Crítica | Creepy
Akira Kurosawa foi um dos maiores diretores da história da Sétima Arte. Os seus melhores filmes tinham estruturas narrativas ousadas, um poderoso conteúdo intelectual e emocional, além de serem muito ricos técnica e visualmente. Obras primas como Rashomon, Os Sete Samurais, Ran e tantas outras são verdadeiras aulas de Cinema. Carregando o peso de ter o mesmo sobrenome, Kiyoshi Kurosawa não tem parentesco algum com o mestre japonês, mas poderia muito bem ser seu filho ou neto, pois, depois de ver a destreza cinematográfica do diretor neste maravilhoso Creepy, fica difícil de acreditar que não haja nenhuma relação de sangue entre os dois.
No filme, depois de uma tentativa mal sucedida de impedir um assassinato, o criminalista Takakura (Hidetoshi Nishijima) abandona o emprego de policial e se muda com a esposa, Yasuko (Yûko Takeuchi), para uma vizinhança tranquila. No entanto, após conhecer Nishino (Teruyuki Kagawa), um dos vizinhos, Takakura se convence de que há algo estranho sobre o sujeito. As suas suspeitas aumentam ainda mais quando o misterioso homem começa a desenvolver um estranho vínculo com a sua esposa. Além disso, um dos seus ex-parceiros na polícia pede que ele o auxilie na reabertura de uma investigação feita tempos atrás sobre o sequestro de uma família.
Adaptado por Chihiro Ikeda e pelo próprio diretor a partir de um livro homônimo do autor Yutaka Maekawa, o roteiro de Creepy divide as atenções na primeira metade do filme entre a investigação conduzida por Takakura e as interações iniciais que o casal e, mais especificamente, Yasuko, tem com o estranho vizinho. Ao adotar essa estrutura, fica óbvio para o espectador que há uma relação direta entre as duas histórias, mas essa previsibilidade não é ignorada pelos roteiristas, pelo contrário, ela é abraçada por eles. De certa forma, é um sacrifício que aceitam fazer em prol do desenvolvimento dos personagens. E, se por um lado, o público consegue enxergar facilmente alguns dos caminhos que serão trilhados pela trama, por outro, ganha muito mais com o rico trabalho feito em cima de Takakura e Nishino.
O primeiro tem um arco dramático circular. No início do filme, quando tenta em vão conseguir o depoimento de um homicida, ele é parcialmente “responsável” pela morte de uma vítima inocente. Acreditando na existência de alguma consciência moral no psicopata que acaba de assassinar uma mulher na frente de várias pessoas, ele é traído por sua própria intuição. Após abandonar o emprego e tentar reiniciar a vida com a esposa noutro lugar, ele enxerga uma possibilidade de redenção na nova investigação que conduz. Já no final do filme, quando tem de enfrentar o sequestrador da família, ele tem na sua frente a possibilidade de vencer justamente por causa da filosofia moral do criminoso, num desenrolar lógico e simbolicamente muito rico.
Aliás, essa filosofia moral do vilão é um dos grandes atrativos do filme. (Pule este parágrafo caso ainda não tenha visto). Injetando nas vítimas um líquido que faz com elas realizem tudo o que pede, Nishino acredita que não é um criminoso. Quando confrontado sobre as suas ações, ele insiste que todos aqueles que estão sob o seu jugo agem de livre e espontânea vontade, fazendo aquilo que querem e não aquilo que exige que eles façam. E não deixa de ser genial que, ao fazer o público duvidar da fidelidade de Yasuko, os roteiristas coloquem o espectador, mesmo que por breves minutos, na cabeça de Nishino, questionando se Yasuko está realmente traindo o marido com o vizinho ou se é outra coisa que está acontecendo, o que faz um brilhante eco à visão que Nishino tem das ações realizadas pelas pessoas que sequestra (este momento é ressaltado por um close magistral de Kurosawa que, ao mesmo tempo que revela o verdadeiro caráter de Nishino, esconde a agulha que ele injeta em Yasuko).
Dirigindo com a mesma excelência vista na coautoria do roteiro, Kyioshi Kurosawa investe, no início, num clima de suspense que contrasta maravilhosamente bem com o tom mais cômico das interações entre o casal principal e Nishino. Ao passo em que tudo parece bem, o público não consegue deixar de sentir um incômodo com aquilo que está sendo mostrado. Além de ser fascinante e envolver o espectador desde o início, a existência simultânea desses dois tons opostos prepara e não prepara o espectador para a revelação final, pois ao mesmo tempo que a atmosfera mais inquietante o deixa sobreavisado de que algo eventualmente acontecerá, o clima mais ameno proveniente dos momentos mais leves não o predispõe para a explosão de violência física e mental do terceiro ato.
O diretor se mostra igualmente genial na construção de simbolismos. Desde a rima visual envolvendo duas janelas no começo e final do filme (simbolizando o já mencionado arco dramático circular do protagonista), até a constância com a qual o casal é exibido por detrás de grades e barras que lembram uma prisão (um símbolo do aprisionamento que os espera), passando pelo trabalho magistral com o vento, todos os elementos em cena são trabalhados por Kurosawa e sua equipe de forma a fazer com que a jornada dos personagens sejam ilustradas e sonorizadas por todo o ambiente que os cerca.
Aliás, é preciso fazer um destaque especial para a simbolização do vento. Além de ser essencial na criação do suspense, ele é um elemento constante no filme. (Pule novamente as próximas linhas deste parágrafo, eles contêm spoilers). Simbolizando o perigo que Nishino representa para a vida das suas vítimas, percebam como o barulho que o vento produz nas folhas é ressaltado pela mixagem de som todas as vezes em que Nishino interage com Takakura e Yasuko. Notem também como, depois da discussão que o casal tem sobre com quem Yasuko estava falando no celular (era com Nishino), eles conversam na cozinha enquanto a cortina balança suavemente por causa de uma brisa, num claro símbolo da influência negativa que o vizinho tem na vida dos dois. Além disso, vejam como o ventilador que Yakuso carrega para todos os lados e coloca na frente do rosto é uma referência riquíssima às ações que ela realiza por vontade própria em razão do líquido que Nishino injeta nela. E, logicamente, Kurosawa, além de mostrar exaustores e cata-ventos ao longo de todo o filme, não só faz Nishino tirar o ar dos plásticos onde estão contidos os corpos mortos (a vida que se esvai) como usa um lindo plano plongée para enquadrar a morte de Nishino enquanto ao seu redor inúmeras folhas são levadas por um forte vento. Aliás, logo após o falecimento de Nishino, ouve-se, pela primeira vez, água durante a conversa entre Takakura e Yasuko, representando o perigo que foi embora e a esperança de que eles consigam resolver os seus problemas.
Outro destaque que merece ser feito é o ótimo trabalho do diretor de fotografia. Na cena em que uma jovem se lembra do que aconteceu com a sua família, a luz do ambiente apaga enquanto ela caminha pelo recinto, o que faz uma clara referência aos corredores negros da memória que ela tem de percorrer para recordar eventos do passado. Similarmente, ao passo que a apresentação da casa do casal principal é feita com muita luz para representar a bondade de Takakura e Yasuko, logo após conhecerem Nishino, é perceptível que os cômodos estão mais escuros, simbolizando a negatividade do primeiro encontro com o vizinho.
Com atuações soberbas de Hidetoshi Nishijima e Teruyuki Kagawa, Creepy é um dos melhores filmes de Kiyoshi Kurosawa. Profundamente rica e complexa, a obra é um suspense denso, inquietante e perturbador. Kiyoshi pode não ser filho ou neto de Kurosawa, mas que é um dos conterrâneos mais propensos a continuar erguendo a bandeira do mestre japonês, Creepy está aí para provar.
Creepy (Kurîpî: Itsuwari No Rinjin, Japão – 2016)
Direção: Kiyoshi Kurosawa
Roteiro: Kiyoshi Kurosawa Chihiro Ikeda
Elenco: Hidetoshi Nishijima, Teruyuki Kegawa, Yuko Takeuchi, Masahiro Higashide
Gênero: Suspense
Duração: 130 min
Crítica | A Visita
Na nova Hollywood dos anos 1990, lar de Quentin Tarantino e Tony Scott, outra pessoa ganhava destaque absurdo com um nome de exotismo encantador: M. Night Shyamalan. Emplacou de vez logo dois clássicos: O Sexto Sentido e Corpo Fechado. Depois, decaiu um pouco a qualidade, mas ainda trazia bons filmes como Sinais e A Vila. Pois desde então, Shyamalan morreu para mim. Uma má fase que vinha desde A Dama na Água para chegar no ápice da porcaria em 2013 comDepois da Terra. Na época, eu ficava intrigado. Como um diretor que fez apenas dois ótimos sucessos continuou tendo chances em Hollywood com diversos filmes ruins e fracassos de bilheteria? Não faço ideia. Talvez Shyamalan tenha parte com forças sobrenaturais, porém é inegável que, finalmente, ele entregou algo satisfatório. Aleluia!
Esta incrível pequena surpresa se chama A Visita. Novamente, Shyamalan trabalha com crianças e as envia diretamente para agradável casa da vovó e do vovô. Entretanto, os irmãos Becca e Tyler nem imaginam as bizarrices que o casal de simpáticos velhinhos faz depois das 21:30. E a melhor saída para os dois é se trancafiar no quarto e rezar para a semana da visita passar o mais rápido possível.
