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Crítica | Power Rangers

No mundo dos negócios e do entretenimento, existem homens de visão – geralmente pessoas que tem uma sapiência excepcional em sacar e compreender o mercado e o público alvo. No caso, Haim Saban teve a brilhante ideia de adaptar os tokusatsus e Super Sentai para o público ocidental com o seriado Power Rangers. De custo baixo, aplicando um conceito já consolidado no Japão, Saban viu sua fortuna atingir os bilhões e, consequentemente, seus produtos atingem gerações até hoje.

Meu contato com Power Rangers deve ter sido tão eufórico quanto o seu, leitor, caso seja da geração dos anos 1980 ou 1990. A antecipação do ritual para conferir Mighty Morphin ou Power Rangers no Espaço é absolutamente nostálgica. Assistia aos episódios religiosamente e quando haviam especiais de duas partes, já ficava ainda mais ansioso, pois sabia que a estrutura da narrativa abandonaria a velha receita de bolo: papo furado, vilão com minions, porradaria, vilão gigante, porradaria com megazord, fim.

Já aqui em Power Rangers, segunda adaptação cinematográfica inspirada no seriado, o clima dificilmente atinge os tons descontraídos e despretensiosos das obras originais. Trata-se de mais um filme de origem de super-heróis com pretensão alta e que, aparentemente, omite ou ignora muito do ridículo que faz a identidade de Power Rangers.

Clube dos Cinco Super-Heróis

Para construir a simples narrativa do longa, foram necessárias quatro cabeças pensantes contando com o talento de John Gatins para tratar as ideias apresentadas. Evidentemente, a trama dilata toda a ligeira apresentação do quinteto ao universo e mitologia durante a temporada Mighty Morphin Power Ranger.

De modo curto e grosso, cinco jovens desconjuntados acabam unidos após encontrarem cinco moedas coloridas que fornecem superpoderes para cada um deles. Descobrindo, então, que viraram Power Rangers através do contato com o alienígena Zordon, o grupo terá que se preparar para enfrentar a vil Rita Repulsa que pretende despertar Goldar, um titã capaz de exterminar toda a vida na Terra.

O que é notório de cara e que qualquer cinéfilo moderado consegue reconhecer é a influência pesadíssima de Clube dos Cinco, clássico dos anos 1980, na estrutura das relações entre os personagens e seus arquétipos – algo que, de certa forma, já é bastante envelhecido. Entretanto, por competência, o começo é justamente a melhor parte do filme conseguindo estabelecer com solidez o trio protagonista: Jason, uma lenda do esporte que tem a lealdade como guia, Kimberly, uma garota forte e emotiva e Billy, um garoto que se identifica como autista e gênio dos eletrônicos.

Aqui, conceitos importantes já começam a ser abordados: adolescência, rebeldia, autoconhecimento e delinquência. Logo, em vez de pegar conceito pré-fabricados de personagens já muito clássicos em filmes de super-herói, os roteiristas tecem uma jornada de herói partindo de jovens irresponsáveis niilistas reconhecendo que com grandes poderes, vem grandes responsabilidades.

Nisso, cada um dos personagens ganha seus respectivos conflitos menores ante o conflito principal que é derrotar Rita e salvar o mundo. Jason tem uma relação problemática com o pai, Kimberly é mais vilã do que mocinha por conta de atitudes equivocadas que tomou com suas colegas, Billy é desconectado da realidade como um escapismo para não ter que lidar com a morte de um ente querido, Zack cuida da mãe doente terminal e Trini não consegue conviver com sua família normal enquanto encara sua homossexualidade ainda posta em dúvida.

Entretanto, isso tudo é estabelecido com nuances óbvias de qualidade entre os dramas dos personagens (Zack e Trini são os mais prejudicados com problemas de difícil resolução, além da exploração muito rasteira dando a impressão que os conflitos foram criados às pressas apenas para conferir mais camadas aos personagens). O que é extremamente irônico já que eles contam com os problemas mais interessantes e genuínos enquanto os outros recebem maior atenção por serem os verdadeiros protagonistas da trama.

