Crítica | Dominação - Um filme ruim de possessão
Muitos foram os filmes de terror que já trataram sobre o tema do exorcismo. Produções como “Invocação do Mal” ou clássico absoluto “O Exorcista”. Dominação (Incanarte) que estréia essa quinta (5) é um exemplo que o tema ainda tem muito a ser explorado.
Provavelmente muitos irão dobrar o nariz para ele. Vão dizer que é parado, não dá susto nem medo, que a história é chata entre outros argumentos que já ouvimos falar quando pedimos dicas de algum filme de terror para assistir. A questão é: um filme de terror precisa dar susto ou dar medo para ser bom?
Sem entrar nessa prolongada discussão Dominação cumpre seu papel ao contar uma história se não original diferente. É sim um bom filme e deve ser apreciado sem o comparar a outras produções pops americanas do gênero como o já citado invocação do mal.
Aaron Eckhart interpreta Dr. Ember é um homem preso á uma cadeira de rodas que trabalha não exorcizando, mas como ele próprio diz expulsando entidades demoníacas que aprisionaram a mente do possuído em sonhos que retratam o desejo da pessoa. Uma ilusão em que é vivenciado como se fosse realidade, mas na verdade é um truque do espírito maligno para prender a alma da pessoa para sempre.
Dr. Ember procura por um espírito chamado Maggie. Essa entidade causou uma grande fatalidade envolvendo sua família e o deixou paraplégico e agora passa a possuir um garoto de 11 anos.
Ele então é chamado pelo vaticano que já tentou de várias formas realizar um exorcismo, mas falhou em todos os momentos. Já que a religião não funcionou então eles partiram para o lado científico. Explicam a situação para ele e em um primeiro momento não aceita a missão, mas depois de saber que Maggie é o espírito em posse do garoto resolve participar do expurgo.
Esse é o diferencial da história. Dr. Ember tem um método nada convencional de entrar na mente das pessoas. Com fios ligados em sua cabeça e levando um pertence particular do possuído ele confronta a pessoa em seus pensamentos e abre seus olhos para o que realmente está acontecendo, que aquilo não é real e sim uma ilusão. Dr. Ember é uma espécie de Professor Xavier Demonologista.
Parece que as produções do gênero perceberam que não adianta ter apenas uma boa história e bons sustos. Um elenco qualificado melhora qualquer longa. Além de Aaron Eckhart o filme conta com a presença de Carice Van Houten a feiticeira do Deus do Fogo em Game of Thrones e Catalina Sandino que já participou de longas como “O Amor nos Tempos de Cólera” e “Che”.
A personagem de Carice é fraca, apagada e não foi muito desenvolvido. Poderiam ter estruturado melhor a mãe do garoto de 11 anos mostrando seu drama particular, mas o foco ficou todo em cima do Dr. Ember. Uma atriz tão talentosa merecia melhor destaque. Já Aaron Eckhart parece estar tentando pegar projetos novos que fogem de sua vasta filmografia e ele faz uma boa interpretação de seu personagem.
Quanto a direção ficou a cargo do jovem Brad Peyton (36 anos) que dirigiu o blockbuster catastrófico “Terremoto: A Falha de San Andreas”. Talvez se ele tivesse mais tempo para desenvolver não apenas a história, mas seus personagens e suas tramas o filme seria mais interessante. Ele sabe onde colocar a câmera e seu enquadramento é bom. Dominação não é ruim e é sim um bom entretenimento.
Dominação (Incarnate, 2016, EUA)
Direção: Brad Peyton
Roteiro: Ronnie Christensen
Elenco: Aaron Eckhart, Breanne Hill, Carice van Houten, Catalina Sandino Moreno, David Mazouz, Emily Jackson, Emjay Anthony, Karolina Wydra, Keir O’Donnell, Mark Henry, Mark Steger, Matt Nable, Petra Sprecher, Seaonna Chanadet, Tomas Arana
Gênero: Terror
Duração: 88 min.
https://www.youtube.com/watch?v=FE4yfCZPAKs
Review | Star Wars: The Force Unleashed II
Obs: contém spoilers do game anterior
Graças ao imenso sucesso de The Force Unleashed, a LucasArts já foi sábia em encaminhar uma sequência que foi lançada dois anos depois da estreia da franquia. Também cercado por hype, Force Unleashed 2 foi um título que prometeu muito e cumpriu muito pouco não conseguindo superar a sombra do primeiro jogo.
