alguns diálogos abordam esta questão de modo incisivo e direto. É um excelente paradoxo essa sequência inicial em criar uma encenação que agregue tanto ao filme enquanto sua função narrativa exibe o gosto artístico decadente de Susan.
Esse niilismo da personagem é refletido pela atuação quase robótica de Amy Adams que vai se transformando em humana novamente conforme lê o livro do ex-marido. Se imagina que tudo isso é construído através de muitas simbologias inteligentes, saiba que acertou. O filme carece de desenvolvimento pautado através de diálogos, pois Ford praticamente te obriga a interpretar o filme. Caso não faça isso, apenas terá visto um bom filme que, na verdade, é excelente.
As metáforas são fáceis de captar e de interpretar a partir do momento que o espectador sacar que toda a jornada de Tony no romance espelha todo o sentimento nada amistoso que o autor sente pela ex-mulher – sentimento este muito bem justificado em uma reviravolta grotesca do longa.
Novamente, é impossível não sacar isso por conta de Ford sempre orientar o montador Joan Sobel em realizar cortes com imagens muito parecidas entre as linhas narrativas. A competência de raccords visuais de Tom Ford é invejável por conseguir costurar essa metáfora com perfeição através das imagens impactantes. O diretor muitas vezes usa a semelhança física entre Amy Adams e Isla Fisher, que interpreta a esposa de Tony na ficção, para colar esses paralelos de ódio, desespero e violência presentes no discurso.
Como muita gente espera, Animais Noturnos é um deleite visual. Um esteta explícito, Ford consegue criar imagens estéreis para a vida presente de Susan, sempre muito monocromática, limpa, sombria e sem graça, mas de profunda beleza pela composição dos enquadramentos – referência direta aos desejos de riqueza supérflua que a personagem almeja; enquanto abusa nos contrastes das imagens saturadas da narrativa do livro e das cenas que Susan se recorda do casamento com o ex - estas, muito mais softs e românticas.
A jornada texana começa completamente escura e tenebrosa, condizente com os eventos traumáticos que abrem o livro. Porém, passada as tensas cenas do sequestro também encenadas com proeza, Ford e o fotógrafo Seamus McGarvey apostam na paleta mais saturada a fim de transmitir a diegese clássica texana. Ao longo do retorno dessas cenas, as cores são minimizadas através de um filtro que contrasta maiores níveis de preto na imagem já refletindo o crescimento da sede de vingança de Tony.
Ford cria imagens belas e duras que raramente transmitem afeto amoroso. É um trabalho visual que visa sempre isolar os personagens em um estado de paranoia obsessiva ou alienação intensa. Repare que os enquadramentos conjuntos são postos em contrastes para a narrativa de Tony. Antes, tínhamos o homem enquadrado junto com sua família e captores enquanto, progressivamente, Ford o isola nos enquadramentos finais de sua narrativa.
Em alguns enquadramentos pontuais, o diretor também expressa simbologias mais evidentes. Elaboradas, mas de fácil compreensão. Vejamos três exemplos. O primeiro deles é um enquadramento que emoldura uma caixa com os dizeres "frágil" com Susan na profundidade de campo. Um belo foreshadowing para quebrar a primeira impressão de mulher forte e decidida que temos da protagonista. Depois, com o cadáver de uma moça, Ford deixa o colar dourado com um crucifixo amassado e impotente em evidência - novamente, um método de reforçar a mensagem da decadência da moral texana, um dos estados mais cristãos dos EUA. No último exemplo, depois de Susan ter lido os trechos mais violentos do livro, Ford enquadra a personagem ao lado de um enorme quadro com os dizeres Revenge. Ao mesmo tempo, enquanto Susan parece voltar a se apaixonar pelo ex, o espectador tem a consciência da ignorância da mulher em não perceber que o livro nada mais é do que uma peça de vingança contra ela. É um manifesto do desafeto, do desapego e do escape de violência que Edward deseja infligir contra Susan.
Outro foreshadowing potente se dá no momento que Susan abre o pacote com a carta e o livro escritos pelo ex. Ao cortar-se com o papel, praticamente temos uma dívida de sangue selada entre os dois, além de marcar o começo da vingança de Edward consumando um desejo de violência física através de um objeto frágil. Mal sabe Susan, naquele momento, que a agressão do ex-marido será consolidada através das ideias, com imagens violentas apenas descritas por palavras. Paradoxo.
Com Susan, há o mesmo entre a alternância dos flashbacks de seu passado com o presente. Ford não decepciona ainda que não arrisque nunca em movimentar sua câmera para criar uma encenação mais envolvente. O diretor trabalha com a linguagem clássica dos anos 1950, mas com o ritmo da montagem moderna para criar a tensão necessária sem ter que recorrer à movimentação do aparato.
Além da montagem, o que torna Animais Noturnos tão magnético é a performance estupenda do elenco. Apesar de Adams e Gyllenhaal tomarem a dianteira no trabalho criativo conseguindo criar personagens complexos somente através do exuberante contraste de momentos da atuação, Michael Shannon e Aaron Taylor-Johnson dão um show em suas cenas dedicadas. Mesmo que o personagem de Shannon incorpore estereótipos e clichés do faroeste, o ator consegue conferir um grau de insanidade e passividade assustadora para o personagem por conta de olhares ora obtusos, ora flamejantes.
Já Taylor-Johnson encarna o hillbilly perfeito. Sua apresentação é fantástica por conta da subjetividade das ações do personagem. Mesmo que saibamos que a índole do antagonista seja cruel, Johnson mantém o personagem no limiar de uma loucura que busca gentileza e agressividade. A cena do sequestro só se torna tão eficiente por conta desse trabalho muito interessante de Johson que mantém esse cinismo camaleônico da moralidade até o fim do filme. Seu personagem é a síntese do animal criado pelo meio implacável capaz de fazer tudo para sobreviver.
Beleza Putrefata
É muito compreensível que Animais Noturnos não seja um filme que caia no gosto de todos. É outro caso de “ame ou odeie” por conta das tonalidades artísticas e da narrativa do filme pesar tanto na estética e na direção para que consiga ser desenvolvida de modo pleno e eficaz. Não é um filme difícil, mas ele exige sua atenção e senso artístico para esmiuçar todas as imagens que Ford traz em tela. Sem abordar o filme desse modo, é bem possível que ele se torne bastante chato após a meia hora inicial, afinal há uma troca de gênero.
