Se podemos considerar uma pessoa fã número 1 da franquia Assassin’s Creed, ela seria Michael Fassbender. O tempo passa voando, caro leitor, e nossa memória tende a ser curta. A novela da produção do filme que adaptaria as histórias mirabolantes da série vem desde 2012. Mesmo que Fassbender nunca tivesse jogado algum game na época, o ator/produtor se comprometeu tanto em trazer esse filme para a realidade que é impossível desconsiderar os esforços hercúleos.
Para termos ideia do quão complicado o projeto era, somente em 2015 que a adaptação ganhou um diretor. Justin Kurzel só entrou na produção também por causa da amizade com Michael Fassbender, após as gravações de seu filme anterior: Macbeth.
Entretanto, mesmo com tantos problemas e incertezas, finalmente Assassin’s Creed veio à luz do Cinema. Porém, infelizmente, o longa recai na maior certeza cinematográfica de todas: filmes de games simplesmente não funcionam.
Acompanhamos a história de Callum Lynch, um homem condenado à morte por conta de um homicídio. Após receber as doses da injeção letal, Lynch desperta acreditando estar morto. Porém, o homem ressuscitado descobre algo pior: estar aprisionado em um complexo da Abstergo, um laboratório de biomedicina e tecnologia que pretende usar seu DNA para reviver as memórias de seu ancestral que viveu durante o ano de 1494, em plena Inquisição Espanhola.
Através do Animus, Sofia, chefe do setor na Abstergo, tentará fazer Lynch encontrar o fragmento de memória ideal que pode revelar a localização de um dos artefatos místicos mais importantes da história da humanidade. O propósito para a busca de tal instrumento é somente um: dominar o mundo.
Potencial oculto
Três roteiristas tentam trazer a história de Assassin’s Creed do modo mais cinematográfico possível. Pena que a maioria dos esforços ficaram somente na tentativa. O roteiro comete erros muito similares aos já vistos em diversos outros filmes de videogames. Dentro de sua história razoável, quem mais sofrem são os personagens. E, acredite, muito pouco se salva nos trabalhos destinados ao desenvolvimento e motivação de praticamente todos eles.
A proposta era promissora: trazer uma história original que se comporte dentro das características únicas dos games. O começo do longa já denota isso com uma sequência em flashback que flerta com os primeiros minutos do jogo original de 2007 e, depois, ao mostrar um segmento traumático da infância de Cal, já ligando a história do protagonista de modo mais próximo com o Credo dos Assassinos e a Ordem dos Templários – os dois lados antagônicos do universo Assassin’s.
Enquanto tudo isto é condensado por uma elipse de trinta anos, é fácil para o espectador não familiarizado ficar completamente perdido tentando entender o propósito dos dois lados, já que o roteiro não faz muita questão de explorar as duas sociedades secretas na tentativa fracassada de definir tons de cinza para fugir do clássico jogo dos extremos entre bem e mal.
Com isso, já é complicado definir a torcida por um dos dois lados – nos games a distinção é mais clara e eficiente, preservando essa linha cinzenta entre as forças antagônicas. Tudo se torna mais burocrático graças a personalidade de Cal Lynch que, por sua vez, odeia o Credo mesmo conhecendo absolutamente nada sobre a sociedade.
A maioria do desenvolvimento do protagonista vem de seu contato com Sofia, cientista-chefe do Animus e filha a de um dos principais templários, Rikkin, CEO da Abstergo. Através de uma exposição meia boca, o espectador tem contato com o que se trata elementos chave da franquia como o Animus, a ideologia anarquista do Credo e do totalitarismo dos Templários e da Maçã do Éden, o artefato que controla o livre arbítrio.
Nesses “respiros” da estrutura do roteiro, temos longos diálogos a fim de nos afeiçoarmos com Sofia e Lynch. O problema é que essas conversas recebem um tratamento de escrita raquítico os transformando em verdadeiros manifestos sobre a chatice.