A má recepção do último game da LucasArts repercutiu bastante na época do lançamento do game. Entre as principais reclamações da crítica especializada e dos jogadores assíduos, a que mais se destacava em uníssono era: o jogo é curto demais. É de fato é.
The Force Unleashed 2 é um game aquém de seu potencial ao mostrar como a LucasArts trocou os pés pelas mãos em 2010.
Guerras Clônicas?
O roteiro é novamente capitaneado por Haden Blackman, o mesmo autor do primeiro jogo. O objetivo da história é fazer com que ela parece bastante independente da anterior, apesar de não conseguir esse feito integralmente, embora seja difícil se perder no roteiro ainda mais simples deste jogo.
Com toda a certeza, a principal mazela de Force Unleashed 2 é sua história que definiu a pífia duração do jogo – é possível zerar o game em quatro horas. Dessa vez, encarnamos novamente Starkiller. Darth Vader, ainda obstinado a conseguir um aprendiz perfeito que obedeça suas ordens sem questionar a moralidade das missões, “clona” Starkiller através do DNA de seu cadáver.
Testando o clone mais promissor, Vader ordena que Starkiller mate um dróide disfarçado de Juno Eclipse, o interesse romântico do herói no primeiro jogo. Por conta de alguns insights de seu corpo original ou de suas memórias suprimidas, o “clone” de Starkiller não consegue ferir o robô e escapa do confinamento de Vader.
Fugindo de Kamino, o planeta especializado na produção de clones, Starkiller parte em busca de reencontrar General Kota e Juno para redescobrir seu verdadeiro papel na guerra contra o Império.
Se eu falasse que o roteiro praticamente acaba em apenas duas viradas após isso, ficariam incrédulos, mas realmente é o que acontece. Como jogo, Force Unleashed 2 é basicamente um espirro. Um espirro muito divertido.
No storytelling, Force Unleashed 2 é basicamente um fracasso, não conseguindo agregar em absolutamente nada para o ex-cânone de Star Wars. A única discussão que envolve é a desconfiança se Starkiller realmente é um clone ou se ele de fato é o protagonista do jogo anterior que sobreviveu depois da luta contra Darth Sidious.
De resto, muito pouco se salva, apesar da história manter seu interesse aceso. Nunca temos um desenvolvimento nítido para o personagem que basicamente não questiona sua natureza como clone. Não há interesse em descobrir se ele é mesmo o Starkiller original ou algo do tipo. Nem a relação com Vader ou os outros personagens como Kota ou Yoda torna-se memorável. Aliás, Kota vira um personagem irritante por sempre tentar desmotivar o resgate de Juno que basicamente vira um mcguffin descarado para conferir propósito em uma jornada sucateada.
Ainda dividindo a conclusão entre finais bons e ruins, a história de Force Unleashed 2 não consegue nem mesmo se fechar satisfatoriamente recorrendo à pretensão de um terceiro jogo.
Apesar de raquítica, como disse, a história não é detestável, mas se torna basicamente um filler sem nenhum propósito.
Reformas na Força
Se a história falha consideravelmente, a LucasArts ouviu os fãs e reformou bastante a mecânica do jogo em sua sequência. Muita da atmosfera excepcional da física de partículas e colisões foi preservada, mas também diversos elementos foram aprimorados. Jogar The Force Unleashed 2 é uma dádiva de tão fluido que é seu gameplay.
A principal novidade é a mudança no sistema de combos e combate. Dessa vez, Starkiller porta dois sabres de luz tornando o game ainda mais rápido. Podemos misturar alguns poderes da Força para desferir ao longo dos golpes sem quebrar a sequência como usar um empurrão embutido na lâmina ou disparar raios sith através da espada. Com a manutenção da esquiva potencializada pela Força, o combate é extremamente dinâmico. Basicamente se torna o melhor combate de hack n’ slash que já vi em um jogo do tipo.
Os poderes da Força foram igualmente aprimorados. Digamos que eles têm mais “peso” ao serem lançados. Tanto o empurrão quanto o raio e o force grip, o “agarrão”, agora se comportam com mais violência ao interagirem com inimigos e cenário. O raio, em seu último upgrade, consegue incendiar os inimigos, além de iluminar boa parte do cenário. Já o force grip foi consertado significativamente. Agora é mais fácil pegar inimigos e objetos para lançarmos aos ares. Porém, a adição mais fantástica do grip é o massacre dos TIE Fighters que se comprimem até virarem uma bola de aço quando usamos a Força.