Passamos de um thriller repleto de violência que promete uma história de vingança explosiva para então se tornar um drama psicológico humano sobre relações amorosas fracassadas e o luto do abandono. Porém, a graça de Animais Noturnos é justamente essa: em flertar com o ser e não ser, em se metamorfosear em um filme paradoxal extremamente simples, mas ao mesmo tempo complexo e exigente. Delicado e cruel, apaixonado e incrédulo, altivo e mortal.
Para fechar o ano em grande estilo, eis que Tom Ford confere uma obra estupenda, muito inteligente, que deve agradar bastante àqueles que procuram um filme completo em todos os sentidos, incluindo sua trilha musical maravilhosa, romântica, idílica e leve. Uma música que emana toda a beleza moral nunca alcançada por seus míseros, infelizes personagens.
Animais Noturnos (Nocturnal Animals, 2016 - EUA)
Direção: Tom Ford
Roteiro: Tom Ford (baseado no romance de Austin Wright)
Elenco: Amy Adams, Jake Gyllenhaal, Michael Shannon, Aaron Taylor-Johnson, Isla Fisher, Ellie Bamber, Armie Hammer, Karl Glusman, Laura Linney, Michael Sheen
Gênero: Suspense
Duração: 117 min.
Crítica | Invasão Zumbi (2016)
O cinema sul-coreano se consolidou com expressividade neste século. Hoje, é possível encontrar cinéfilos que não aguardam somente os blockbusters hollywoodianos com certa ansiedade, mas também discutem a antecipação de lançamentos de novas promessas cinematográficas coreanas.
Ao contrário de mestres já consolidados como Chan-wook Park ou Bong Joon Ho, Sang-ho Yeon ainda era um tanto desconhecido. Tradicionalmente, Yeon é um diretor de animações adultas coreanas, mas Invasão Zumbi marca esse ponto de virada em sua carreira. Decidindo trabalhar com o tema dos mortos vivos neste ano, Yeon fez este live action e uma animação sobre uma infestação zumbi na Coréia do Sul.
A narrativa, escrita pelo próprio diretor, é de escopo menor ante a um terror de escala nacional. Acompanhamos a história de Seok Woo, um empresário arrogante e egoísta repleto de trabalho que consome todo seu tempo livre que seria dedicado para aproveitar a infância de sua filha Soo-an. Falhando mais uma vez com os compromissos escolares da garota, além de esquecer de seu aniversário, a filha clama para que Seok faça a viagem para Busan, cidade onde vive sua ex-mulher e mãe da pequena Soo.
Refém de sua própria arrogância, Seok não consegue negar o pedido da garota. Ambos partem para Busan em uma viagem de trem-bala partindo de Seoul. Porém, no qual seria apenas um dia normal, coisas estranhas passam a acontecer. Rumores de pessoas raivosas atacando inocentes na rua tornam-se mais recorrentes até que a situação se torna totalmente insustentável. Antes do trem partir da estação, uma mulher mordida por essas pessoas estranhas embarca no vagão. Como já está infectada, a garota se transforma e começa a morder os demais passageiros.
Com o trem tomado por zumbis e o forte sentimento de insegurança por conta da falta de notícias, a única esperança dos poucos sobreviventes, incluindo Seok e Soo, reside na conclusão da viagem até Busan, a última cidade que resistiu com sucesso a primeira onda da infecção e contágio.
Releitura?
O sub-gênero dos filmes sobre zumbis está mais que saturado nas mídias. O campo do entretenimento de jogos e filmes já não sabem mais o que fazer depois da vasta exploração até sua exaustão nessa década. Ter um olhar tão peculiar sobre o tema pode ter trazido sim novas esperanças a esse tipo de narrativa.
O motivo é bastante simples: Yeon não pavimenta sua história através de lugares comuns e, ainda por cima, consegue emplacar críticas sociais bonitas e mensagens edificantes através de um filme que só teria a mera obrigação de divertir. A proposta é incrivelmente simples: colocar um grupo de personagens testando seus limites para sobreviverem aos infectados que infestaram na embarcação e durante algumas paradas em estações.
Yeon se preocupa em estabelecer bem a mitologia da infecção, mas devido ao isolamento do grupo com o mundo externo, muito da situação fora do trem fica restrita a baterias e sinais de smartphones. Mas essa situação apocalíptica que ocorre na Coréia interessa pouco perto do que acontece dentro do trem. A história se move rapidamente. E mesmo que seja uma narrativa de grupo, o conflito principal gira em torno da relação entre pai e filha estabelecido muito rapidamente através de certos clichês.
Aliás, o roteirista define praticamente o rol inteiro de personagens através do clichê. Temos o pai empresário egoísta e arrogante, a filha que só quer a companhia paterna e espera uma reunião entre família com a mãe ausente, uma mulher grávida acompanhada de seu marido fortão cínico, duas irmãs idosas que se contrastam entre fé e ceticismo e um time de baseball acompanhado de uma cheerleader que tenta emplacar um romance com o atleta tímido do grupo.
O único elemento que foge um pouco do padrão é o mendigo que invade a embarcação tentando se salvar dos ataques na cidade. Uma pena que Yeon desperdice bastante esse personagem que nunca tem a oportunidade de dizer a que veio, mas reforça uma das críticas sociais do cineasta.
O monstro invisível
Além dos zumbis, Yeon sabe que toda boa narrativa precisa de um bom antagonista. Invasão Zumbi não foge dessa regra. O lado ruim humano da história reforça uma mensagem de segregação que pode conversar com a realidade sul-coreana. O discurso de separação é construído a todo momento: o pai que se separa da filha e da ex-mulher, do mendigo recluso encontrado no banheiro e, principalmente, dos dois grupos sobreviventes que se antagonizam diante do medo de um conjunto de pessoas estar infectado ou não.