Este é um dos filmes mais autoconscientes de Shyamalan dos últimos tempos. Isso é ótimo. Ele finalmente se tocou que seu nome virou sinônimo de obras esdrúxulas e não mais de arte renomada. Aqui, ele segura bem as pontas ao finalmente abraçar a simplicidade. Desde o formato escolhido para a filmagem até a própria narrativa.
Aqui se trata de um mockumentary. Ou seja, é um falso documentário. O filme justifica muitíssimo bem a escolha do formato que muitos podem confundir com found footage. Não é o caso. Becca é uma aspirante a cineasta e tem vontade de gravar a estadia na casa dos avós em uma tentativa de reconciliar os senhores com a sua mãe. É uma busca pela conciliação. O que é algo belo neste filme: as relações familiares.
Rapidamente nos sentimos ligados aos dois irmãos simpáticos que trocam provocações e traquinagens de tempos em tempos. De fato, muitas vezes A Visita não parece ser um filme de terror e sim de comédia tamanha a qualidade das piadinhas entre os irmãos. Porém, apesar da comédia pender para o ridículo às vezes, não pense que é porque Shyamalan voltou a ficar descerebrado. Isso é proposital para gerar o contraste forte pelo sempre presente twist, a reviravolta final e derradeira, característica autoral do trabalho do diretor. Como na maioria das vezes, ela é forte, seca, chocante e cruel. Eu fiquei verdadeiramente surpreso como há tempos não ficava – parecia aquelas senhoras fofoqueiras que assistem às novelas e se surpreendem com as reviravoltas mais dúbias. Aliás, até mesmo o twist do longa é simples e pode ser previsível para mentes mais cínicas que a minha.
Além da simplicidade, o longa nos cativa pela boa dinâmica de enredo. As coisas acontecem rápido. Em poucos minutos vemos a Vovó fazer umas loucuras assustadoras pela casa. Ainda que muitos desses momentos de tensão da primeira hora do filme sejam razoáveis e clichês, Shyamalan compensa com uma encenação satisfatória, timing certeiro e ótima ambientação sonora. É uma pena que nas primeiras três noites as coisas sejam muito parecidas e que realmente não apresentem ameaça alguma para os protagonistas.
Aliás, a câmera aqui é um personagem. A encenação se concentra no jogo de duas câmeras EOS C300 da Canon – já se trata de câmeras profissionais de cinema, as que aparecem em vídeo, menos robustas, são trucagem. Os irmãos empunham as câmeras e filmam tudo que vem pela cabeça, na teoria, pelo menos. É evidente que de fato os atores mirins não filmam porcaria nenhuma e que as cenas são dirigidas pelo Shyamalan acompanhadas da refinada fotografia de Maryse Alberti que trata a luz com muita delicadeza refletindo um ambiente ao mesmo tempo acolhedor, bucólico, nostálgico e assustador.
Como crítico, é complicado analisar a fotografia claramente trabalhada profissionalmente para dar a impressão que pertença a um mockumentary caseiro feito por uma garotinha de treze anos (na diegese). Dessa vez, tomo como licença poética, pois a luz tem aparência naturalista (apesar de não ser) e se comporta amadoramente quando o texto exige. Então, para mim, se trata de um ótimo trabalho de cinematografia. O único porém que eu acho completamente absurdo são as constantes passagens de foco que a câmera faz quando supostamente não há ninguém as manuseando. É algo que quebra a diegese e incomoda. Entretanto, as passagens de foco realmente são necessárias para guiar o olhar do espectador e auxiliar no visual da cena. Enfim, é algo preciso, mas que incomoda por não ser justificado de maneira competente.
Shyamalan falha ou acerta apenas com o Vovô e a Vovó, seja intencional ou não, o filme sai enfraquecido ou se torna brilhante – depende do ponto de vista que você escolher, afinal nós nunca conhecemos de fato os personagens. O diretor elabora sim alguma humanidade nos dois esquisitões muito bem interpretados por Deanna Dunagan e Peter McRobbie. Durante o filme, nós vemos pouca interação significativa entre os jovens e os avós, porém, se pensarmos bem, isso é justificado no final mesmo que deixe a desejar um pouco. O que talvez decepcione é a falta da presença da atmosfera ameaçadora para os dois jovens durante boa parte do filme. Apenas durante os trinta minutos finais que a coisa pega fogo e ali Shyamalan mostra porque era considerado o novo Hitchcock nos anos 1990. Claro, lhe falta a sutileza de outrora, mas o trabalho de tensão e do jogo de cena que explora as bordas dos enquadramentos em vez de simplesmente jogar a ação na cara do espectador, é algo delicioso de se assistir.
Até mesmo há apresentações de algumas reflexões sobre a terceira idade, de modo bem-humorado, claro. Sei que o filme não se propunha a isso, mas em determinada cena, acompanhamos o ponto de vista dos avós. Ali, teria sido uma ótima oportunidade para incrementar mais a relação do avô com a avó deixando esse conhecimento restrito apenas para os espectadores, por algum tempo. Na teoria do cinema e do suspense, geralmente quando nós sabemos de algo que os protagonistas ainda não sabem, a tensão se eleva e passamos a ficar mais aflitos.
O diretor também faz auto referencias certeiras. Aqui, a encenação de algumas passagens lembra momentos marcantes de O Sexto Sentido e Sinais. Também há um evidente cuidado para construir a atmosfera seja com alguns establishing shots ou pelo próprio trabalho do design de produção com a casa dos avós. Aliás, importante citar o ótimo rendimento que Shyamalan teve com seus atores mirins Olivia DeJonge e Ed Oxenbould. Ele nasceu para trabalhar com crianças.
A Visita marca, enfim, o retorno de Shyamalan à boa forma. Não é um longa excepcional de suspense ou algo significativamente importante para o gênero. Na verdade ele não apresenta nada de novo, mas sim uma exibição de como Shyamalan aborda o Suspense com um formato relativamente novo. Se trata apenas da forma mais pura de cinema – a do entretenimento despretensioso, simples e divertido. Assistir a esse filme é uma tarefa gostosa e, acredite, eu estava muito pessimista e carrancudo antes da sessão. Além disso, é ótimo ver que Shyamalan está tomando jeito – espero que continue assim por um bom tempo. Se você gosta de filmes sobre gente esquisita com um bom suspense, alguns sustos baratos (jump scares) e boas piadas, está aí uma ótima pedida para o fim de semana.
No fim das contas, A Visita rende uma boa visita ao cinema.
A Visita (The Visit — EUA, 2015)
Direção: M. Night Shyamalan
Roteiro: M. Night Shyamalan
Elenco: Olivia DeJonge, Ed Oxenbould, Deanna Dunagan, Peter McRobbie, Kathryn Hahn, Samuel Stricklen, Jorge Cordova.
Duração: 93 minutos.
Crítica | Zodíaco - O Pesadelo Psicopata
A tagline que seguiu a campanha publicitária de Zodíaco trazia a seguinte frase: "há mais de uma forma de perder sua vida a um assassino". É uma tag genial e que, não só provoca calafrios na espinha pelas suposições que instiga, mas também perfeitamente sintetiza o núcleo do filme de David Fincher, que completou 10 anos de seu lançamento na semana passada. Aproveitando essa data muito especial, nada mais justo do que relembrar essa poderosa obra-prima, que facilmente merece um espaço como um dos melhores filmes do gênero suspense da última década.
A trama se inspira nos eventos reais que assombraram São Francisco, Vallejo e outros condados da Califórnia na década de 1970. A redação do San Francisco Chronicle recebe uma carta misteriosa assinada pela figura do Zodíaco, que se diz responsável por dois assassinatos diferentes na região, e que iniciaria agora um ciclo de mortes em uma espécie de provocação à mídia. Enquanto toda a cidade desespera-se para decifrar a identidade do assassino, o cartunista Robert Graysmith (Jake Gyllenhaal) inicia uma investigação particular que o coloca no melhor e mais detalhado caminho para encontrar a verdade, em uma jornada que lhe custará anos de dedicação e renderá uma psicótica obsessão, resultando no revelador livro que serve de inspiração para o roteiro de James Vanderbilt.
É assustador pensar em Zodíaco. Não só pelo fato de termos uma história amendrontadora contada com absoluta maestria, mas em especial pelo fato de ser um relato verídico de eventos nunca concluídos de forma concreta; o Zodíaco nunca foi capturado, e a polícia nem ao menos conseguiu identificar o suspeito definitivo por trás de suas cartas, tendo apenas alguns palpites - uns mais fortes do que outros. Por tais motivos, assistir ao filme provoca um grande desconforto, por sabermos que a história que acompanhamos não tem um final, que o próprio assassino do Zodíaco poderia estar escondido em algum lugar; em determinado momento do filme, ele até menciona que gostaria de um bom ator para interpretá-lo em uma suposta adaptação cinematográfica dos eventos (na época, o primeiro Dirty Harry de Clint Eastwood). Dessa forma, já seria um filme sinistro por si só apenas pela natureza de seus eventos. É ainda melhor quando temos um mestre assumindo o navio.
