M. Night Shyamalan possui uma ligação muito especial com a desgraça. Seja pela convenção criada pela crítica norte-americana, que insiste em deturpar sua pessoa, seus filmes e deglutir suas ideias como sendo infantilóides antes de sentir suas texturas, cores e sabores – isto é, analisar o cineasta como parte de um grosso de produções hollywoodianas; seja pelos temas, personagens e motivos que o diretor destrincha em suas narrativas. De O Sexto Sentido até A Visita, as histórias de Shyamalan lidam sempre com alguma impotência, com a incapacidade de superar algo, tema que atinge sua maior versatilidade em Corpo Fechado, com uma figura que falha em ser normal, e seu pico mais alto na (auto)reflexão sobre visão e percepção do primoroso A Vila.
Shyamalan persiste, mas não dá murro em ponta de faca. Ele tem, em primeiro lugar, uma consciência plena de sua obra, característica que ele compartilha com os melhores cineastas em atividade. Porém, figura controversa como é, Shyamalan é obrigado a entrar por janelas quando fecham-se as portas. Nesse sentido, me é particularmente difícil ver A Visita como uma “volta” do diretor, partindo de uma perspectiva que não leva em conta os mil imbróglios com produtoras, com a imprensa etc. Apesar da qualidade inferior de O Último Mestre do Ar e Depois da Terra, filmes em que ele demonstra menos liberdade, suas particularidades se mantém.
No filme protagonizado por Will Smith e seu filho, Jaden, eles interpretam também um pai, o veterano Cypher Raige, e seu filho, Kitai. Neste universo, a Terra foi dominada pelo ambiente, por assim dizer. A agressividade da fauna (evoluída primitivamente), a dominação da flora e o clima são impróprios para a habitação humana – numa continuação simbólica à hostilidade da natureza em Fim dos Tempos. O expansionismo da civilização humana (a colonização de outros planetas) é exposto nos trinta primeiros minutos do filme, parte em que a decupagem é problemática, simplista, bem diferente do resto do filme. Nela, explica-se a existência de monstros chamados ursas, seres cegos porém fatais, que identificam os humanos através dos feromônios liberados quando estão com medo. Alguns soldados, chamados fantasmas, conseguem se autocontrolar a tal ponto que não demonstram medo fisiologicamente – logo, são mais capazes de enfrentar as ursas. O personagem de Will Smith é um deles.
Cypher está voltando para casa e seu filho Kitai não tem boas notícias: não conseguiu ser aprovado na academia para subir de estudante para ranger. Num ato de compaixão, movido pela esposa, Cypher, próximo de sua aposentadoria, convida o filho adolescente para acompanhá-lo numa missão de transporte de uma ursa que será usada em campos de treinamento de fantasmas. Durante a viagem são atingidos por meteoritos, os motores são danificados e a nave é forçada a fazer um pouso de emergência no planeta mais próximo. Planeta, esse, outrora muito caro aos humanos: a Terra.
Durante a manobra, a nave espacial é partida em duas. Cypher e Kitai são os únicos sobreviventes da metade frontal. Para serem resgatados, devem encontrar um sinalizador. O único disponível encontra-se na parte traseira da nave, que caiu a mais de 100km de onde estão. O pai, no entanto, está com as pernas quebradas. Kitai é obrigado, então, a enfrentar o planeta hostil, sua própria impulsividade adolescente, se quiser guardar sua vida e a vida de seu pai.
Em tom fabular, Kitai verá sua força guerreira ser forçada a se manifestar. Força essa que fica em constante tensão com a sua imaturidade debochada. Se em Fim dos Tempos o humor era livre, deslocado e usado de forma eficiente, aqui, porém, a pouca habilidade de Jaden Smith dá lugar para um ridículo não intencional. De fato, o estoicismo está presente por toda a obra. Enquanto o pai defronta-se com a sua impotência, luta contra a impossibilidade de uma onipresença paterna (ele acompanha o filho através de câmeras remotas e radares de dentro dos destroços da nave, mas sua condição o deixa debilitado demais com o passar do tempo), o filho embanana-se para fazer valer o bastão do pai – também literal.
O que diferencia Depois da Terra, junto do grosso das produções de Shyamalan, de um filme descartável sobre o crescimento pessoal é a precisão com a qual a narrativa é conduzida, como os elementos são apresentados e utilizados em cena. Isso porque o diretor trabalha sua obra sob uma perspectiva de constante renovação, escrevendo sempre com a mesma caneta: a tela é o palimpsesto de Shyamalan. Um caminhar diferente, por exemplo, do de Iñárritu, que parece sempre estar visando balancear suas idiossincrasias, ao mesmo tempo que experimenta novas a cada filme, fazendo da sua visão uma armadilha. Um olhar sem profundidade de campo é capaz de perceber uma limitação semelhante em Shyamalan, mas, em perspectiva, os argumentos contrários a ele são fundados num mito-deboche bem cômodo, pois até mesmo no seu filme mais irregular, O Último Mestre do Ar, o diretor não produz um filme que prescinda das suas digitais.
O que parece cegar parcela dos espectadores e da crítica ainda é o que eu gostaria de convencionar chamar de Roteiro, com letra maiúscula. As análises feitas sobre os filmes de Shyamalan parecem sofrer o ruído da anamnese dessa entidade – justamente o que o cineasta insiste em refutar. Mas não que as escolhas do diretor sejam as melhores para as propostas por ele expostas com a sua assinatura de câmera. Dito isso, Depois da Terra triunfa por pensar no primitivo (o gesto de se ajoelhar, a batalha final na montanha, a frontalidade e o medo materializado), ao mesmo tempo que escorrega por relegar o básico a uma posição secundária. Andam junto da intertextualidade com Moby Dick – a aventura que é também uma reflexão sobre o narrar e uma analogia do expansionismo americano e da ânsia totalizadora do capitalismo (a baleia que é óleo, a mercadoria) –, momentos totalmente apáticos, em que a fraquíssima atuação do Jaden Smith e a artificialidade de momentos chave acaba inchando as imagens.
Não é próprio da crítica aglutinar-se com a mídia no geral, com as notícias sobre determinada produção. Com raras exceções, não deveria importar para a avaliação do filme o que ocorre nos bastidores. Exemplo recente, as notícias sobre a montagem de Esquadrão Suicida. Encontra-se uma explicação para o mau-resolvido tom do filme, mas não serve de justificativa. É difícil não citar, no entanto, as complicações da produção de Depois da Terra, de que Will Smith mandava mais do que Shyamalan, dizeres que na época do lançamento do longa mais serviram de paratexto. O espectador já desconfiado do cineasta só encontrou mais ruídos para poluir seu olhar de preconceitos. Chega até a ser engraçado pensar em Will Smith como uma dominatrix do filme.
No final das contas, na tela, sendo a história um meio de inflar seu ego dos Smith (Jaden está afastado das telonas desde então), ou não, em nada importa. Aliás, o que impede uma leitura em que o “manda-chuva” é ridicularizado na tela, que só sobrevive graças a uma outro (o diretor) cuja potência seu ego recusa, num exercício sagaz como o de A Dama na Água?
A experiência cromática e anti-mimética de Depois da Terra é sincera demais para ser tão odiada.
Depois da Terra (After Earth, EUA – 2013)
Direção: M. Night Shyamalan
Roteiro: M. Night Shyamalan e Gary Whitta
Elenco: Will Smith, Jaden Smith, Sophie Okonedo e Zoë Kravitz
Gênero: Ação, Aventura, Ficção Científica
Duração: 100 minutos