Mesmo que não seja uma pérola na elaboração desse discurso, é bastante eficiente em causar reflexões no espectador sobre os diferentes estados de monstruosidade e egoísmo diante de terríveis horrores que nos afligem na vida real. Para construir a catarse do protagonista que precisa reencontrar um modo de resgatar o afeto com sua filha, temos o antagonista que é um personagem muito similar ao herói. Também homem de negócios, é egoísta e fará de tudo para conseguir sobreviver – a filosofia do “antes ele do que eu”.
É através das ações do antagonista, Yong-suk, que Seok consegue ter uma carga dramática competente para atingir um clímax cruel e altruísta em seu arco, afinal, ele percebeu que suas ações abomináveis no começo do filme são iguaizinhas ao do homem detestável. O único outro personagem que recebe maior complexidade no tratamento é Sang Hwa, o marido rústico de Sung, que está grávida.
É justamente com esse personagem que toda a influência dos animes da carreira do diretor que vem à tona. Já a interpretação de Dong-seok Ma é bastante caricata e exagerada, praticamente traduzindo um estereotipo de personagem de alivio cômico durão com bom coração que vemos em diversos outros animes. A filosofia de vida, seu estilo despojado e espirito protetor também entram em completa antítese de todos os valores egoístas que o protagonista carrega. Esse trabalho de contrastes é explicito para acelerar a transformação que o herói sofre durante a jornada.
Animação da vida real
O restante do trabalho do roteiro está intrinsecamente ligado com a direção de Sang-ho Yeon. As opções tomadas pelo diretor para deixar seu filme distinto são inteligentes. O estabelecimento do protagonista e de uma Seoul fria e triste é um bom exemplo disso. Ele é cuidadoso para jogar na cara do espectador que o mundo já está ruindo por conta do vírus. São passagens pontuais que indicam a infestação do vírus.
A atmosfera é muito mais eficiente em nos envolver para demonstrar um espectro sombrio que ronda a vida do protagonista. Seja na casa bastante sombreada e estéril, no amanhecer azulado nauseante de Seoul ou dos caminhões de bombeiro partindo até um incêndio na distância.
O investimento da narrativa não é centrado apenas na questão da reaproximação do pai com a filha, mas sim o destino final, Busan, que se comporta mais como uma Pasárgada por sua representação de refúgio e segurança. O diretor enfatiza por diversas vezes, em diálogos, a importância simbólica da família chegar até Busan, pois seria a primeira vez em anos que família estaria unida.
Justamente pela construção desse significado sobre tempo e família que os sacrifícios finais para a vitória tornam o filme emocionante. Confesso que não esperava nada que o longa traria um trato tão humano assim. Yeon vai tão além que até mesmo cria referências que flertam com a cinematografia de Terrence Malick de modo eficaz. O drama inteiro da personagem Soo é sintetizado pela canção que canta para seu pai. Então, apesar de simples, por abordar um tema tão humano sobre tempo, amor, altruísmo e família, o diretor ganha muitos pontos por conseguir traduzir isso de modo pleno.
Aliás, um desperdício mercadológico essa tradução infeliz que o filme recebeu no Brasil. Invasão Zumbi desmerece completamente o título original: Train to Busan, que já indica sobre o verdadeiro tema que o filme representa.
O diretor é compentente. Inclusive por elaborar contrastes visuais entre o começo e o fim do filme. No primeiro ato, raramente Yeon movimenta a câmera, sempre buscando planos intimistas e menos expansivos como se tornasse o mundo exterior em uma verdadeira claustrofobia por conta de pressões internas do protagonista. Assim que os zumbis tomam conta do trem, sua linguagem passa a ficar mais frenética até chegar em grandes planos gerais, bastante movimentados, no clímax da obra.
Como de praxe, todo o estabelecimento da mitologia dessa versão de zumbis é contado através das imagens. Yeon mistura conceitos do zumbi de Extermínio, Guerra Mundial Z e The Walking Dead, mas consegue adicionar uma característica excelente que contribui muito para gerar tensão nas cenas mais poderosas criativamente – todas acontecem quando o trem atravessa túneis.
Logo, há sempre um bom misto de picos de suspense, ação e horror no filme. Quando a ação surge a inspiração claramente vem Guerra Mundial Z com zumbis que jorram aos montes como se fossem cerais caindo na tigela – é impressionante e os efeitos visuais dão conta do recado.
Para tentar conferir a impressão de velocidade nas correrias das criaturas, Yeon usa alguns jump cuts curtos – fica um efeito ligeiramente brega, mas é eficiente. Se tem algo de ruim em Invasão Zumbi está restrito exclusivamente na parte sonora do filme.
Enquanto os diálogos são limpos e bem captados, centrados na realidade, Yeon comente alguns excessos com os efeitos sonoros dos mortos-vivos que não gemem ou urram, mas sim grasnam. É um tanto difícil levar a matança a sério ou ficar preocupado com os personagens quando os zumbis soam exatamente como o Pato Donald resmungando. É ridículo.
Já a trilha musical também comete excessos com composições que muitas vezes mal conseguem conversar com as cenas que vemos em telo ou se comporta de modo excessivamente emocional. A melhor parte da trilha musical de Invasão Zumbi é quando ela se cala.
Outro detalhe muito interessante da obra é o termo de sobrevivência levado bastante a sério. Como a ação se concentra em uma viagem comercial de um trem-bala, nenhum passageiro porta uma arma de fogo. Logo, temos um punhado de personagens extremamente vulneráveis aos ataques dos zumbis violentíssimos. Então a ação consegue sair do lugar-comum marcado por tiroteios e barricadas nesse gênero. Aqui é correria e porrada mano-a-mano em realizações excepcionais de decupagem – o diretor é muito competente em manter uma coerência visual hermética ao longo da obra.
Viagem para Busan
Há sim novos ares para o tema tão explorado inexoravelmente pela indústria. Misturando conceitos e apresentando novos, incluindo a circunstância peculiar de seu espaço de ação ser dentro de um trem, Invasão Zumbi se consagra como um dos melhores filmes dessa temática da última década. A aposta no drama humano, sem ficar no melodrama sem sal, é acertada. O conflito desenvolvido da dupla protagonista satisfaz e emociona pelo talento da atriz mirim ao final do filme. Os outros conflitos em síntese funcionam seja para causar catarse e transformação ou apenas para justificar uma ação extremada do roteiro.