Assassinato
Podendo ser descrito como um cruzamento entre O Silêncio dos Inocentes e Todos os Homens do Presidente, Zodíaco beneficia-se dessa mistura incomum graças ao controle absoluto de David Fincher. Tão obcecado pela perfeição quanto seu protagonista, o diretor traz uma fantástica reconstrução de época e uma fidelidade às características mais minuciosas do caso, desde o retrato falado do "uniforme" do assassino até os diversos eventos midiáticos que se desenrolaram durante a época, como o infame programa de TV de Jim Dunbar. É um trabalho primoroso de toda a equipe do design de produção e figurino, que mantém uma estética realista e ao mesmo tempo expressionista para todos os elementos visuais; a bagunça "organizada" da redação do Chronicle reflete o desespero e os esforços dos jornalistas, assim como o porão de um projecionista transforma-se em um verdadeiro calabouço graças à nossa percepção e a construção do clima do ambiente.
Especializado no suspense graças ao aterrador Se7en: Os Sete Crimes Capitais e até obras menores - mas eficientes - como O Quarto do Pânico e Vidas em Jogo, Fincher usa toda sua habilidade para criar alguns dos momentos mais impactantes da sua carreira. A cena que abre o filme, com o Zodíaco atacando um casal em um carro, é excepcional em sua habilidade de lentamente construir a tensão: acompanhamos o diálogo do casal, à medida em que a presença de um estranho os seguindo vai se tornando mais forte e sua presença passa a ser notada pelos personagens; e o trabalho de fotografia do falecido Harris Savides é primoroso ao manter o ambiente sombrio o bastante para que não vejamos o rosto do assassino, mas bem iluminado pelos faróis dos veículos e a lanterna do antagonista.
Tal habilidade em arrepiar o espectador permanece nas seguintes cenas que reconstroem descrições e relatos dos ataques do Zodíaco. A primeira delas surpreende pelo assombroso contraste: um casal apreciando um belo dia no lago, com uma paleta de cores viva e permeada por elementos da natureza como flores, grama e um céu azul... Até vermos o Zodíaco trajando uma roupa e máscara exageradamente pretas, passando a impressão visual de termos um elemento descolado do cenário ali, algo que exacerba o cruel ato de violência que se segue; e a ausência de música, substituída pelos distantes cantos de passarinho e sons da natureza, só contribui para o tremendo desconforto da sequência inteira. É uma perfeita representação do Mal invadindo um ambiente sereno.
É algo que se mantém até o restante do filme, mas em especial durante sequências que mantém esse desconforto. Temos o ataque do assassino a uma mulher dirigindo em uma rodovia (o silêncio e o fato de nunca vermos o rosto do assassino são fatores determinantes) e o assassinato de um taxista, retratado de forma mais estilística graças a um elaborado plano sequência que acompanha o percurso do veículo em um plano plongée sensacional - e o grande choque é que não sabemos que o assassino está ali até o momento em que dispara a arma contra o motorista. E até mesmo cenas sem a presença de violência tornam-se sinistras graças a essa condução, principalmente a antológica entrevista dos policias com Arthur Leigh Allen (John Carroll Lynch), o mais forte suspeito de ser o assassino, que torna-se praticamente um exercício de investigação; já que Fincher enquadra os rostos em planos centrais que obrigam o espectador a observar cada detalhe de sua expressão fria durante as respostas.
Obsessão
Então, temos a porção do filme que se identifica mais com Todos os Homens do Presidente (ou melhor, uma versão sinistra da obra-prima de Alan J. Pakula), marcada pelo desaparecimento do assassino e a tomada de Graysmith em sua própria investigação particular. É aqui que o texto de James Vanderbilt revela sua eficiência ao exibir e relatar os fatos do caso real com clareza e eficiência, de forma que o espectador sinta-se ao lado do protagonista enquanto este vai fazendo suas descobertas; todo o diálogo e exposição dos eventos é acessível, e nunca perde seu caráter cinematográfico, fruto também da primorosa montagem de Angus Wall, que organiza a cadeia narrativa e oferece um fluxo palpável para a passagem do tempo - considerando-se que os eventos do filme se alastram por mais de duas décadas.
Porém, Zodíaco também deve muito fantástico trabalho de seu elenco.
Jake Gyllenhaal apresenta uma composição perfeita para Robert Graysmith, que é descrito como "um escoteiro esquisitão" por seus colegas, algo que já é bem transposto nos minutos iniciais quando o vemos caminhando pelos corredores da redação com os ombros encolhidos e timidamente comendo uma rosquinha. À medida em que cresce seu interesse pelo caso do Zodíaco, é como se Graysmith finalmente saísse da concha, e o discurso de Gyllenhaall torna-se mais acelerado e empolgado, assim como exibe sinais de uma obsessão quase psicótica; não é por um desejo de servir à justiça, mas sim porque Graysmith simplesmente precisa saber o segredo que o mantém distante de sua família e consome praticamente todas as horas de seu dia.
Ainda que Gyllenhaal seja o protagonista, ele raramente está sozinho em cena, contando com a presença de um elenco coadjuvante de peso. A começar por Robert Downey Jr, em um dos grandes papéis que marcaram sua "renascença" nos cinemas (um pouco antes do lançamento do primeiro Homem de Ferro) que diverte com a sagacidade e ironia do jornalista Paul Avery; a dicção com que diz "Eu quero uma arma" em determinado momento é um misto perfeito de clareza, pânico, medo e naturalidade, algo que Downey Jr viria a realizar muito bem em seus próximos papéis. Provavelmente o papel mais forte depois do protagonista, Mark Ruffalo faz do detetive Dave Toschi uma figura determinada e carismática, sendo divertido notar sua mania de comer biscoitos quando em direção a uma cena do crime.
Um verdadeiro clássico moderno que é tão importante quanto Arte quanto pela exposição de um caso indecifrável, Zodíaco é uma das jóias douradas na carreira de David Fincher. É uma narrativa pesada na forma como reconstitui fatos e oferece novas pistas, ao mesmo tempo em que mergulha o espectador em uma atmosfera assustadora e imprevisível. Inesquecível.
Zodíaco (Zodiac, EUA – 2007)
Direção: David Fincher
Roteiro: James Vanderbilt
Elenco: Jake Gyllenhaal, Mark Ruffalo, Robert Downey Jr, Anthony Edwards, Brian Cox, Chloë Sevigny, John Carroll Lynch, John Getz
Gênero: Suspense
Duração: 157 minutos
https://www.youtube.com/watch?v=BTkMXuYAD4M
Crítica | Power Rangers
No mundo dos negócios e do entretenimento, existem homens de visão – geralmente pessoas que tem uma sapiência excepcional em sacar e compreender o mercado e o público alvo. No caso, Haim Saban teve a brilhante ideia de adaptar os tokusatsus e Super Sentai para o público ocidental com o seriado Power Rangers. De custo baixo, aplicando um conceito já consolidado no Japão, Saban viu sua fortuna atingir os bilhões e, consequentemente, seus produtos atingem gerações até hoje.
Meu contato com Power Rangers deve ter sido tão eufórico quanto o seu, leitor, caso seja da geração dos anos 1980 ou 1990. A antecipação do ritual para conferir Mighty Morphin ou Power Rangers no Espaço é absolutamente nostálgica. Assistia aos episódios religiosamente e quando haviam especiais de duas partes, já ficava ainda mais ansioso, pois sabia que a estrutura da narrativa abandonaria a velha receita de bolo: papo furado, vilão com minions, porradaria, vilão gigante, porradaria com megazord, fim.
Já aqui em Power Rangers, segunda adaptação cinematográfica inspirada no seriado, o clima dificilmente atinge os tons descontraídos e despretensiosos das obras originais. Trata-se de mais um filme de origem de super-heróis com pretensão alta e que, aparentemente, omite ou ignora muito do ridículo que faz a identidade de Power Rangers.
Clube dos Cinco Super-Heróis
Para construir a simples narrativa do longa, foram necessárias quatro cabeças pensantes contando com o talento de John Gatins para tratar as ideias apresentadas. Evidentemente, a trama dilata toda a ligeira apresentação do quinteto ao universo e mitologia durante a temporada Mighty Morphin Power Ranger.
De modo curto e grosso, cinco jovens desconjuntados acabam unidos após encontrarem cinco moedas coloridas que fornecem superpoderes para cada um deles. Descobrindo, então, que viraram Power Rangers através do contato com o alienígena Zordon, o grupo terá que se preparar para enfrentar a vil Rita Repulsa que pretende despertar Goldar, um titã capaz de exterminar toda a vida na Terra.
O que é notório de cara e que qualquer cinéfilo moderado consegue reconhecer é a influência pesadíssima de Clube dos Cinco, clássico dos anos 1980, na estrutura das relações entre os personagens e seus arquétipos – algo que, de certa forma, já é bastante envelhecido. Entretanto, por competência, o começo é justamente a melhor parte do filme conseguindo estabelecer com solidez o trio protagonista: Jason, uma lenda do esporte que tem a lealdade como guia, Kimberly, uma garota forte e emotiva e Billy, um garoto que se identifica como autista e gênio dos eletrônicos.
Aqui, conceitos importantes já começam a ser abordados: adolescência, rebeldia, autoconhecimento e delinquência. Logo, em vez de pegar conceito pré-fabricados de personagens já muito clássicos em filmes de super-herói, os roteiristas tecem uma jornada de herói partindo de jovens irresponsáveis niilistas reconhecendo que com grandes poderes, vem grandes responsabilidades.