O discurso da motivação antagonista também falha em convencer o espectador: o fim da violência. Claro que é um artifício para esconder o verdadeiro propósito que é a dominação mundial. Porém, ver Marion Cotillard e Jeremy Irons conversando sobre a aspiração maquiavélica é completamente anacrônico e brega. O plano dos templários seria muito mais acomodado à realidade dos filmes 007 dos anos 1990.
Os fiapos de desenvolvimento tentam criar laços entre os dois personagens, porém tudo é jogado no lixo pelo tenebroso terceiro ato. Lynch passa por uma transformação muito súbita que dificilmente traria a superação de seu trauma pessoal – ainda mais porque os outros assassinos presentes na Abstergo são personagens pálidos e irritantes, além de serem péssimos em persuasão.
E, como de lei, temos aquela crítica ao capitalismo “malvadão”. São clichés muito defasados que insistem em aparecer a todo momento. Desde a insurgência dos Assassinos, ralés da sociedade guiados pela fé, contra os Templários poderosos e esnobes, guiados pela inteligência e capital.
Como puderam perceber, apenas discorri até agora sobre o tempo “presente” da diegese do filme, não comentando muito sobre as memórias de Aguilar, o assassino espanhol. Bom, é inevitável graças às escolhas bizarras de narrativa que os roteiristas tomaram neste caso. Para quem costuma jogar Assassin’s Creed, sabe que a história do presente de Desmond ou do protagonista randômico que está presente desde Black Flag é a pior parte do jogo. O que vale mesmo, é a história do assassino vivendo um contexto histórico incrível como o Renascimento ou a Revolução Industrial.
Pois bem, o principal pedigree da franquia aparece somente em três sequências nas quais Aguilar entra mudo e saiu calado. O personagem não possui um pingo de personalidade, assim como seus companheiros assassinos que o acompanham nas sequências que tem única função de injetar ritmo e ação em um filme sonolento. O melhor elemento dos jogos é um desperdício inacreditável, além do filme não encaixar perfeitamente na linha do tempo do game.
Extremamente sóbrio e competente
Geralmente os filmes de jogos são uma calamidade em todos os sentidos cinematográficos. Embora o roteiro de Assassin’s Creed seja boçal e sacrifique muita coisa boa dos jogos, o projeto é abençoado pela técnica gloriosa de Justin Kurzel, o diretor que Fassbender trouxe consigo para gravar o filme.
Kurzel traz um peso visual e de encenação a la Macbeth. E, infelizmente, toda a competência na criação dessa diegese pútrida e antiga vai para o ralo por conta da violência censurada. Assassin’s Creed não possui praticamente uma gota de sangue, mesmo que os personagens sejam degolados a olhos vistos. Logo, o contraste da atmosfera é tão absurdo que a torna ridícula dando a impressão errônea da roupagem do filme ser pretensiosa.
Em maioria, o diretor mais acerta do que erra, apesar de a experiência geral do filme ser bastante tediosa. Há construções de cenas memoráveis como a da execução de Callum Lynch, da primeira regressão ao Animus e a conclusão do salto de fé. A cada boa cena, percebemos o quanto Kurzel se esforçou em trazer uma decupagem diversificada e satisfatória, tornando o filme muito rico visualmente.
Os únicos momentos que sua decupagem não funciona são os diálogos destinados ao par Sofia e Lynch. É estranho comentar, mas há um espectro da chatice rondando essas cenas. O texto consegue ser tão ruim nesses diálogos que conseguem te tirar do filme, prejudicando qualquer tentativa de Kurzel em fazer as cenas funcionarem.
Kurzel também parece não criar muito no poder simbológico que história carrega, apenas apostando na arquitetura semelhante a uma arca do prédio da Abstergo. Uma boa ideia do diretor em conjunto do design de produção é a atualização do funcionamento do Animus. Aqui, em forma de garra, torna a experiência da regressão muito mais ativa do que a do jogo, permitindo que o diretor crie bons cortes entre as acrobacias de Aguilar em sincronia com as de Lynch no laboratório. É óbvio que se for levar a sério demais o instrumento, o espectador encontrará perguntas que nunca serão respondidas.