Assim como grandes filmes de qualquer gênero e temática, Yeon fez de seu filme de zumbi uma excelente história sobre conflitos humanos e questionamentos éticos que transbordam moral. Acredite, não se trata de uma obra complexa que fique se preocupando em matutar temas adultos. O diretor quer mesmo é divertir o seu público com as ótimas sequências de ação e suspense que o filme possui, mas, ao mesmo tempo, consegue transmitir uma mensagem bem elaborada.
Certamente, é uma das melhores surpresas do ano que merece sua atenção.
Invasão Zumbi (Busanhaeng, 2016 - Coréia do Sul)
Direção: Sang-ho Yeon
Roteiro: Sang-ho Yeon
Elenco: Yoo Gong, Soo-an Kim, Yu-mi Jeong, Dong-seok Ma, Woo-sik Choi, Sohee, Eui-sung Kim
Gênero: Ação, Terror.
Duração: 118 min.
Crítica | Capitão Fantástico
Ah, a vida no campo. O contato com a natureza. Viver com o verde, livre das amarras das leis, livre da poluição da cidade cinzenta e do estresse do trânsito. Esse sonho por Pasárgada é antigo. Porém foi em 1950, em contexto pós-guerra, que uma nova filosofia de vida, remetendo aos sonhos idílicos surgiu. Eis a geração beat: os beatniks. O termo foi cunhado por Jack Kerouac, um dos símbolos máximos do movimento. Pregavam a subversão do materialismo, da fuga dos afazeres cotidianos castradores do ciclo escola-trabalho-futuro-vida doméstica.
O movimento ressuscitou com força o naturalismo de Thoreau, dessa busca intensa de contato com a natureza, de viver em nomadismo e fugindo e condenando totalmente a sociedade capitalista. No contexto dos beatniks, o consumo de drogas, desobediência civil, anarquismo, ecologia, as caronas, os cafés e a vida desregrada lançaram esse novo modelo de vida. O curioso é que essa ideologia anti-capital, gerou exatamente o efeito contrário: apenas reforçou uma nova indústria de produtos para esse nicho de pessoas que, querendo ou não, consomem muito.
Capitão Fantástico é justamente um desses produtos sedutores de venda de sonhos idílicos, afinal a geração e o movimento beatnik ainda não morreram. Vez ou outra, temos filmes que abordam o tema. O mais famoso deles é Na Natureza Selvagem, um dos longas favoritos de muita gente assim como esse deve se tornar. E não é por mero acaso. O movimento seduz pelo imaginário popular em crer em uma vida mais saudável, natural e feliz no campo.
Porém este filme é muito mais do que apenas um elogio ao modo naturalista de viver. Ele aborda questões cruciais ao fazer um jogo inteligente.
Estudo de natureza
O roteiro do também diretor Matt Ross segue o caminho inverso de Na Natureza Selvagem. Não partimos de um homem cansado da vida da cidade seguindo caminhos perigosos em direção a natureza, mas sim uma família inteira que vive isolada na floresta sendo confrontada ao chamado da cidade.
A história gira em torno de Ben, um homem que vive com seus seis filhos completamente isolado da civilização. Ben e sua esposa construíram um paraíso para sua família. Vivem longe de qualquer centro comercial. Tudo é construído por eles mesmos, comem o que a natureza provê seja na plantação ou na caça. Porém viver em um paraíso não é fácil.
Ben faz com que seus filhos estudem filosofia, ciências diversas, história, geografia e literatura. Não somente o treinamento intelectual é importante, mas como os exercícios físicos diários que o homem submete nas crianças. É uma criação implacável. Porém, com a morte de Claire, a mãe das crianças, Ben é confrontado com a realidade de ter que partir em uma jornada para o velório de sua mulher.
Recluso por tantos anos e com as crianças que nunca tiveram qualquer contato com a civilização, Ben terá que tomar escolhas difíceis que revelarão o verdadeiro sentido da paternidade.
O que Ross faz é o mesmo tipo de narrativa que mais acomoda o espírito beatnik: é uma narrativa de viagem, um road movie. O roteirista faz tudo didaticamente para explicar como funciona aquela família nada convencional, sobre seu modo de pensar e do respeito sobre a pluralidade de ideias dos diferentes integrantes. Porém, ao mesmo tempo que o protagonista ensina diversos elementos importantes de educação, fica nítido que ele não tem o menor traquejo social ao dar a notícia do falecimento da mãe dos garotos.
É justamente ali que começa a fundamentar os conflitos que permeiam o longa em sua totalidade – mesmo que muitos deles se provem completamente artificiais na conclusão do terceiro ato. São seis filhos e basicamente, apenas dois criam os conflitos que movem a trama. Bo, o mais velho, tem interesse em ingressar nas faculdades que ele foi aceito. Já Rellian discute que odeia a vida “natureba” que a família leva, quer participar de um círculo social mais padrão, uma sociedade capitalista para poder ir à escola, jogar videogame, fazer coisas que crianças normais fazem.
São conflitos genuínos que forçam o estudo do personagem de Ben, afinal Ross não oferece muito backstory para a vida regressa do casal. O que interessa ao roteirista é o aqui e o agora. O protagonista tem completa aversão à civilização do modo que nós conhecemos, além de abominar feriados religiosos – o alvo é o Cristianismo, como sempre. É um personagem problemático, com certeza. E assim como em Na Natureza Selvagem, o filme tenta construir um discurso que mostre o quão egoísta é o personagem ao suprimir a vontade dos demais.
Além dos conflitos com os dois filhos – as demais crianças praticamente não servem para muita coisa até o clímax do filme, Ben entra em colisão contra seus sogros sobre o modo que farão o cortejo fúnebre de sua ex-mulher. Para piorar sua situação, os avós Jack e Ellie decidem que querem a guarda das crianças, as tirando do modo de vida considerado impróprio.
O curioso é que Ross nitidamente constrói um discurso favorecendo o lado do protagonista, da vida idílica e perigosa no ermo. Para não ofender demais a base com o pedantismo do personagem, o diretor tenta criar esse jogo de “extremos” entre os dois lados: o selvagem vs. doméstico.