Nisso, cada um dos personagens ganha seus respectivos conflitos menores ante o conflito principal que é derrotar Rita e salvar o mundo. Jason tem uma relação problemática com o pai, Kimberly é mais vilã do que mocinha por conta de atitudes equivocadas que tomou com suas colegas, Billy é desconectado da realidade como um escapismo para não ter que lidar com a morte de um ente querido, Zack cuida da mãe doente terminal e Trini não consegue conviver com sua família normal enquanto encara sua homossexualidade ainda posta em dúvida.
Entretanto, isso tudo é estabelecido com nuances óbvias de qualidade entre os dramas dos personagens (Zack e Trini são os mais prejudicados com problemas de difícil resolução, além da exploração muito rasteira dando a impressão que os conflitos foram criados às pressas apenas para conferir mais camadas aos personagens). O que é extremamente irônico já que eles contam com os problemas mais interessantes e genuínos enquanto os outros recebem maior atenção por serem os verdadeiros protagonistas da trama.
Entre esse enorme problema criado pelos conflitos já clichês que nunca serão minimamente desenvolvidos apenas contando com uma chatíssima noite de confidências ao redor de uma fogueira, os roteiristas trabalham a descoberta e aprendizado dos Rangers com Zordon e Alpha 5 – um dos maiores acertos do texto em preservar a inocência e ingenuidade do robô que ganha mais nuances interessantes para expor toda a mitologia Ranger para novos espectadores.
Aqui, também é estabelecido outro enorme conflito que se alonga até por tempo demais: a dificuldade do quinteto em conseguir morfar. Todo o miolo é concentrado nisso, os forçando a conhecer uns aos outros e a si mesmos para entrar em sintonia. E acredite, muitos minutos são gastos nessa péssima jogada de desenvolvimento de personagens em fator físico e emocional, afinal o segundo ato deve compor mais de 70% do filme.
Porém, isso é falho ou tem uma moral equivocada já nunca os personagens correm atrás de resolver seus próprios problemas, mas apenas ficam expondo e conversando como se somente isso já solucionasse seus conflitos o que confere certo aspecto de telenovela juvenil. Nisso, todo o bom trabalho arquitetado no primeiro ato vai pelos ares graças a terrível enrolação e desenvolvimento muito rasteiro e previsível aplicado para os heróis. É justamente aqui que uma das características que havia impressionado até então começa a declinar: a qualidade dos diálogos.
Como dito anteriormente, Power Rangers é um filme pretensioso em seu início dedicando essa atenção louvável para definir características únicas para os personagens, além de apresentar uma comédia mais adulta. Tão logo chegamos na metade do filme, há diversas mudanças de tom: os personagens, principalmente Zack, agem com menos maturidade do que o apresentado até então, as conversas entre o grupo viram uma verborragia redundante e a comédia ganha tons infantilizados. Somente mesmo durante a porradaria do terceiro ato, no clímax, único momento que há uma sequência empolgante de ação, que o texto chega perto de acertar o tom do seriado.
Para o lado antagonista, as coisas são ainda piores. Toda atenção conferida no texto para tornar os protagonistas tridimensionais é esquecida com Rita Repulsa o que reforça esse problema de identidade do roteiro – ora pretensioso e dedicado (mesmo que nos clichês), ora preguiçoso e desleixado. Apesar de Elizabeth Banks levar a personagem muito a sério conferindo, inicialmente, um tom violento e sombrio para partir ao exagero da galhofa no final tornando sua performance bastante divertida, mas inconsistente. Em termos de texto, absolutamente nada consegue destacar a icônica vilã. A motivação é fraca, suas cenas são repetitivas, seu desfecho é digno de Pokémon, além de muito pouco ser revelado sobre a história da personagem ao contrário do que acontece com Zordon que é desenvolvido na medida certa – a relação sempre desconfiada dos Rangers com o cabeção virtual é interessante e rende bons atritos. Já com Rita, também não há muitos momentos que o grupo possa interagir com a vilã, mas os que existem são satisfatórios conseguindo remeter a pegada do seriado.
Centro de Comando
Apesar da maioria das falhas acontecerem por conta do roteiro, o diretor novato Dean Israelite também carrega parcela significativa de culpa. O problema mais óbvio é a inconsistência de tom entre o texto e a atmosfera criada em sua direção quase sempre soturna que aposta em fotografia escura de tons emudecidos passando longe da euforia visual saturada do seriado. Isso reside até mesmo quando o filme se torna mais leve durante o clímax.
Fora isso, há o gravíssimo problema de ritmo que esse filme possui. Após uma montagem de treinamento bem-feita que busca homenagear alguns filmes de kung-fu, o diretor falha em prender nossa atenção (mesmo que seu trabalho seja muito prejudicado pela embromação do texto). Parece que, depois disso, o próprio Israelite perde o interesse no filme – por exemplo, repare na decupagem da fatídica cena da fogueira que mais se assemelha com uma linguagem visual automática de games de RPGs modernos como Dragon Age Inquisition.
Graças a tudo isso, a pior coisa possível para acontecer em um filme atinge Power Rangers: o espectador simplesmente para de se importar com o que acontece na tela. A empatia criada pelo primeiro ato agitado e visualmente criativo, vai pelo ralo resultando em um perfeito desinteresse com o desfecho das histórias daqueles personagens. Logo, quando tem uma reviravolta “corajosa” que se resolverá previsivelmente, não há choque algum.
Por conta dessa tremenda transformação do miolo do filme, o terceiro ato também não se sustenta, apesar de conseguir te acordar – para visualizar bem, imagine uma viga de 200 metros sustentada por dois bloquinhos de papel ornamentados. Quando, enfim, os personagens morfam, não há excitação. A escolha de lugar para a primeira batalha contra os monstros porcamente inspirados de Rita Repulsa não colabora para a coreografia das lutas e nem mesmo o quebra-pau consegue empolgar por um motivo muito sólido: este Power Rangers parece ter vergonha de assumir as características tão amadas do seriado.
Israelite praticamente não incorpora qualquer aspecto da linguagem de encenação do seriado. As faíscas ocasionadas pela porrada são tímidas, quase imperceptíveis. Não tem pose galhofa de herói a la Power Rangers, mas tem pose de herói a la Marvel/DC. Não existem zooms, não temos explosões homéricas atrás dos personagens, as frases de efeito não dialogam com o lore da série, os mínions de Rita parecem ter saído de Noé, entre outras coisas.
Os poucos momentos que despertam a nostalgia baseiam-se em algumas frases icônicas como “cresça, meu monstro!” ou quando a música tema de Mighty Morphin toca por oito segundos quando, finalmente, o diretor faz o enquadramento clássico do seriado que acompanha os Zords disparando em direção à batalha – mas tirando o sentido épico do momento ao colocar piadas mal alocadas (isso também ocorre quando o Megazord é finalmente reunido).
Fora isso tudo, há um descompasso terrível também na trilha musical do longa baseada em muitos hits musicais. Em poucos momentos a trilha original de Brian Tyler respira e quando surge, também não consegue impressionar. Essa ênfase de trilha licenciada se torna um problema justamente pelo encaixo completamente inapropriado para cenas épicas de batalha que deveriam contar com a música original e não com Power de Kanye West – repare que toda bendita vez que alguma canção licenciada surge, quase sempre há uma grosseria técnica para tirá-la de cena.
Apesar de errar com coisas básicas e de suma importância, nem tudo é ruim no trabalho de Israelite. O diretor tem vontade de mostrar seu trabalho e para tanto consegue organizar raccords visuais bem-feitos e planos sequências interessantes como quando mostra uma perseguição de carro apenas pelo ponto de vista interno do carro perseguido – algo já visto no remake de A Hora do Espanto. Em sua decupagem, apenas há um grande excesso de planos holandeses que conferem, pela semelhança de local e tema, uma iconografia similar a de Thor, filme de 2011.
O visual, mesmo repetitivo e muito discreto, não tende a decepcionar também. Quando a ação surge, o filme também parece acordar, além de Israelite conseguir mostrar diversos acontecimentos e reações tanto dos Rangers, dos civis quanto dos vilões durante o clímax conseguindo um solidificar um trabalho de espacialidade excelente, algo tão bom quanto o que Michael Bay consegue fazer no primeiro Transformers.
Outro bom aspecto é a proeza em traduzir bem o microcosmo clichê do colegial americano, definir com facilidade os personagens bem atuados pelo elenco novato – o carisma de RJ Cyler (Ranger Azul/Billy) é contagiante. E, supreendentemente, há um trabalho valioso de simbologias no primeiro ato.
Quando o grupo adentra a caverna e é obrigado a mergulhar para chegar na nave de Zordon, o diretor e design de produção escolhem brincar com a gravidade e quebrar o eixo da normalidade e comum, indicando um renascer para os personagens assim que eles tocam o solo que rodeia a nave. A água pode simbolizar um batismo gentil que contrasta com a rigidez da rocha que eles despencam indicando novamente que a mordomia dos poderes também trará diversos problemas em suas vidas.
O mesmo ocorre com outro tipo de batismo que ocorre no clímax da obra, um batismo de fogo, onde enfim a transformação do grupo desconjuntado de adolescentes egoístas que se tornam verdadeiros heróis. Até há uma boa atenção com o figurino que sempre coloca as cores correspondentes de cada Ranger no vestuário cotidiano dos personagens, de modo bastante sutil, por sinal.