Kurzel e o cinematografista Adam Arkapaw capricham mesmo em termos de enquadramento e iluminação. Assassin’s Creed é um dos poucos blockbusters contemporâneos que possuem um visual arrojado e bem elaborado, mesclando tons mornos e frios a todos os momentos com demarcações de sombras diversas mesmo que os períodos da regressão sejam muito mais carregados por tons pastéis quentes e com granulação maior.
No que Kurzel é equivocado, facilmente reconhecemos. O filme é incompetente para lançar as referências certas aos games, de toques que fariam a felicidade dos fãs. Há apenas o óbvio ali: parkour (muito bem coreografado), hidden blades, saltos de fé e um excesso abundante de elipses de tempo focando na águia que sobrevoa diversas cenas.
Aliás, diversas tomadas aéreas ótimas são sacrificadas por tanta fumaça digital que há nesse filme. É absurdo o nível de CGI ruim que oculta os efeitos práticos bem feitos. Nisso, Kurzel não consegue valorizar o design de produção em diversos sentidos: seja nos cenários bonitos contemporâneos e históricos ou no estupendo trabalho de figurinos e outros adereços de cena.
As três sequências de ação são irregulares em qualidade. Enquanto a primeira se destaca pela boa montagem e diversidade de enquadramentos, as outras duas regressões são fracas sendo a segunda a pior delas. Nessa longa perseguição, a segunda unidade e Kurzel se atrapalham em gravar em espaços apertados, causando um vômito visual de tão grotesca que a passagem se torna, além de seu final anticlimático injustificado.
Suicídio de Fé?
A estreia de Assassin’s Creed nos cinemas poderia ser muito superior ao que foi apresentado aqui. Há sim bons conflitos e pretensões esboçadas pelo roteiro que sempre falha em desenvolvê-las ou resolvê-las de modo mais memorável. O rol de personagens é um desperdício tremendo, pois é perceptível o quanto Fassbender, Cotillard e Irons estavam se dedicando em tornar as figuras desses indivíduos em algo tanto mais complexo.
A querela paterna que Lynch e Sofia partilham seria algo a se valorizar, além de uma abordagem mais incisiva sobre as duas sociedades que movem a narrativa do filme. A busca pelo artefato facilmente renderia uma aventura mais voltada ao estilo Indiana Jones do que um thriller de loucura e suspense épico que Kurzel investiu na obra.
Assassin’s Creed obviamente não é um filme todo ruim, como apontei em passagens no texto. Inclusive, é um dos melhores de games da História, mas isso também não quer dizer grandes coisas para um cenário de tamanha calamidade. Entre os elementos que mais se destacam além do visual e da direção arrojada, certamente é a trilha musical de Jed Kurzel que confere todo o ar épico e tenso para as perseguições no filme. O compositor captou e acrescentou em precisão do que se trata a música dos jogos.
São erros demais para expô-los todos no texto, escolhas equivocadas demais. Acredite, caro leitor, torcia para que o filme de uma das franquias de jogos que mais gosto fosse realmente bom, mas não é o caso. Esse projeto convergiu tanto talento para desembocar apenas em decepção.
Se há alguma coisa que berra entre o imenso tédio que o filme proporciona, é somente a palavra, escancarada a todo canto: desperdício. E esse desperdício pode ter sepultado de vez as chances de revermos Assassin’s nas telas dos cinemas em um futuro próximo.
Assassin’s Creed (Assassin’s Creed, 2016, EUA)
Direção: Justin Kurzel
Roteiro: Michael Lesslie, Adam Cooper e Bill Collage
Elenco: Michael Fassbender, Marion Cotillard, Jeremy Irons, Brendan Gleeson, Michael K. Williams, Charlotte Rampling, Ariane Labed
Gênero: Ação
Duração: 115 min