Civilização vs. Natureza
O jogo de opostos é óbvio. Porém, o diretor, explicitamente, através dos diálogos, favorece o discurso naturalista anti materialista do protagonista. Enquanto as pessoas que vivem em civilização são detestáveis, burras, egoístas, ignorantes, obesas, indelicadas ou falsas, a família de Ben é educada, muitíssimo inteligente, culta, sabem diversos idiomas, apta a sobreviver na selva pelo rigoroso treinamento militar, em forma e possui diversas habilidades com diferentes artes.
Para nivelar o jogo, Ross indica que os filhos de Ben, mesmo lendo sobre tudo, são extremamente alienados com o convívio social. Porém, como disse, isso nunca é feito de modo degradante ou para firmar conflitos importantes entre os integrantes da família. Quando a alienação surge, geralmente é feita para injetar comédia no filme. Nunca como um fator limitador. Seja durante o flerte de Bo com uma garota normal ou das crianças se espantando com alguns jogos violentos.
O interessante do roteiro de Ross é tirar o protagonista da zona de conforto. Enquanto a história pode ser óbvia e ter viradas clichês, incluindo sua catarse, o estudo do personagem protagonista vale o ingresso. Há uma jogada inteligente com a personagem de Claire, a esposa morta. Devido algumas informações da narrativa, o roteirista põe em cheque tudo que os pais da moça e Ben dizem a respeito de suas vontades no testamento.
Então a narrativa conspira contra todos deixando ao critério do espectador o que tomar como verdade, pois a todo momento as ideias dos dois lados entram em conflito devido às ações tomadas pela mulher antes de morrer. O legal do desenvolvimento de Ben reside em sua enorme resistência em defender a sua ideologia e modo de viver, apesar das inúmeras investidas que tentam provar o quão errado ele está.
Como o personagem é bem desenvolvido, ocorre a clássica transformação ao final, porém de modo light, afinal o diretor não quer detonar o discurso do filme – é um morde assopra. Entretanto, enquanto o terceiro ato completa o personagem, ele é extremamente covarde ao arruinar todos os conflitos criados até então, infelizmente.
Digamos que ele tenha exatamente o mesmo problema do final de O Quarto de Jack. Resolve um conflito muito complexo de modo banal, praticamente um deus ex machina. A diferença é que Capitão Fantástico não é narrado a partir do ponto de vista de uma criança. Já sobre o tratamento com outros personagens, sejam as irmãs ou com as crianças mais novas, é uma metáfora inteligente da disputa dos irmãos mais velhos com o pai pelo domínio do grupo – assim como em diversos grupos de animais selvagens como hipopótamos ou leões.
Direção indie, mas nem tanto
Matt Ross é um diretor estreante de longas metragens. É um ator de seriados muito famoso, por sinal. E a partir desse contato com tantos diretores e diferentes linguagens, mostrou um trabalho promissor – ainda que o filme clame por uma indicação ao Oscar. Ross pega muitos conceitos da direção de filmes independentes. Toda sua encenação exala esse nicho cinematográfico e realmente é algo bem feito.
Seja no trabalho criativo dos atores mirins, da liberdade de linguagem com técnicas coerentes ao tipo de narrativa retratada – câmera na mão, contemplação, trilha musical característica, montagem ritmada, atmosfera excêntrica, etc – Ross realiza um bom trabalho. Pensa nos detalhes dos figurinos de cores vibrantes, da maquiagem e do nome dos personagens para torná-los essencialmente únicos.
Infelizmente, Ross tem a mão pesada demais para saber dosar a mensagem bastante enviesada de seu filme. Porém, mesmo assim, o diretor tem seus lapsos de genialidade.
Isso ocorre através do contraste inteligente entre imagens diferentes sobre uma mesma ação. Na primeira, temos Ben tomando um banho nas cataratas que praticamente castigam seu corpo. Mesmo com a tremenda força da água, Ben não se resigna. Ele demonstra sua força diante a natureza. Já próximos ao fim do filme, o diretor retoma. Vemos o protagonista tomando um banho por um chuveiro, com águas tranquilas, gentis, civilizadas. Porém, devido diversos acontecimentos, temos o personagem já curvado, com o espírito fraco.
É uma boa síntese para marcar pontos-chave para interpretarmos o personagem.
Capitão Interessante
Capitão Fantástico é mais um filme derivado de fantasias naturalistas que ressuscitam o espírito de Thoreau e Jack Kerouac. Para quem gosta desse tipo de narrativa e sonha com uma vida idílica na natureza, certamente é um prato cheio. Não se trata, obviamente, de um filme de comédia, apesar da presença tímida de humor. O longa é um drama bastante ideológico de discurso consideravelmente enviesado.
Porém, ao ignorar a mensagem do filme e reconhecer os esforços de Matt Ross em tentar nivelar a balança dos extremos, é capaz de encontrar um ótimo filme sobre estudo de personagem: de um homem que precisa remover seus filhos – e si mesmo, da Caverna de Platão que ele mesmo criou.
Ironicamente, a obra de Ross consegue ser justamente o que seus personagens mais abominam. Durante um diálogo sobre Lolita, Ben pede uma análise para a filha que classifica o clássico como “interessante”. O homem, enfurecido, a repreende dizendo que interessante não é uma classificação decente para qualquer coisa.
Bom, Capitão Fantástico é um filme interessante.
Capitão Fantástico (Captain Fantastic, 2016 - EUA)
Direção: Matt Ross
Roteiro: Matt Ross
Elenco: Viggo Mortensen, George MacKay, Samantha Isler, Annalise Basso, Nicholas Hamilton, Shree Crooks, Charlie Shotwell, Trin Miller, Kathryn Hahn, Frank Langella, Erin Moriarty
Gênero: Road Movie, Drama, Comédia.
Duração: 118 min.
Crítica | Sing: Quem Canta Seus Males Espanta
Já não é de hoje que repito por aqui ou em conversas entre amigos que Chris Meledandri é um daqueles eventos-catarse que a indústria recebe com alguma rara frequência. O cara entende de mercado como ninguém. Um dos mercados mais complicados: o infantil. O produtor já estava envolvido em animações desde o início de sua carreira, mas sua chance de ouro explodiu com a criação de Meu Malvado Favorito, rendendo para si uma sequência e um spin-off.