Enquanto trabalha com simbologias consideravelmente inteligentes nesses primeiros minutos do filme, não é possível dizer que o bom trabalho permaneça por muito tempo. Como havíamos dito na nossa crítica em vídeo, há uma cena na qual a camiseta de Kimberly traduz o que os personagens sentem naquele momento: era tudo um sonho. Essa cafonice literal destoa completamente do que Israelite propõe evidenciando esses problemas de tom que o filme sofre.
Os Power Rangers têm o Poder?
Fazia um bom tempo que eu não me deparava com um filme tão complicado como este Power Rangers é. Ele é tampouco bom, mas também não é uma obra de todo ruim. Essa inconsistência de atmosfera, tema, texto, direção, música e ação tornam esse longa uma incógnita sobre qual público ele realmente deseja atingir e, logo, a recomendação do texto torna-se ainda mais complicada.
Não creio que os fãs ficarão inteiramente satisfeitos, principalmente por esse medo do filme em assumir as características e pieguices do seriado – afirmo para vocês que isso de modo algum seria um problema para a diegese da obra. Também é um filme muito bobo para espectadores mais velhos que certamente já viram essa mesma estrutura narrativa e de personagens em diversos outros filmes, principalmente nos últimos anos que Hollywood bombardeia o mercado com inúmeras adaptações cinematográficas de filmes inspirados em nerdices.
E também não é um filme que as crianças irão se divertir já que a ação demora muito tempo para acontecer resultando em um chá de cadeira para espectadores mais jovens que mal vão conseguir ter empatia com os conflitos dos personagens graças a essa enrolação insustentável. O payoff do clímax é curto demais e bastante quadrado deixando a impressão que todo o tempo investido nessa história é pouco recompensado.
Então, já avisamos, se realmente está perdendo o sono de tanta ansiedade com Power Rangers, se informe com o que vai encarar antes: uma boa mistura de Clube dos Cinco, Poder Sem Limites e outros filmes Marvel com Transformers, mas que é prejudicada excessivamente por seu miolo pretensioso que almeja trazer personagens complexos, mas que se tornam completamente descartáveis graças ao prolongamento desnecessário de um desenvolvimento muito redundante que acaba não somente prejudicando os heróis, mas o filme inteiro. Principalmente na sua alma: a ação uniformizada colorida cheia de pirotecnias, poses ridículas e muitas faíscas.
Power Rangers (Power Rangers, EUA – 2017)
Direção: Dean Israelite
Roteiro: John Gatins, Matt Sazama, Burk Sharpless, Michele Mulroney, Kieran Mulroney, Haim Saban
Elenco: Dacre Montgomery, Naomi Scott, RJ Cyler, Ludi Lin, Becky G, Elizabeth Banks, Bryan Cranston, Bill Hader, Matt Shively, Cody Kearsley
Gênero: ação, aventura, super sentai, ficção científica
Duração: 124 minutos.
Crítica | Depois da Terra
M. Night Shyamalan possui uma ligação muito especial com a desgraça. Seja pela convenção criada pela crítica norte-americana, que insiste em deturpar sua pessoa, seus filmes e deglutir suas ideias como sendo infantilóides antes de sentir suas texturas, cores e sabores – isto é, analisar o cineasta como parte de um grosso de produções hollywoodianas; seja pelos temas, personagens e motivos que o diretor destrincha em suas narrativas. De O Sexto Sentido até A Visita, as histórias de Shyamalan lidam sempre com alguma impotência, com a incapacidade de superar algo, tema que atinge sua maior versatilidade em Corpo Fechado, com uma figura que falha em ser normal, e seu pico mais alto na (auto)reflexão sobre visão e percepção do primoroso A Vila.
Shyamalan persiste, mas não dá murro em ponta de faca. Ele tem, em primeiro lugar, uma consciência plena de sua obra, característica que ele compartilha com os melhores cineastas em atividade. Porém, figura controversa como é, Shyamalan é obrigado a entrar por janelas quando fecham-se as portas. Nesse sentido, me é particularmente difícil ver A Visita como uma “volta” do diretor, partindo de uma perspectiva que não leva em conta os mil imbróglios com produtoras, com a imprensa etc. Apesar da qualidade inferior de O Último Mestre do Ar e Depois da Terra, filmes em que ele demonstra menos liberdade, suas particularidades se mantém.
No filme protagonizado por Will Smith e seu filho, Jaden, eles interpretam também um pai, o veterano Cypher Raige, e seu filho, Kitai. Neste universo, a Terra foi dominada pelo ambiente, por assim dizer. A agressividade da fauna (evoluída primitivamente), a dominação da flora e o clima são impróprios para a habitação humana – numa continuação simbólica à hostilidade da natureza em Fim dos Tempos. O expansionismo da civilização humana (a colonização de outros planetas) é exposto nos trinta primeiros minutos do filme, parte em que a decupagem é problemática, simplista, bem diferente do resto do filme. Nela, explica-se a existência de monstros chamados ursas, seres cegos porém fatais, que identificam os humanos através dos feromônios liberados quando estão com medo. Alguns soldados, chamados fantasmas, conseguem se autocontrolar a tal ponto que não demonstram medo fisiologicamente – logo, são mais capazes de enfrentar as ursas. O personagem de Will Smith é um deles.
Cypher está voltando para casa e seu filho Kitai não tem boas notícias: não conseguiu ser aprovado na academia para subir de estudante para ranger. Num ato de compaixão, movido pela esposa, Cypher, próximo de sua aposentadoria, convida o filho adolescente para acompanhá-lo numa missão de transporte de uma ursa que será usada em campos de treinamento de fantasmas. Durante a viagem são atingidos por meteoritos, os motores são danificados e a nave é forçada a fazer um pouso de emergência no planeta mais próximo. Planeta, esse, outrora muito caro aos humanos: a Terra.
Durante a manobra, a nave espacial é partida em duas. Cypher e Kitai são os únicos sobreviventes da metade frontal. Para serem resgatados, devem encontrar um sinalizador. O único disponível encontra-se na parte traseira da nave, que caiu a mais de 100km de onde estão. O pai, no entanto, está com as pernas quebradas. Kitai é obrigado, então, a enfrentar o planeta hostil, sua própria impulsividade adolescente, se quiser guardar sua vida e a vida de seu pai.
Em tom fabular, Kitai verá sua força guerreira ser forçada a se manifestar. Força essa que fica em constante tensão com a sua imaturidade debochada. Se em Fim dos Tempos o humor era livre, deslocado e usado de forma eficiente, aqui, porém, a pouca habilidade de Jaden Smith dá lugar para um ridículo não intencional. De fato, o estoicismo está presente por toda a obra. Enquanto o pai defronta-se com a sua impotência, luta contra a impossibilidade de uma onipresença paterna (ele acompanha o filho através de câmeras remotas e radares de dentro dos destroços da nave, mas sua condição o deixa debilitado demais com o passar do tempo), o filho embanana-se para fazer valer o bastão do pai – também literal.
O que diferencia Depois da Terra, junto do grosso das produções de Shyamalan, de um filme descartável sobre o crescimento pessoal é a precisão com a qual a narrativa é conduzida, como os elementos são apresentados e utilizados em cena. Isso porque o diretor trabalha sua obra sob uma perspectiva de constante renovação, escrevendo sempre com a mesma caneta: a tela é o palimpsesto de Shyamalan. Um caminhar diferente, por exemplo, do de Iñárritu, que parece sempre estar visando balancear suas idiossincrasias, ao mesmo tempo que experimenta novas a cada filme, fazendo da sua visão uma armadilha. Um olhar sem profundidade de campo é capaz de perceber uma limitação semelhante em Shyamalan, mas, em perspectiva, os argumentos contrários a ele são fundados num mito-deboche bem cômodo, pois até mesmo no seu filme mais irregular, O Último Mestre do Ar, o diretor não produz um filme que prescinda das suas digitais.
O que parece cegar parcela dos espectadores e da crítica ainda é o que eu gostaria de convencionar chamar de Roteiro, com letra maiúscula. As análises feitas sobre os filmes de Shyamalan parecem sofrer o ruído da anamnese dessa entidade – justamente o que o cineasta insiste em refutar. Mas não que as escolhas do diretor sejam as melhores para as propostas por ele expostas com a sua assinatura de câmera. Dito isso, Depois da Terra triunfa por pensar no primitivo (o gesto de se ajoelhar, a batalha final na montanha, a frontalidade e o medo materializado), ao mesmo tempo que escorrega por relegar o básico a uma posição secundária. Andam junto da intertextualidade com Moby Dick – a aventura que é também uma reflexão sobre o narrar e uma analogia do expansionismo americano e da ânsia totalizadora do capitalismo (a baleia que é óleo, a mercadoria) –, momentos totalmente apáticos, em que a fraquíssima atuação do Jaden Smith e a artificialidade de momentos chave acaba inchando as imagens.
Não é próprio da crítica aglutinar-se com a mídia no geral, com as notícias sobre determinada produção. Com raras exceções, não deveria importar para a avaliação do filme o que ocorre nos bastidores. Exemplo recente, as notícias sobre a montagem de Esquadrão Suicida. Encontra-se uma explicação para o mau-resolvido tom do filme, mas não serve de justificativa. É difícil não citar, no entanto, as complicações da produção de Depois da Terra, de que Will Smith mandava mais do que Shyamalan, dizeres que na época do lançamento do longa mais serviram de paratexto. O espectador já desconfiado do cineasta só encontrou mais ruídos para poluir seu olhar de preconceitos. Chega até a ser engraçado pensar em Will Smith como uma dominatrix do filme.