O sistema de evolução do personagem também é menos complexo. A árvore de habilidades foi reduzida apenas para aprimorar a Força e seus poderes. O sistema de compra é feito pelos pontos adquiridos ao cumprir objetivos ou destruir oponentes. Para aumentar as barras de vida e força, é preciso pegar alguns holocrons espalhados pelas fases.
Aliás, ainda é preservado, em escala reduzida, a customização de sabres e vestimentas do personagem. A cada nova fase, um figurino novo é desbloqueado e os cristais coloridos – agora com adicionais já embutidos na cor, estão espalhados em holocrons. É possível combinar sabres de duas cores distintas ao mesmo tempo.
Redução a custo de?
Em entrevistas na época, os produtores do game já diziam que teríamos menos oponentes no jogo se comparado ao primeiro título. E realmente é um fato. A redução de inimigos é gritante. Não enfrentamos alienígenas em basicamente momento algum. Os oponentes entram no rodízio de 3 variações de troopers, guardas reais com sabres vermelhos, guardas sensitivos à Força, AT-STs, um andador que dispara foguetes e lança chutes e dois outros andadores que lançam chamas ou vapor de gelo. Basicamente, é isso o que deixa mais evidente o quanto o jogo é repetitivo.
O game não conta com a variação de objetivos presente no 1 e nem com as divertidas caçadas aos Jedi que marcaram tanto as lutas contra chefes de fase. Em termos de game design, The Force Unleashed 2 é uma decepção tremenda também. A LucasArts, atenta a novos modelos de gameplay, tentou conferir vislumbres mais inspirados para o jogo. Uma pena que essas seções mais “roteirizadas” nitidamente inspiradas em Uncharted só aparecem duas vezes e se repetem em mais outras duas, tornando a grande novidade algo absolutamente broxante.
O mesmo acontece com o level design, muito mais empobrecido ante o jogo anterior. A diversidade de cenários não é tão expressiva como antes, já que em diversos momentos é possível notar locais reciclados ao longo do progresso linear das fases. Ao longo do progresso, temos apenas 4 ambientes diferentes sendo que somente 3 são verdadeiramente abertos para a jogatina: Kamino, Cato Neimoidia e a nave Salvation.
Kamino e Neimoidia são os cenários mais interessantes. Kamino é recriada com bastante acuidade fílmica apresentando uma nova dimensão do planeta chuvoso dos clones. Já Neimoidia possui cenários majestosos por conta de ser uma cidade içada aos ares constituída por pontos, arranha-céus e cassinos.
Já nas fases destinadas à Salvation, a direção do jogo toma um rumo inesperado e mais interessante ao fazer o game flertar com a atmosfera de survivor horror como em Dead Space. A atmosfera assustadora é garantida pelo rastro de destruição que acompanhamos na Salvation, além da iluminação ser melhor elaborada, trabalhando com mais sombras e escuridão. É justamente aqui que um dos pontos mais altos do jogo se faz notado: o estupendo design de som.
Os mesmos objetivos, novas texturas
Mesmo assim, com as três mudanças de ares em cada fase, o jogo permanece bastante repetitivo pedindo os mesmos objetivos, sempre. Basicamente, matamos muitos oponentes indo do ponto A para o B, resolvemos um puzzle simples para abrir um portal e retomamos a matança até chegar no chefe de fase. Dessa vez, não é possível percorrer o nível inteiro livremente matando pouquíssimos troopers. A LucasArts corrigiu isso recorrendo aos “portais” que só liberam após limparmos aquela seção da fase. Esse entrave só contribui para deixar mais evidente a repetição massiva em um jogo de somente 4 horas.
O exagero também retorna em The Force Unleashed 2. Em busca do épico, a LucasArts comete os mesmíssimos equívocos de outrora. Somente um dos três chefes de fase tem a duração correta de batalha por conta das mudanças de estratégia que assumimos a cada proporção de dano que o Gorog recebe na arena gladiadora de Neimoidia. É uma luta fascinante e bastante divertida em totalidade.
Porém, as outras duas, contra o Walking Terror, um robô-aranha protegido por escudos, e contra Darth Vader, decepcionam bastante. A primeira, em Salvation, é um porre de ser concluída por conta da burocracia exigida para desativar os escudos do droide. Fora o fato dele lançar os pequenos robozinhos que drenam energia a todo o momento. Com bastante paciência, é possível derrotar o Terror.