Entre esse enorme problema criado pelos conflitos já clichês que nunca serão minimamente desenvolvidos apenas contando com uma chatíssima noite de confidências ao redor de uma fogueira, os roteiristas trabalham a descoberta e aprendizado dos Rangers com Zordon e Alpha 5 – um dos maiores acertos do texto em preservar a inocência e ingenuidade do robô que ganha mais nuances interessantes para expor toda a mitologia Ranger para novos espectadores.

Aqui, também é estabelecido outro enorme conflito que se alonga até por tempo demais: a dificuldade do quinteto em conseguir morfar. Todo o miolo é concentrado nisso, os forçando a conhecer uns aos outros e a si mesmos para entrar em sintonia. E acredite, muitos minutos são gastos nessa péssima jogada de desenvolvimento de personagens em fator físico e emocional, afinal o segundo ato deve compor mais de 70% do filme.

Porém, isso é falho ou tem uma moral equivocada já nunca os personagens correm atrás de resolver seus próprios problemas, mas apenas ficam expondo e conversando como se somente isso já solucionasse seus conflitos o que confere certo aspecto de telenovela juvenil. Nisso, todo o bom trabalho arquitetado no primeiro ato vai pelos ares graças a terrível enrolação e desenvolvimento muito rasteiro e previsível aplicado para os heróis. É justamente aqui que uma das características que havia impressionado até então começa a declinar: a qualidade dos diálogos.

Como dito anteriormente, Power Rangers é um filme pretensioso em seu início dedicando essa atenção louvável para definir características únicas para os personagens, além de apresentar uma comédia mais adulta. Tão logo chegamos na metade do filme, há diversas mudanças de tom: os personagens, principalmente Zack, agem com menos maturidade do que o apresentado até então, as conversas entre o grupo viram uma verborragia redundante e a comédia ganha tons infantilizados. Somente mesmo durante a porradaria do terceiro ato, no clímax, único momento que há uma sequência empolgante de ação, que o texto chega perto de acertar o tom do seriado.

Para o lado antagonista, as coisas são ainda piores. Toda atenção conferida no texto para tornar os protagonistas tridimensionais é esquecida com Rita Repulsa o que reforça esse problema de identidade do roteiro – ora pretensioso e dedicado (mesmo que nos clichês), ora preguiçoso e desleixado. Apesar de Elizabeth Banks levar a personagem muito a sério conferindo, inicialmente, um tom violento e sombrio para partir ao exagero da galhofa no final tornando sua performance bastante divertida, mas inconsistente. Em termos de texto, absolutamente nada consegue destacar a icônica vilã. A motivação é fraca, suas cenas são repetitivas, seu desfecho é digno de Pokémon, além de muito pouco ser revelado sobre a história da personagem ao contrário do que acontece com Zordon que é desenvolvido na medida certa – a relação sempre desconfiada dos Rangers com o cabeção virtual é interessante e rende bons atritos. Já com Rita, também não há muitos momentos que o grupo possa interagir com a vilã, mas os que existem são satisfatórios conseguindo remeter a pegada do seriado.

Centro de Comando

Apesar da maioria das falhas acontecerem por conta do roteiro, o diretor novato Dean Israelite também carrega parcela significativa de culpa. O problema mais óbvio é a inconsistência de tom entre o texto e a atmosfera criada em sua direção quase sempre soturna que aposta em fotografia escura de tons emudecidos passando longe da euforia visual saturada do seriado. Isso reside até mesmo quando o filme se torna mais leve durante o clímax.

Fora isso, há o gravíssimo problema de ritmo que esse filme possui. Após uma montagem de treinamento bem-feita que busca homenagear alguns filmes de kung-fu, o diretor falha em prender nossa atenção (mesmo que seu trabalho seja muito prejudicado pela embromação do texto). Parece que, depois disso, o próprio Israelite perde o interesse no filme – por exemplo, repare na decupagem da fatídica cena da fogueira que mais se assemelha com uma linguagem visual automática de games de RPGs modernos como Dragon Age Inquisition.