No final das contas, na tela, sendo a história um meio de inflar seu ego dos Smith (Jaden está afastado das telonas desde então), ou não, em nada importa. Aliás, o que impede uma leitura em que o “manda-chuva” é ridicularizado na tela, que só sobrevive graças a uma outro (o diretor) cuja potência seu ego recusa, num exercício sagaz como o de A Dama na Água?
A experiência cromática e anti-mimética de Depois da Terra é sincera demais para ser tão odiada.
Depois da Terra (After Earth, EUA – 2013)
Direção: M. Night Shyamalan
Roteiro: M. Night Shyamalan e Gary Whitta
Elenco: Will Smith, Jaden Smith, Sophie Okonedo e Zoë Kravitz
Gênero: Ação, Aventura, Ficção Científica
Duração: 100 minutos
Crítica | T2 Trainspotting
Em 1996, o diretor Danny Boyle lançava o seu segundo filme, Trainspotting – Sem Limites. Mostrava um grupo de jovens que vivem na Escócia que buscavam o prazer pela heroína. O longa chamou a atenção pela sua forma pop, que seria a marca de Boyle durante sua carreira. Um uso muito criativo de cortes e movimentos de câmeras que não eram vistos no cinema britânico, além de ser um filme sobre juventude e falava sobre drogas de uma maneira que não soa um discurso moralista. Acabou se transformando em um Cult e Boyle sempre dizia que iria fazer um dia uma continuação. Pois bem, vinte anos depois é lançado T2 Trainspotting, que mesmo não sendo tão bom quanto o original, se mostra um excelente filme.
O longa se passa vinte anos após os acontecimentos do primeiro filme. Mark Renton (Ewan McGregor) retorna a Edimburgo para rever os seus amigos. Todos eles sofreram as consequências de sua juventude que só buscava o prazer: Sick Boy (Jonny Lee Miller) vive de pequenos golpes e administra um pub fracassado que planeja em transformar o local em um bordel, administrado por ele junto com a sua namorada, Veronyka (Anjela Nedyalkova); Spud (Ewen Bremmer) vive no mesmo apartamento caindo aos pedaços, continua viciado em heroína e está divorciado, seu filho não quer mais saber do seu pai; Begbie (Robert Carlyle) está cumprindo pena na prisão, até que escapa e começa a realizar pequenos roubos, com o objetivo de colocar o seu filho (Scot Greenan) no caminho da criminalidade. O caminho deles vão se cruzar, enquanto Begbie planeja se vingar de Renton por uma ação que fez no passado.
O primeiro ponto que deve se falar de T2: é necessário ver o primeiro filme para compreender as motivações dos personagens e o filme não vai parar para explicar. Esse segundo é a consequência do que aconteceu e o espectador só vai entender melhor a causa assistindo o filme de 1996. Acaba sendo um dos pouco problemas do longa. Além do retorno de Boyle na direção, John Hodge volta como roteirista e como ambos conhecem bem o universo e os personagens, a continuação tem características que deixaram o primeiro reconhecido, mas com um tom mais maduro. Perceberam que esse novo filme não poderia ser como o primeiro, por esse ter um espírito jovial sobre escolhas da vida. O tom dado agora é um tom melancólico, pois os personagens não são mais jovens chegando aos trinta anos, mas adultos com mais de quarenta que tem outros dilemas. As atualizações dadas pelos realizadores deixam o longa atual, parecendo que são os mesmos do longa anterior mais maduros e experientes como artistas.
O elenco volta e o que foi dito sobre os realizadores vale aos atores: como eles estão mais experientes como atores, o resultado fica mais rico que o original. Ewan McGregor vai pouco a pouco nos lembrando do Renton vivo e paranoico que havia no primeiro filme; Jonny Lee Miller mostra Sick Boy como um patético que ainda sonha com grandeza, mas se mostra um imaturo; Ewen Bremmer ainda mostra Spud como o mais ingênuo do grupo e o mais sincero; já Robert Carlyle interpreta Begbie de maneira mais impulsiva, mostrando-o como um completo sociopata. Anjela Nedyakolva se mostra uma adição interessante, por mostrar uma ótima química com o grupo e por criar uma personagem que vai percebendo que não tem futuro andando com esse grupo. Kelly Macdonald volta em uma cena que faz referência ao filme original, tanto que só quem viu esse vai entender a piada. Todos do elenco fazem um bom trabalho.
Danny Boyle volta a mostrar todas as suas características como diretor em T2: cortes e movimentos de câmera rápidos; ângulos inusitados; uso de música no momento correto; personagens nos seus limites; o uso nada sutil de neon; etc.. Mas Boyle mostrou em boa parte de sua obra que sabia adaptar bem o seu estilo a narrativa que estava fazendo e nesse filme não é diferente. Não só ajudam a criar uma atmosfera paranoica, mas deixam o filme mais dinâmico e autentico. O diretor junto com o fotógrafo Anthony Dod Mantle, faz um interessante jogo com as cores. Se notarem há uma grande quantidade de laranja, azul e verde durante todo o filme e há cenas que essas cores entram em conflito, como se sonho, ilusão e realidade se chocassem. Além de criarem cenas visualmente muito interessantes, como uma em que vemos a silhueta de Spud no canto do quadro enquanto olha uma parede e nela mostra cenas do primeiro filme. Isso se deve ao ótimo trabalho de outro colaborador frequente do diretor: o montador Jon Harris.
Além de dar um ótimo ritmo ao filme, Harris utiliza de maneira inteligente e criativa caracteres na tela. Não é gratuito e ocorrem em momentos pontuais. O montador também coloca cenas do filme anterior em alguns momentos. Na maioria funcionam, pois mostra visualmente os personagens se lembrando das sensações que sentiam vinte anos atrás. Mas em outras soam exageradas, parecendo que servem para nos lembrar do filme anterior e dar a sensação de nostalgia.
Outro fator interessante é como a trilha trabalha com a montagem na hora do corte. Boyle utiliza um momento específico da música para dar uma sensação momentânea, na maioria dos momentos são nos momentos cômicos. É uma estratégia arriscada, mas funciona.
Enfim, T2 Trainspotting pode ser considerada uma continuação tardia, mas está longe de ser cretina. Honra o espírito do longa original e se mostra mais maduro do que ele. O elenco está muito bem reprisando os seus papéis icônicos e Danny Boyle mostra como o seu estilo autêntico faz diferença no seu jeito de contar histórias. Na verdade, não é uma continuação tardia, pois mostra os resultados quando Renton escolheu uma, vida, um trabalho, uma carreira, colesterol baixo, uma puta televisão grande, um bom plano dentário...
T2 Trainspotting (Idem – Reino Unido – 2016)
Direção: Danny Boyle
Roteiro: John Hodge
Elenco: Ewan McGregor, Robert Carlyle, Jonny Lee Miller, Ewen Bremmer, Kelly Macdonald e Anjela Nedyalkova
Gênero: Drama
Duração: 117 minutos
Crítica | Instinto Selvagem
Após os créditos iniciais de Instinto Selvagem, vemos um casal fazendo sexo. Ele está com os braços amarrados e a sua companheira – uma loira de corpo escultural – está por cima, se preparando para o orgasmo. Durante o movimento, ela pega um picador de gelo e o mata a punhaladas. A cena descrita acima serve para mostrar o espectador como será o filme. O diretor Paul Verhoeven, não está a fim de criar uma história de mistério, mas sim um jogo de manipulação em que a principal arma é a luxúria.
O mistério é bem simples: após o assassinado citado acima, o detetive Nick Curran (Michael Douglas) fica responsável pelo caso. A vítima era um músico de rock aposentado que estava tendo relações sexuais com Catherine Tramell (Sharon Stone), uma escritora de suspenses. Catherine se torna a principal suspeita após descobrirem que em um dos seus livros ocorre um assassinato que é descrito da mesma maneira, com um homem sendo morto por uma mulher com um picador de gelo. Mesmo sem provas concretas, Nick começa a se envolver com a suspeita e entra em um jogo muito perigoso.
O primeiro ponto que deve ser comentado sobre o roteiro– assinado por Joe Eszterhas (Showgirls) - é que o mistério em si é bobo. Ele é óbvio, e o filme tenta enganar em certos momentos e quando o faz vai deixando vários furos na trama. Isso quando não tenta forçar relações entre os personagens para chegar a resolução do mistério. Mas como disse no primeiro parágrafo, o que vale no longa é o jogo de caça e caçador entre Nick e Catherine. Na verdade, não se sabe quais são os papéis.
Não se sabe se ele ou ela está no controle da situação. Quanto mais se desenvolve, mais fica a impressão que ela manipula não apenas o detetive, mas todos com quem interafe por conta de sua beleza. Não é apenas a personagem que é bem escrita, mas é por conta da ótima atuação de Sharon Stone que cria uma pessoa que é quente em certos momentos e fria em outros. Isso faz que o espectador tema as ações de Catherine, por ela ser imprevisível. Até quando se mostra amorosa com Nick, percebe-se que tem algo por trás.