Vendo que sua franquia de maldade e ajudantes amarelos logo dará sinais de esgotamento, rapidamente voltou suas apostas em algo irresistível para todas as crianças e (muitos) adultos: animais, principalmente mamíferos fofinhos. Há poucos meses, a primeira aposta de fábula moderna se provou acertada: Pets foi um grande sucesso de bilheteria. Com Sing, a aposta deve se mostrar acertada mais uma vez.
Narrativa histórica
Assim como todos os filmes de Meledandri, o roteiro não é lá grandes coisas, mas este aqui é um dos melhores já feitos para suas produções. Acompanhamos o drama de Buster Moon, um coala simpático que tenta salvar seu teatro – adquirido através de muito esforço do trabalho do pai, da completa falência. A inaptidão completa de visão de mercado levou o pequeno Buster a apostar em peças que só lhe renderão prejuízo e empréstimos bancários.
Com a hipoteca do teatro explodindo e o banco ameaçando tomar a propriedade de volta, Moon pretende organizar uma disputa de canto onde o vencedor ganharia o prêmio de 1.000 dólares. Porém, com os erros de sua assistente-iguana meio cega e idosa, o valor anunciado nos panfletos é de 100.00 dólares. Graças ao valor altíssimo, diversos concorrentes se inscrevem para as audiências.
Observando os novos talentos, Moon aposta no sucesso de público de seu concurso, porém ainda é assombrado pelo valor da recompensa prometida que ele não possui a menor condição de pagar.
Provavelmente o motivo do roteiro de Sing ser bastante superior a dos outros filmes da Illumination é por conta do trabalho de Garth Jennings. Isso se dá pelo investimento em conflitos muito humanos, de fácil empatia, para os diversos personagens. Cada um deles carregam dramas distintos que conversam com o espectador.
Vejamos, Moon é o protagonista, logo possui o conflito mais abrangente do filme: dificuldades orçamentárias, ameaças do banco e sonhos frustrados. E então temos os selecionados para a competição. O roteirista faz que cada um seja motivado por elementos externos além do incentivo da recompensa.
Rosita é uma porquinha, mãe de vinte filhos, dona de casa que já viu o trabalho exaustivo de seu marido esfriar o calor do casamento. Seus sonhos ficam em 2º plano para cuidar da vida doméstica. Ash, uma porco-espinho, limitava seu talento como cantora para atender as conveniências do seu namorado pretensioso metido à artista pós-moderno, além de sofrer com as frustrações do relacionamento. Meena é uma elefanta tímida que mora em uma residência pequena junto de sua família de peso e enxerga a oportunidade da competição para se tornar extrovertida e menos insegura.
Os únicos que se afastam da normalidade dramática são Johnny e Mike com a função de injetarem mais aventura na história. Johnny, um gorila adolescente, ajuda a gangue de seu pai em diversos crimes, mas se vê dividido para seguir seu sonho de cantor. Já Mike, arrogante e fracassado, gasta todo o dinheiro do prêmio antes mesmo de ganhar o concurso. Trapaceando em um jogo de pôquer, uma máfia de ursos passa a caçá-lo até o restante do filme.
Se há algo que parabenizo Jennings, é seu poder de síntese em estabelecer bem o conflito desses diversos personagens que nos cativam bastante. Dentro disso, obviamente alguns personagens são representações metalinguísticas óbvias. Mike é claramente inspirado em Frank Sinatra – inclusive em suas escapadas e flerte com o crime e mulheres. Já Nana Noodleman, uma artista de teatro prestigiosa carrega a aura do clichê que Gloria Swanson lançou em Crepúsculo dos Deuses.
A estrutura narrativa, assim como em outros filmes da produtora, é bastante simples, permitindo o pleno entendimento das crianças. O interessante, mesmo sendo um filme musical – contando com mais de 65 canções, é a forma inteligente que o diretor/roteirista dispôs isso na história, afinal, já imaginaram que chatice seria escutar uma playlist completa com 65 músicas?
Pois então, muitas delas são cantadas parcialmente, às vezes, nem atingindo dez segundos – como na montagem em sequência da seleção dos candidatos. Outras, ela está disposta como música diegética. Na verdade, somente no clímax que temos uma cantoria completa, mas ainda no modelo de exposição do show de talentos como um The Voice ou X Factor. Toda a natureza musical, de mudança de atmosfera com iluminação dramática, é muito restrita aqui, mas casa com a proposta realista do diretor.
Também é curioso como Jennings toma decisões corajosas em Sing, principalmente no momento obrigatória de toda narrativa de grupo que demarca a tristeza, perda ou declínio completo para encaminhar o clímax. Fora isso, a narrativa é padrão, apostando em diversas conveniências narrativas, principalmente no fato de Buster ser melhor amigo de Eddie, um filho-de-papai riquíssimo.
As outras reviravoltas que atingem o grupo, com exceção à de Johnny, são todas previsíveis, aumentando o longa além da conta. Outros desenvolvimentos acabam apressados, muitos tomando rumos clichês, além da conclusão do arco de Mike ser bastante insatisfatório. Entretanto, a temática de libertação orbita toda a conclusão do filme. Não apenas de libertação feminina, mas sim de todos os personagens. É um experimento de redenção coletiva genuíno e belo. Algo que nunca tinha visto em um filme Meledandri anteriormente.
Sociedade animal
Sing é um dos muitos longas sobre sociedades constituídas totalmente por animais antropomorfizados. Zootopia foi o ápice em termos de design inteligente, história e direção. Em Sing, infelizmente, não temos aqueles insights valiosos que pintaram no filme da Disney. Os cenários não têm aquele charme animalesco, nem mesmo como a sociedade e tecnologia se comportam perante seus habitantes animais.
Apenas é uma transposição do mundo humano com algumas adaptações não muito criativas. Ao menos, há piadas inteligentes explorando a anatomia dos bichos.