Graças a tudo isso, a pior coisa possível para acontecer em um filme atinge Power Rangers: o espectador simplesmente para de se importar com o que acontece na tela. A empatia criada pelo primeiro ato agitado e visualmente criativo, vai pelo ralo resultando em um perfeito desinteresse com o desfecho das histórias daqueles personagens. Logo, quando tem uma reviravolta “corajosa” que se resolverá previsivelmente, não há choque algum.

Por conta dessa tremenda transformação do miolo do filme, o terceiro ato também não se sustenta, apesar de conseguir te acordar – para visualizar bem, imagine uma viga de 200 metros sustentada por dois bloquinhos de papel ornamentados. Quando, enfim, os personagens morfam, não há excitação. A escolha de lugar para a primeira batalha contra os monstros porcamente inspirados de Rita Repulsa não colabora para a coreografia das lutas e nem mesmo o quebra-pau consegue empolgar por um motivo muito sólido: este Power Rangers parece ter vergonha de assumir as características tão amadas do seriado.

Israelite praticamente não incorpora qualquer aspecto da linguagem de encenação do seriado. As faíscas ocasionadas pela porrada são tímidas, quase imperceptíveis. Não tem pose galhofa de herói a la Power Rangers, mas tem pose de herói a la Marvel/DC. Não existem zooms, não temos explosões homéricas atrás dos personagens, as frases de efeito não dialogam com o lore da série, os mínions de Rita parecem ter saído de Noé, entre outras coisas.

Os poucos momentos que despertam a nostalgia baseiam-se em algumas frases icônicas como “cresça, meu monstro!” ou quando a música tema de Mighty Morphin toca por oito segundos quando, finalmente, o diretor faz o enquadramento clássico do seriado que acompanha os Zords disparando em direção à batalha – mas tirando o sentido épico do momento ao colocar piadas mal alocadas (isso também ocorre quando o Megazord é finalmente reunido).

Fora isso tudo, há um descompasso terrível também na trilha musical do longa baseada em muitos hits musicais. Em poucos momentos a trilha original de Brian Tyler respira e quando surge, também não consegue impressionar. Essa ênfase de trilha licenciada se torna um problema justamente pelo encaixo completamente inapropriado para cenas épicas de batalha que deveriam contar com a música original e não com Power de Kanye West – repare que toda bendita vez que alguma canção licenciada surge, quase sempre há uma grosseria técnica para tirá-la de cena.

Apesar de errar com coisas básicas e de suma importância, nem tudo é ruim no trabalho de Israelite. O diretor tem vontade de mostrar seu trabalho e para tanto consegue organizar raccords visuais bem-feitos e planos sequências interessantes como quando mostra uma perseguição de carro apenas pelo ponto de vista interno do carro perseguido – algo já visto no remake de A Hora do Espanto. Em sua decupagem, apenas há um grande excesso de planos holandeses que conferem, pela semelhança de local e tema, uma iconografia similar a de Thor, filme de 2011.

O visual, mesmo repetitivo e muito discreto, não tende a decepcionar também. Quando a ação surge, o filme também parece acordar, além de Israelite conseguir mostrar diversos acontecimentos e reações tanto dos Rangers, dos civis quanto dos vilões durante o clímax conseguindo um solidificar um trabalho de espacialidade excelente, algo tão bom quanto o que Michael Bay consegue fazer no primeiro Transformers.

Outro bom aspecto é a proeza em traduzir bem o microcosmo clichê do colegial americano, definir com facilidade os personagens bem atuados pelo elenco novato – o carisma de RJ Cyler (Ranger Azul/Billy) é contagiante. E, supreendentemente, há um trabalho valioso de simbologias no primeiro ato.