Aliás, o quente e o frio são os grandes contrastes do longa. Se perceber as maiorias das cores que aparecem durante o longa são branco, azul e laranja. Se perceber a maioria dos cenários há essas três cores no mesmo lugar. Uma cor quente (laranja), fria (azul) e uma que pode ir para qualquer lado (branco). É mais uma brincadeira de Verhoeven para provocar o público. Todas as cenas do longa são muito provocantes, soando como se o diretor quisesse que o expectador fosse parte do jogo. As cenas de sexo e nudez são explicitas, mas não são gratuitas. Se notarem, nenhum sexo do filme é movido por amor. Mas por luxúria, quase como se o instinto básico (daí o nome original do longa) do ser humano. Todos os elementos em cena só provocam o espectador, o ápice é a famosa cruzada de pernas de Sharon Stone. Que é a cena que mostra o poder de sedução da personagem, pois após a cruzada ele corta para as reações dos homens na sala que estão enlouquecidos com a beleza daquela mulher.
Outro fator que aumenta o suspense do filme é a excelente trilha sonora de Jerry Goldsmith que cria uma atmosfera em que todos os elementos são perigosos. A melhor parte é que se trata de uma trilha contida que não chama a atenção para si mesma e só acelera nas cenas de perseguição, aumentando a tensão. O jeito que ela está sincronizada com o que está em tela também ajuda a construir o suspense. É mais um trabalho primoroso de um grande músico como Goldsmith.
Instinto Selvagem não foi reconhecido na época como um grande filme. Se deve a violência e sexo, que se tornaram marcas da obra de Paul Verhoeven. Pra que gosta de um bom suspense, juro que não vai se decepcionar. Deixe que a possível psicopatia e a sexualidade de Catherine Tramel te leve para um mundo movido pela luxúria.
Instinto Selvagem (Basic Instinct, EUA - 1992)
Direção: Paul Verhoeven
Roteiro: Joe Eszterhas
Elenco: Sharon Stone, Michael Douglas, George Dzunda
Gênero: Drama, Suspense
Duração: 127 minutos.
Crítica | O Último Mestre do Ar
A nação do fogo começa a dominar o mundo com a expansão de seu território, todos os lugares que ela passa só deixa rastro de destruição. Agora, a última esperança da humanidade reside em um garoto chamado Aang, o Avatar, mas o problema é que ele desapareceu por cem anos e só agora retorna para ajudar um povo já sem esperança.
O roteiro do filme simplesmente condensou a primeira temporada de Avatar: A Lenda de Aang, que possui 20 episódios, em um filme de 100 minutos. A história inteira é corrida, tudo é contado forma tão despreparada com uma torrente de informações para o espectador entrar no clima do filme, coisa que é praticamente impossível. Eu assisti todos os 61 episódios do desenho e não consegui entender direito a história de tão rápida e a maneira como ela é contada.
Katara vai narrando a história do filme de tempos em tempos para que o público possa se situar em que lugar do mundo eles estão e o que ocorreu num determinado período de tempo. O roteiro, além de ser confuso, não consegue ser o mínimo engraçado: transforma a primeira temporada da série, que é extremamente cômica, em uma coisa sombria acompanhando Aang no caminho de sua redenção. O filme impõe ao público as relações de Aang com seus amigos como se fosse amizade à primeira vista, coisa que o desenho não faz. A amizade deles vai se desenvolvendo ao decorrer da série, ficando difícil de acreditar no sentimento apresentado no filme.
Uma das coisas que mais assustam é a atuação extremamente robótica. O trio protagonista está péssimo ao nem mesmo conseguir dizer as linhas toscas de diálogo com mais afinco e vontade. O pior dos piores realmente está concentrado em Noah Ringer, apresentando uma performance tão ruim que conseguiu enterrar de vez sua carreira. O único que parece levar a produção a sério é Dev Patel que entrega um Zuko minimamente convincente.
É melhor Shyamalan juntar suas rédeas novamente, porque este filme é o ápice da decadência progressiva de seus trabalhos. Nem Fim do Tempos consegue ser tão ruim como O Último Mestre do Ar. Quase nada no filme funciona, nem mesmo a ação das batalhas empolgam chegando até a serem maçantes.
Este filme não foi feito para crianças, não foi feito para uma audiência mais adulta, não foi feito para os fãs da série, não foi feito para mim e também não foi feito para você. Ele, simplesmente, foi feito para o nada. E depois de 7 anos, isso foi confirmado: está no mais profundo limbo dos filmes esquecidos.
O Último Mestre do Ar (The Last Airbender, EUA - 2010)
Direção: M. Night Shyamalan
Roteiro: M. Night Shyamalan
Elenco: Noah Ringer, Nicola Peltz, Jackson Rathborne, Shaun Toub, Dev Patel
Gênero: ação, aventura
Duração: 103 minutos
https://www.youtube.com/watch?v=j_qM4EG9VZw
Crítica | Fim dos Tempos - O apocalipse de M. Night Shyamalan
Se A Dama da Água já havia sido péssimo, se imaginava que o próximo filme de M. Night Shyamalan seria algo diferente e bom, mas ledo engano. Fim dos Tempos estreou em 2008 e causou muita euforia por se tratar de um filme apocalíptico. Mas o longa é péssimo, só não sendo o pior de sua carreira porque logo depois viriam atrocidades como Depois da Terra.
Logo no início acompanhamos diversas situações misteriosas. Duas mulheres sentadas no parque estão conversando, quando uma delas começa a ouvir gritos e logo em seguida vê pessoas pararem por alguns segundos, e nesse tempo sua amiga pega um acessório de cabelo e começa a se mutilar. Corta para uma construção em que alguns homens começam a se jogar do telhado, em uma cena que talvez tenha sido colocada lá mais para chocar e dar esperanças de que seria um filmaço de terror.
Seguindo esses fatos somos apresentados aos personagens principais, Elliot Moore (Mark Wahlberg) professor de ciências e em seguida sua esposa Alma (Zooey Deschanel). Eles são casados e vivem uma crise conjugal que não foi bem desenvolvida na história. Ambos, junto com um outro professor amigo de Elliot (vivido por John Leguizamo) e sua filha, estão fugindo da cidade para escapar do que está sendo descrito pela imprensa como um "ataque terrorista", e nisso várias situações vão acontecendo durante o percurso. Tudo sem explicação certa, apenas achismos do que poderia ser aquilo. Até que um homem diz que tudo está sendo feito pelas plantas.
Descobrimos então que as plantas, seres que ajudam nós humanos a viver, estão soltando uma neurotoxina capaz de deixar as pessoas em estado de zumbi, deixando-as paralisadas e as manipulando para cometer em muitos casos suicídios em massa. Essa neurotoxina é transportada pelo vento e na maioria dos casos atinge uma grande população. Seria um método de autodefesa, com as plantas vendo a raça humana como uma grande ameaça.
A história é fraca, chata e muito mal roteirizada, além de não ter uma explicação clara e nem ter lógica. Tudo que ele pode fazer para nos confundir, faz. Joga situações sem as desenvolver, não há clímax, apesar de ficarmos a todo tempo achando que teria uma virada na trama. Nada acontece e isso decepciona bastante. Shyamalan não sabe se faz um filme de terror, de ficção científica ou um filme denúncia de destruição do meio-ambiente (no início Elliot pergunta aos alunos porque as abelhas estão morrendo e sua importância para o meio-ambiente).
Diferente do filme A Vila, onde que todos os personagens tinham alguma função e eram bem desenvolvidos, em Fim dos Tempos parece que não há sintonia entre os personagens. E os atores que os interpretam não fazem muito esforço para fazer uma atuação melhor do que podem. A criança parece que está lá só por estar, não abre a boca uma vez se quer. O papel de Zooey Deschanel é horrível, só sabe chorar e lamentar. Nem Mark Wahlberg se salva; sua atuação até que é boa, mas o personagem é sem sal e sonso, e os closes diretos em seu rosto irritam demais.
É estranho um diretor que começou a carreira tão bem iniciar um caminho que mais beira a um abismo. Não abandonou o cinema de massa, mas fazia obras que queriam filosofar demais e acabava não falando nada. Só ele parece ver sentido nesse filme.
Shyamalan podia ter feito um longa ao estilo de O Abrigo em que os personagens se escondem de algo que não conhecem e é muito bem roteirizado e dirigido. Fim dos Tempos foi vendido como um triller apocalíptico, mas em alguns casos parece mais uma piada de mal gosto e sem sentido. Se você tiver Netflix e esse filme estiver a disposição no catálogo, passe longe dele.
Fim dos Tempos (The happening, EUA – 2008)
Direção: M. Night Shyamalan
Roteiro: M. Night Shyamalan
Elenco: Mark Wahlberg, Zooey Deschanel, John Leguizamo,
Gênero: Ficção Científica, Thriller
Duração: 130 minutos
Crítica | Punho de Ferro - 1ª Temporada
A parceria entre a Marvel e a Netflix tem rendido alguns dos melhores frutos que ambos já receberam ao longo de sua História. O sucesso avassalador das duas temporadas de Demolidor e as recepções críticas favoráveis de heróis B como Jessica Jones e Luke Cage ajudaram a pavimentar um novo caminho para séries de TV de heróis e até um gigante plano que envolve a união de todos os vigilantes urbanos da editora em Os Defensores, que será lançada no serviço de streaming no segundo semestre - além de um inesperado spin off do Justiceiro de Jon Bernthal, que chamou sua atenção na série do Demônio de Hell's Kitchen.