Jennings mantém o bom trabalho no roteiro com sua direção. Até pode assustar um pouco no início quando apresenta todos os personagens-chave a partir de planos-sequência excessivamente afetados e cartunescos. Fãs de Chuck Jones devem identificar o modo bem característico que o diretor dispõe os animais na abertura. De resto, seguimos na linguagem clássica, bem invisível.
É um diretor que evita chamar a atenção para seu trabalho bastante correto e competente. Ainda que trabalhe bastante com a simplicidade, não se trata de algo pouco inspirado. Inclusive, em algumas cenas, há algumas metáforas visuais inteligentes. Os momentos mais enérgicos e inspirados se concentram no ótimo clímax.
Só lamento que se trate de um trabalho, majoritariamente, automático, centrado em trabalhar na linguagem apenas como meio e pouco como mensagem, pois há potencial de sobra.
As músicas, um show à parte, misturando hits de diversas décadas inclusive apontando o abismo sem fim que a indústria musical caminha a largos passos. Mas quase nenhuma vez há uso inteligente delas para favorecer o drama. As raras ocasiões que acontecem, são fracas, mas ajudam a delinear a atmosfera.
Algo que gosto muito da técnica dessa produtora em particular é a modelagem de personagens sempre interessantes visualmente, além de objetos de cenário de padrões artísticos muito peculiares, arredondados e curiosos para os espectadores. A animação certamente é soberba, mesmo que o cuidado com a textura com os pelos não atinjam a qualidade de Zootopia ou Kung Fu Panda 3.
A iluminação foi certamente melhorada ante trabalhos anteriores do estúdio. Já era possível notar a diferença em Pets, porém aqui isso é confirmado com clareza. Inclusive, existem cenas que brincam bastante com diversos efeitos de luz, na busca de conferir a atmosfera de shows musicais. A cor, sempre saturada, está presente para encher seus olhos.
Contando canções
Não devo encerrar o texto sem ao menos elogiar o grandioso trabalho de dublagem. Contando com Mathew McConaughey como Buster Moon, já é uma bela justificativa para checar a versão legendada. Mas o elenco inteiro, de grandes nomes, se destaque não somente dublando, mas cantando bastante. Destaque para Taron Egerton e Reese Witherspoon.
Sing consegue elevar a barra de histórias medíocres que a Illumination e Meledandri vinham trazendo ao público por bastante anos. Hoje já não posso reclamar que todos os filmes dele contenham historias fofinhas potencializadas pelo visual exuberante. Sing é uma excelente pedida para se divertir com toda a família nas férias do final do ano.
Finalmente foi dada a largada para Meledandri acreditar mais no seu público e nas histórias que tem para contar e, por que não, cantar.
Sing: Quem Canta Seus Males Espanta (Sing, 2016 - EUA)
Direção: Christophe Lourdelet, Garth Jennings
Roteiro: Garth Jennings
Elenco: Matthew McConaughey, Reese Witherspoon, Seth MacFarlane, Scarlett Johansson, John C. Reilly, Taron Egerton, Tori Kelly, Jennifer Saunders
Gênero: Infantil, Comédia, Musical
Duração: 108 min.
Crítica | Sully: O Herói do Rio Hudson
O cinema de Clint Eastwood não é fácil de ser definido, porém é uma obviedade afirmar que seu olhar atual está concentrado em histórias de grandeza humana – mesmo que ligeiramente romanceadas para a ficção. Seja um cantor disposto a sacrificar sua renda para ajudar um antigo amigo, um soldado enfrentando todos os horrores possíveis e além em uma guerra nublada, em um diretor do FBI e seus conflitos internos de sexualidade ou, agora, com um piloto desconhecido que salva 155 almas em uma manobra totalmente sem precedentes para um desastre aéreo.
Com seus 86 anos de vida de maioria relacionados ao cinema, não é surpresa essa profunda admiração de Eastwood pelos maiores feitos da vida e dos Homens na História. Obviamente, o roteiro de Todd Kormanicki busca adaptar os acontecimentos fatídicos daquele congelante dia de 15 de janeiro de 2OO9.
O Horror de Hollywood
De tempos para cá, tenho notado certas tendências no mercado hollywoodiano no que diz respeito ao storytelling. Muitas vezes, presumimos que a escolha de contar uma história já esteja definida no roteiro – e geralmente é mesmo. Em outros filmes como A Chegada, a decisão é tomada no processo de montagem.
O que pode marcar esse ano para o cinema americano é escolha interessante da não linearidade do texto. Se fossemos comparar em termos de estrutura narrativa, Sully e Deadpool, são filmes-irmãos, pois ambos se valem de diversos flashbacks para contar sua história. No caso de Sully, é algo ainda mais elaborado – e também simples.
Kormanicki e Eastwood já fazem uso direto da narrativa durante os créditos iniciais através de uma voz over, já indicando acontecimentos que logo veremos em tela. Como todo diretor que se preze, Eastwood já começa o longa com o pé na porta: com a sequência do pouso forçado. Porém, nisso, já há uma das brincadeiras da dupla com a estrutura do filme: o avião colide em prédio, explode e todo mundo morre – algo que o espectador já sabe que é inverídico.
Com esse começo eletrizante que se trata da sempre clichê sequência de sonho, o roteirista situa o espectador na narrativa de fato: o acidente já foi e acompanhamos o estresse pós-traumático de Sully em decorrência dos eventos. Esse estabelecimento da psique de Sully é a melhor característica que Kormanicki oferece em seu texto. O protagonista, de fato, é bem desenvolvido.
Dias de Glória, Sonhos de Desgraças
O principal foco do filme é centrado no contraste entre o feito heroico do piloto versus toda a investigação da NTSB, órgão responsável para formalizar o laudo de todo o acidente. Logo, é firmado um lado antagônico real e ameaçador – caso Sully seja considerado culpado, ele perde sua aposentadoria, e o antagonista criado pela própria paranoia do piloto que desenvolve uma certa quantia de apatia e tiques nervosos, além de alucinar em muitas ocasiões.
Tudo isso é traduzido com firmeza pelo talento de Tom Hanks. Ele encontra o tom do personagem humorado, mas de olhares pesarosos e incrédulos diante o milagre do acontecimento. Hanks faz seu Sully parecer perdido e isso é o maior acerto de sua atuação, de não sentirmos firmeza em nesse herói. É uma atuação subversiva que põe em cheque tudo aquilo que imaginário popular constrói para heróis carismáticos.