Quando o grupo adentra a caverna e é obrigado a mergulhar para chegar na nave de Zordon, o diretor e design de produção escolhem brincar com a gravidade e quebrar o eixo da normalidade e comum, indicando um renascer para os personagens assim que eles tocam o solo que rodeia a nave. A água pode simbolizar um batismo gentil que contrasta com a rigidez da rocha que eles despencam indicando novamente que a mordomia dos poderes também trará diversos problemas em suas vidas.

O mesmo ocorre com outro tipo de batismo que ocorre no clímax da obra, um batismo de fogo, onde enfim a transformação do grupo desconjuntado de adolescentes egoístas que se tornam verdadeiros heróis. Até há uma boa atenção com o figurino que sempre coloca as cores correspondentes de cada Ranger no vestuário cotidiano dos personagens, de modo bastante sutil, por sinal.

Enquanto trabalha com simbologias consideravelmente inteligentes nesses primeiros minutos do filme, não é possível dizer que o bom trabalho permaneça por muito tempo. Como havíamos dito na nossa crítica em vídeo, há uma cena na qual a camiseta de Kimberly traduz o que os personagens sentem naquele momento: era tudo um sonho. Essa cafonice literal destoa completamente do que Israelite propõe evidenciando esses problemas de tom que o filme sofre.

Os Power Rangers têm o Poder?

Fazia um bom tempo que eu não me deparava com um filme tão complicado como este Power Rangers é. Ele é tampouco bom, mas também não é uma obra de todo ruim. Essa inconsistência de atmosfera, tema, texto, direção, música e ação tornam esse longa uma incógnita sobre qual público ele realmente deseja atingir e, logo, a recomendação do texto torna-se ainda mais complicada.

Não creio que os fãs ficarão inteiramente satisfeitos, principalmente por esse medo do filme em assumir as características e pieguices do seriado – afirmo para vocês que isso de modo algum seria um problema para a diegese da obra. Também é um filme muito bobo para espectadores mais velhos que certamente já viram essa mesma estrutura narrativa e de personagens em diversos outros filmes, principalmente nos últimos anos que Hollywood bombardeia o mercado com inúmeras adaptações cinematográficas de filmes inspirados em nerdices.

E também não é um filme que as crianças irão se divertir já que a ação demora muito tempo para acontecer resultando em um chá de cadeira para espectadores mais jovens que mal vão conseguir ter empatia com os conflitos dos personagens graças a essa enrolação insustentável. O payoff do clímax é curto demais e bastante quadrado deixando a impressão que todo o tempo investido nessa história é pouco recompensado.

Então, já avisamos, se realmente está perdendo o sono de tanta ansiedade com Power Rangers, se informe com o que vai encarar antes: uma boa mistura de Clube dos Cinco, Poder Sem Limites e outros filmes Marvel com Transformers, mas que é prejudicada excessivamente por seu miolo pretensioso que almeja trazer personagens complexos, mas que se tornam completamente descartáveis graças ao prolongamento desnecessário de um desenvolvimento muito redundante que acaba não somente prejudicando os heróis, mas o filme inteiro. Principalmente na sua alma: a ação uniformizada colorida cheia de pirotecnias, poses ridículas e muitas faíscas.

Power Rangers (Power Rangers, EUA – 2017)
Direção:
Dean Israelite

Roteiro: John Gatins, Matt Sazama, Burk Sharpless, Michele Mulroney, Kieran Mulroney, Haim Saban
Elenco: Dacre Montgomery, Naomi Scott, RJ Cyler, Ludi Lin, Becky G, Elizabeth Banks, Bryan Cranston, Bill Hader, Matt Shively, Cody Kearsley
Gênero: ação, aventura, super sentai, ficção científica
Duração: 124 minutos.

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Publicado por Matheus Fragata

Editor-geral do Bastidores, formado em Cinema seguindo o sonho de me tornar Diretor de Fotografia. Sou apaixonado por filmes desde que nasci, além de ser fã inveterado do cinema silencioso e do grande mestre Hitchcock. Acredito no cinema contemporâneo, tenho fé em remakes e reboots, aposto em David Fincher e me divirto com as bobagens hollywoodianas.

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