A última peça do quebra-cabeças, porém, é Danny Rand e seu alter ego do Punho de Ferro, a última das quatro séries originais encomendadas pelo Netflix em 2014, e o último Defensor para fechar a primeira formação do grupo na televisão. Mas ao contrário de seus antecessores, a nova série foi recebida com um ataque furioso da crítica, que a taxou como uma das piores produções da Marvel de todos os tempos, além de absurdas - e infundadas - acusações de white washing, que só piorou com a nada delicada reação do ator Finn Jones; culpando até Donald Trump pelo massacre crítico da obra, além da velha desculpa de "o show é feito para os fãs, não para críticos". Bem, talvez seja todo o hype negativo ou o fato de que pessoalmente nunca achei grande coisa das séries da Netflix, mas a verdade é que Punho de Ferro não é ruim como fora reportado, mas definitivamente tem problemas graves.
Temos início em uma movimentada avenida de Manhattan, quando um descalço e sujo Danny Rand (Jones) retorna para sua cidade natal e a poderosa empresa que seus pais lhe deixaram como herança após um acidente de avião matá-los. Danny foi o único sobrevivente do desastre, caindo no Himalaia e recebendo um exótico treinamento com monges, que o ajudaram a invocar e lutar sob o espírito budista do Punho de Ferro. Assim, Danny precisa convencer seus amigos - no controle da empresa - de quem ele realmente é e usar seus poderes e habilidades de Kung Fu para enfrentar e derrotar a organização criminosa conhecida como o Tentáculo; chefiada pela enigmática Madame Gao (Wai Ching Ho), já tendo ambos aparecido algumas vezes em Demolidor.
É uma introdução que nos remete muito à estrutura de Batman Begins e até à série Arrow, com o retorno de um bilionário herdeiro que todos esperavam estar mortos, mas que na verdade estava em alguma locação exótica treinando artes marciais e agora visa limpar o crime em sua cidade. A diferença de Punho de Ferro é que o showrunner Scott Buck passa um tempo considerável nessa transição, com Danny tendo dificuldade em comprovar a seus colegas quem é de fato; quando Bruce Wayne retornava à Wayne Enteprises em Batman Begins, todos simplesmente aceitavam sua milagrosa ressureição e se adaptavam a isso. Com Danny, ele é literalmente jogado em um hospital psiquiátrico no segundo episódio, já que todos creem se tratar de um mendigo maluco ou algum golpe empresarial, sendo um impostor se passando por Rand. Se por um lado acaba atrasando a progressão dos eventos da história, esse dilema acaba acompanhando o personagem e até serve como uma boa metáfora, já que sua personalidade ainda divide-se entre ser Rand ou ser o Punho de Ferro; então, essa decisão de colocar uma dúvida externa acaba soando surpreendentemente eficaz.
Somos então jogados no mundo corporativo da Rand Industries, onde o núcleo dos irmãos Ward e Joy Meachum (Tom Pelphrey e Jessica Stroup, respectivamente) acaba tomando grande parte da trama. A chegada de Danny causa um frisson na vida dos dois, vide que o jovem forasteiro traz uma mente ingênua do mundo dos negócios e acaba forçando sua empresa a tomar decisões que honrem o bem maior - mas que acabam provocando quedas em seu setor econômico e provocando a ira dos engravatados da diretriz. É um núcleo que funciona quando temos a personalidade quase hippie de Danny interferindo naquele mundo vastamente diferente (admito, nunca vimos Bruce Wayne realmente sentar e discutir negócios de sua empresa bilionária), mas que acaba fadado ao tédio quando o foco recai sobre os irmãos Meachum, pobres vítimas de uma trama sem graça e movida por diálogos horríveis, com uma relação tão confusa que por um momento suspeitei que fosse algum tipo de incesto.
O núcleo coadjuvante mais interessante acaba recaindo sobre Colleen Wing (Jessica Henwick), uma instrutora de artes marciais que acaba conhecendo Danny e ajudando-o a colocá-lo de volta a seu caminho. Decerto que algumas revelações envolvendo a personagem, que vão desde um passado com o Tentáculo até o fato de ela... Ser professora particular da enfermeira Claire Temple (Sim, Rosario Dawson) acabam soando como gigantescas coincidências e conveniências de roteiro completamente artificiais, mas a relação entre Colleen e Danny é feita com mais naturalidade, algo que se deve também à química certeira de seus intérpretes, com Finn Jones revelando um incrível carisma e a habilidade de conseguir transportar todas as características de Danny, desde sua personalidade de crianção (especialmente no núcleo empresarial), sua devoção quase cega aos ensinamentos do Punho de Ferro e toda a fisicalidade que o papel exige, algo que vemos bem transposto quando Jones medita, se alonga e faz todas as poses de kung fu esperadas.
Assim, a narrativa de Punho de Ferro acaba atropelando diversos blocos. Poucas séries criadas sob o formato do binge watching surgem tão episódiocas quanto essa, com Danny Rand enfrentando situações diferentes, enquanto seus blocos coadjuvantes parecem estar atuando em uma série completamente isolada, com pouquíssimas conexões com o núcleo central. O rumo também perde-se constantemente, com os roteiristas inventando diversas reviravoltas envolvendo os momentos do Tentáculo, que estão infiltrados na Rand, antigos companheiros do monastério de Danny e até uma repentina viagem à China, em blocos que não soam contínuos e acabam sendo difíceis de atravessar, vide a montagem defeituosa. E o que falar de Claire Temple, que só está ali para trazer easter eggs e oferecer as piores falas de alívio cômico de todos os tempos? Até mesmo a atriz parece nitidamente estar levando tudo na piada.
E se todas as séries da Netflix tinham algo irrefutável, era a presença de um antagonista memorável. Com Punho de Ferro, além da figura enigmática de Madame Gao e o Tentáculo, temos a duvidosa presença de Harold Meachum (David Wenham), pai de Ward e Joy que foi milagrosamente ressuscitado da morte pelo Tentáculo, e vive em segredo em uma luxuosa cobertura no centro da cidade; com Ward sendo o único que tem ciência de sua existência. Infelizmente, nenhum dos Meachum chega no nível de um Rei do Crime, um Kilgrave ou pelo menos um Boca de Algodão, ainda mais pela série constantemente oferecer reviravoltas que parecem mudar nossa percepção acerca dos personagens; nunca fica claro quem é o vilão da história, ou quais as intenções de Harold.
Sua relação com Ward é interessante, e remete muito ao tipo de paternidade defeituosa que vemos em Norman e Harry Osborn, a família do Duende Verde que inferniza a vida do Homem-Aranha. É possível compreender a humilhação sofrida por Ward, assim como o velho clichê do favoritismo do pai pelo amigo que é "o filho que nunca teve", algo que se aplica assim que Danny descobre sua condição, mas que jamais realmente torna mais forte o conflito entre os dois, ou a motivação clara de quem o protagonista realmente precisa enfrentar - e isso só torna mais confuso na segunda metade da temporada, quando um novo representante do Tentáculo acaba assumindo as rédeas da história.
Porém, a série acaba errando feio naquele que deveria ser seu ponto alto: ação. Sendo um protagonista treinado sob um monge místico de artes marciais, toda a coreografia apresentada nas cenas de ação é da mais mundana e genérica possível, e isso é inadmissível para um seriado cujo lore está justamente nessa área. Nem mesmo a condução dos inúmeros diretores ajuda (até mesmo RZA assume a direção de um dos episódios), todos com planos fechados demais, uma mise en scène confusa e uma montagem horrível que nem disfarça os inúmeros erros de continuidade em movimentos e ações, assim como a artificialidade dos poderes de Danny - logo no primeiro episódio, o momento em que o protagonista salta sobre um taxi é de um amadorismo ofensivo, e o clímax comete o crime de lembrar a todos nós da existência da Mulher-Gato de Halle Berry. As únicas cenas de luta minimamente empolgantes são as brigas de gaiola com Colleen, que impressionam pela brutalidade de seus oponentes.
No fim, esse Punho de Ferro certamente não é tão ruim quanto todas as críticas vinham apontando, sendo consideravelmente mais interessante e com personagens mais carismáticos do que outras séries sob o selo da Marvel Netflix. Falta à série uma sofisticação em seus quesitos técnicos e na estrutura geral da história, que acaba confusa e desconexa em diversos momentos, algo que também é fruto da defeituosa e cansativa estrutura de 13 episódios.
Punho de Ferro - 1ª Temporada (Iron Fist - Season 1, EUA - 2017)
Criador: Scott Buck
Direção: Jon Dahl, Farren Blackburn, Uta Briesewitz, Deborah Chow, Andy Goddard, Peter Hoar, Miguel Sapochnik, Tom Shankland, Stephen Surjik, Kevin Tancharoen, Jet Wilkinson
Roteiro: Scott Buck, Gil Kane, Roy Thomas, Dwain Worrell, Tamara Becher, Pat Charles, Quinton Peeples, Scott Reynolds, Ian Stokes, Christian Chambers
Elenco: Finn Jones, Tom Pelphrey, Jessica Stroup, Jessica Henwick, Rosario Dawson, David Wenham, Wai Ching Ho
https://www.youtube.com/watch?v=03W2ffgkYDM