Já com Vader, a luta mais intensa do game, o time comete o exato mesmo erro do chefe anterior. A batalha é divertida, em partes, porém muita coisa é comprometida por conta da extensão colossal da luta. É como se os desenvolvedores estendessem ao máximo esses trechos para render alguns minutos a mais para a duração ridícula do jogo.
Com o lorde sith, na primeira metade da luta, temos a insistência em jogar diversos clones não finalizados contra o jogador. Alguns, sensíveis à força, outros que usam sabres – reciclagens de outros oponentes prévios do jogo. Com Vader pulando de plataforma em plataforma, além disso, a luta se torna maçante pela repetição dos elementos: combater clones, jogar tanques em Vader, pular para outra plataforma e, enfim, batalhar contra o vilão. Chato. Repetitivo.
Um precursor visual
Diante de tantas roubadas feitas pela LucasArts em game design e das más escolhas tomadas pelos fatores já expostos, é impressionante a evolução da engine gráfica própria da desenvolvedora entre os dois jogos com apenas 2 anos de diferença.
Não é exagero dizer que Force Unleashed 2 é um dos dez jogos mais belos da geração passada. Aliás, os gráficos conseguem se sustentar até hoje, caso jogue a versão de PC no setting máximo. A riqueza de detalhes, cor e saturação adequada deixam qualquer um fascinado, além das texturas ricas que estampam o mundo do game. Desde aço derretido, roupas molhadas, oscilações nos sabres de luz, na física da chuva reagindo ao vento, cenários e personagens, enfim, é de deixar qualquer um maravilhado.
Essa perfeição técnica realmente consegue dar um grau de imersão e realismo nunca vistos até Star Wars: Battlefront. Nos sentíamos verdadeiramente dentro do universo exuberante de Star Wars. Uma pena que o visual estupendo seja sacrificado por cenários pouco inspirados e reciclados.
A Força Moribunda
Diante do jogo anterior, é bizarro notar o retrocesso deste game que marca o epitáfio da gloriosa LucasArts. Como uma equipe tão criativa que conseguiu realizar um dos melhores jogos da franquia também deu origem a um dos jogos mais decepcionantes de uma geração inteira? Em vez de ser um retorno apaixonado, The Force Unleashed 2 mais pareceu um retorno amargo e obrigatório para dar prosseguimento a um projeto de franquia milionária. Tanto que o terceiro game já estava encaminhado até ser limado com o fechamento da produtora.
De modo algum Force Unleashed 2 é um jogo horroroso ou deplorável. Ele diverte até certo ponto, apresenta melhorias de mecânicas necessárias, além de contar com uma parte técnica exuberante com seus gráficos e desenhos sonoros. Porém, tudo vai por água baixo diante da inacreditável repetição presente em um jogo de míseras quatro horas.
Agora cabe à EA Games em resgatar o saudoso espírito dos jogos da LucasArts. Nada mais propício para este 2017 que promete muitas novidades para a franquia. Uma nova esperança.
Pontos positivos: excelente desenho de som, gráficos de ponta, gameplay fluido excepcional, novo sistema de combos, menus mais intuitivos e rápidos, mudanças interessantes de atmosfera, simplificação da árvore de habilidades, boa dublagem, possibilidade de desmembrar inimigos com golpes de sabres de luz, novos poderes como Jedi mind trick e Jedi Rage, novas texturas e animações para os poderes da Força.
Pontos negativos: inacreditavelmente curto, repetitivo e pouco inspirado, lutas contra chefes se alongam além do necessário, pouca variação de inimigos, intensa reciclagem de cenários, história filler, personagens perdidos que traem sua essência, poucos planetas e cenários, trilha musical inexpressiva, final broxante, bugs ocasionais, versões de consoles e pcs sem todo o conteúdo – versão de Wii tinha fases adicionais e mudanças de estrutura mais interessantes.
Crítica | Passageiros (2016)
Como muitos outros filmes de romance que vimos por aí, Passageiros se guia a partir de uma pergunta: devemos aceitar a solidão? Bem, a pergunta, pelo menos, é a mesma nesses filmes. Porém, o contexto em Passageiros a leva ao pé da letra. Como os trailers não explicam corretamente a premissa, deixo um aviso de possíveis spoilers antes de dar a sinopse. Se quiser ter uma "surpresa" logo ao início do filme, sugiro que leia a crítica após assistir ao filme. Coloco entre aspas pois não é uma surpresa intencional, mas sim consequência da explicação incorreta dos trailers.