Esse é o segundo ponto principal do roteiro de Kormanicki: o choque de um homem comum diante da súbita mudança de rotina sofrida pelos diversos assédios vindos da mídia. Do anonimato para o rol das celebridades em questão de horas. Novamente, isso também é sintetizado através de encontros de Sully com estranhos e do seu contato com jornalistas, seja assistindo na televisão ou participando de entrevistas.
O roteirista usa essas sequencias para sintetizar o drama do personagem já que o grosso do desenvolvimento é muito baseado em solilóquios silenciosos, de isolamento e contemplação. Sully é um homem calado, simples e de pouca conversa. Os únicos diálogos que expõe ao público seu trauma são os que ele troca com o co-piloto e sua esposa.
Onde Kormanicki pode errar é na demonização dos investigadores que pendem muito para o lado apático e agressivo com Sully quase que ignorando seu feito. Outros personagens também são descartáveis, não conseguindo emplacar quase ninguém, além do protagonista.
Também há um incômodo no único flashback que acompanha outro período da vida de Sully, se concentrando em suas aulas de voo quando rapaz. É um tanto desconexa, mas nada que prejudique a fluidez da narrativa, já que o grande miolo do filme é concentrado em três enormes flashbacks.
O Homem com Nome
Eastwood, apesar da idade e de ter vivenciado tantos movimentos dentro do cinema hollywoodiano e mundial, é um dos cineastas mais versáteis de todos os tempos. O eclético diretor sempre se renova e encara qualquer desafio tendo dirigido faroestes, dramas diversos, filmes de esporte, de guerra e até mesmo musicais. O homem é incontrolável.
Um dos maiores presentes para qualquer cinéfilo é conferir a grandeza de suas obras que, paradoxalmente, sempre transmitem uma simplicidade tocante. Com Sully, Eastwood acerta novamente, se reciclando e até mesmo brincando com a linguagem cinematográfica graças às possibilidades geradas pelos flashbacks ordenados no roteiro.
Assim como em Sniper Americano, a pegada da direção segue calcada no realismo e na linguagem clássica, seja na construção de planos sequência ou na encenação. O plano que apresenta Sully é uma síntese brilhante para o que veremos se desenrolar na obra. Vemos um homem curvado envolto por um grosso vapor emanado da água quente do chuveiro.
É a representação perfeita de certo onirismo, já que é o único momento que o cinematografista Tom Stern utiliza iluminação barroca, amarelada de profundo jogo entre claro e escuro. É uma representação para um homem que deveria estar morto, mas que não está e agora tem que lidar com toda a pressão e trauma que curvam sua figura logo ali. Eis o poder do cinema bem pensado. Eis o poder do cinema de Eastwood.
Esse belo jogo de iluminação logo se dissolve na realidade, gélida e dura. Aliás, muito do clima de Sully é natalino, de certa forma – Natal em janeiro. Stern e Eastwood buscam tons dessaturados e monocromáticos, sempre flertando com tons cinzentos da cidade de Nova Iorque. A monotonia da fotografia chapada, pouco contrastada, é utilizada não somente para calcar o realismo tão desejado por Eastwood, mas para reforçar o contraste entre a euforia midíatica que ronda o protagonista com seu próprio estado de espirito amargurado. Novamente, é a síntese na imagem para construir Sully
Porém, o mais impressionante que Eastwood nos oferece aqui é a sequência do pouso-forçado. No caso, das sequências. O diretor reitera o acidente três vezes ao longo do filme. E em todas há um completo show de encenação e domínio sobre a linguagem.
Eastwood não aborda o evento sempre da mesma maneira, mas variando planos e mostrando mais detalhes cada vez que apresenta o acidente para o público. Há essa preocupação inteira em estabelecer o pré, durante e pós-acidente tomando diversos pontos de vista: piloto, tripulantes, passageiros, pedestres vendo o avião cair, do resgate e da mídia.
O mais impressionante, contudo, é a eficiência em deixar o espectador na beira da poltrona durante todas as cenas de pouso, como se esperássemos resultados diferentes de um acontecimento real. Impossível distanciar seu trabalho com o que Corra, Lola, Corra proporcionou para a linguagem cinematográfica e narrativa.
A elegância da direção se alia ao excelente desempenho dos departamentos de edição e mixagem de som que conseguem transmitir todo o inferno acústico que é um avião em plena queda – simulam explosões, fuselagem e avisos eletrônicos dos painéis exaustivamente e com precisão cirúrgica – deve render uma indicação ao Oscar nessas categorias.
Até mesmo na conclusão, durante o julgamento final de Sully, Eastwood escolhe fugir do convencional expositivo através diálogos cansativos. Mesmo que de forma didática e de mão pesada, as soluções visuais para conferirem o veredito da sessão são bem pensadas, também pelo contraste.
The Hollywood Finest
Sully é muito mais um filme-exercício de linguagem do que uma experiência comercial propriamente dita por conta das reiterações das sequências do pouso forçado que, com certeza, provocarão reações bem divergentes nos espectadores – é ame ou odeie, simplesmente. Todavia, não é uma obra para ser descartada principalmente por ser ter sigo gravada inteiramente no formato IMAX e, acredite, é um grande diferencial para esse longa – Eastwood pensa em enquadramentos majestosos para sintetizar Sully: seja em uma alucinação em um reflexo ou durante uma corrida noturna na Times Square.
Para quem admira o trabalho do glorioso Eastwood, não há recomendação melhor. E também vale muito a pena para aqueles que gostam de histórias de superação e estudo de personagem.
É um grande filme: na coragem e na execução para representar o feito heroico do homem comum sob o olhar de um homem extraordinário.
Sully: O Herói do Rio Hudson (Sully, 2016 - EUA)
Direção: Clint Eastwood
Roteiro: Todd Komarnicki
Elenco: Tom Hanks, Aaron Eckhart, Laura Linney, Anna Gunn, Mike O’Malley
Gênero: Biográfico, Drama
Duração: 96 min