Contextualizando, então: a espaço-nave Avalon, num futuro distante, transporta 5 mil passageiros em sono criogênico em uma viagem que durará 120 anos ao todo. O destino é o planeta Homestead 2, futura colônia dos mesmos passageiros. 30 anos de viagem já se passaram. Após atravessar um campo de asteroides, a nave apresenta problemas e uma das cápsulas criogênicas se abre, acordando o mecânico James Preston, interpretado por Chris Pratt (de Guardiões da Galáxia e Jurassic World). Após certo tempo explorando a nave, Jim percebe que apenas ele acordou, 90 anos antes de chegar a seu destino. As cápsulas não podem ser reativadas, mensagens demoram décadas para serem enviadas. Ele se encontra sozinho. Isso é, se não contarmos o bartender robô (que diz ser um androide), interpretado por Michael Sheen (da série Masters of Sex). Jim passa um ano solitário, cada vez mais cansativo. Conversa apenas com um robô sem pernas, o que parece divertido para nós do século 21, mas que para pessoas do futuro distante deve ser rotineiro.
Jim está sozinho, cada vez mais depressivo, alcoólatra e, muito provavelmente, doido. Após tentar cometer suicídio, se depara com uma mulher, Aurora Lane, interpretada por Jennifer Lawrence (de Jogos Vorazes), que ainda se encontra adormecida em sua cápsula. Jim fica obcecado por sua figura, pesquisando o máximo que pode sobre ela. Um stalker do futuro, por falta de um melhor termo. Sentindo o peso da solidão e da situação em que se encontra, acaba no dilema central do filme: morrerá sozinho ou condenará outra pessoa ao mesmo destino, para que viva junto dele? Como Jennifer Lawrence não interpreta uma personagem adormecida nos trailers, obviamente Jim acorda Aurora. Conta a ela que sua cápsula também se abriu acidentalmente, para que não acabe hostilizado. A relação dos dois evolui e eventualmente se torna um romance.
Considerando o que foi mostrado nos trailers e em outros materiais promocionais, a sinopse que acabei de dar parece ser de outro filme. Honestamente, é outro filme. O filme que temos é problemático. Mas os principais problemas são, de fato, no "fazer-cinema". A questão do consenso (ou falta dele) no início do romance mostrado é sim problemática, mas é abordada pelo próprio filme. De maneira atrapalhada e inconsistente, mas abordada. Passageiros é um caso de muitas peças competentes e produto final decepcionante. Pratt e Lawrence estão visivelmente dedicados aos seus papéis e compartilham certa química, mesmo que seus personagens sejam pouco desenvolvidos, e o filme traz efeitos especiais muito bem realizados que, infelizmente, não são muito bem aproveitados. Percebe-se então que para cada qualidade, se tem um ou mais problemas. Irei por partes, então.
A direção de Morten Tyldum, cujo filme mais recente é o famoso indicado ao Oscar O Jogo da Imitação, é genérica, sem qualquer marca de personalidade. Já provou ser um diretor competente no passado, o que gerou expectativa para esse. No entanto, não faz nada de interessante com o verdadeiramente interessante material que tem. Seu trabalho é tão genérico que uma análise mais aprofundada é difícil de realizar.
A fotografia, de Rodrigo Prieto (de Silêncio, novo filme de Martin Scorsese, ainda não lançado), enquadra bem o ambiente, valorizando a competente direção de arte e design da obra e fazendo com que as cenas mais movimentadas sejam fáceis de seguir. O 3D, ao menos na sessão vista, também é razoavelmente valorizado. Por outro lado, Prieto não faz nada de criativo com essas mesmas cenas de ação ou efeitos, num visual extremamente sanitizado e já esperado do gênero "filme espacial que não é Star Wars ou Star Trek".
Os principais problemas, roteiro e trilha sonora, estão relacionados diretamente ao grande equívoco do filme: o tom. Um dilema como o de Jim e a sua análise caberiam bem mais em um produto mais sombrio ou melancólico, mas não é o que acontece. O roteiro de Jon Spaihts (de Doutor Estranho), se encontrou na "Black List" por alguns anos, uma lista de roteiros promissores que circulam por Hollywood. Realmente, o argumento é promissor. Também se tem a construção de um mundo interessante, seja pela divisão entre classes sociais pronunciada nas máquinas da nave (a qualidade da comida é dividida pela hierarquia social/monetária dos passageiros) ou a burocracia da empresa Homestead (dona da nave). Mas, novamente, a ideia principal, da solidão, é mal servida por um roteiro cheio de coincidências, pieguices e conveniências que chegam no último minuto.
E a trilha sonora? Provavelmente você está pensando: como uma trilha sonora pode ser um dos principais problemas de um filme? Bem, em Passageiros temos um exemplo. O trabalho de Thomas Newman (grande compositor de Beleza Americana), mesmo que competente, é açucarado e intrusivo demais, atrapalhando diversos diálogos entre Jim e Aurora, onde as atuações de Pratt e Lawrence são, na verdade, bem sutis e equilibradas. Parece tentar guiar as emoções do espectador. Isso não é um problema em si, afinal, as grandes trilhas de John Williams guiam nossas emoções também. Em Passageiros, parecem guiar para a direção errada, criando uma sensação de quebra entre a história e a maneira como é narrada. A direção sem sal e roteiro ambíguo podem ter contribuído aos erros de Newman.
A ética do filme, a questão problemática do consentimento na relação explorada não são, ao meu ver, os principais problemas do filme. Essa é a temática do filme e é, de fato, abordada ao longo da obra. Se admite o egoísmo de Jim ao acordar Aurora e se tem uma reação a essa escolha. Porém, isso tudo é realizado de maneira rasa, de tom inconsistente, que eventualmente perde de vista tal questão da solidão e consentimento, se tornando ao mesmo tempo em um romance açucarado e em uma ficção científica tantas vezes repetida. O caso é simples: o filme não é tão bom.
Passageiros (Passengers, 2016, EUA)
Direção: Morten Tyldum
Roteiro: Jon Spaihts
Elenco: Chris Pratt, Jennifer Lawrence, Michael Sheen, Laurence Fishburne, Andy Garcia.
Gênero: Romance, Suspense, Ficção Científica.
Duração: 116 min
Crítica | Moana: Um Mar de Aventuras
A Disney segue por intensa reformulação apostando em caminhos cada vez menos ortodoxos e audaciosos. Zootopia e Detona Ralph são bons exemplos de como o estúdio está procurando mais diversidade em suas animações, seguindo abordagens diversificadas próximas as da Pixar. Desde a Renascença, período marcado pelos sucessos do estúdio nos anos 1990, a Disney ousou em explorar outras culturas que fugissem da sua ênfase em obras inspiradas por contos anglo-germânicos europeus.
Os novos ares árabes, africanos e orientais renderam histórias magnificas como Mulan, O Rei Leão e Aladdin. Com Moana é a primeira vez que vemos a Disney visitar a Polinésia. A escolha combina com a vertente ousada dos diretores Ron Clements e John Musker, os responsáveis pela princesa afrodescendente de A Princesa e o Sapo, pegando a temática riquíssima de Nova Orleans.
A dupla traz toda a exuberante cultura do arquipélago do sul do Pacífico para ilustrar uma história cheia de cores explosivas e bons significados. Moana inicia assim como qualquer outro conto de fadas da era de ouro do estúdio: através da longa exposição sobre a mitologia e do evento base que moverá toda a jornada, em flashback.
A Odisseia de Moana
Maui, um semi-deus, rouba uma pedra mística que oferece vida para todas as ilhas do Pacífico. Porém, ao fazer isso, o herói condena toda a vida do arquipélago em uma onda de corrupção e podridão agressivas que destroem tudo o que há pelo caminho. Antes de reparar seu erro fatal, Maui é exilado e a pedra some no fundo mar.
Anos depois, na ilha Motunui, Moana, ainda bebê e filha do líder da tribo, é escolhida pelo Mar para salvar toda a Polinésia da corrupção ameaçadora. Porém, seu pai, o chefe Tui, a proíbe de chegar próxima do oceano. Ele quer que sua filha vire a líder que a vila merece. Moana cresce, e seu destino a chama cada vez mais.
Completamente apaixonada pelo oceano, o mar apresenta a rocha para Moana, a invocando para a jornada. Sem resistir, a princesa navega pelos mares em busca de Maui para ajudá-la a reparar os erros do semi-deus retornando a pedra em seu local de direito, restaurando todo o equilíbrio do ecossistema, afinal, a podridão chegou em Motunui devastando toda a fertilidade de sua terra.
O que sempre me impressiona nos filmes Disney é a capacidade de organizar o pensamento de tantas cabeças pensando na mesma história. O argumento de Moana foi escrito por sete pessoas, incluindo seus quatro diretores. Tudo organizado no tratamento de Jared Bush. Como podem perceber, é muita gente para elaborar uma narrativa tão simples de jornada do herói básica, mas com requintes modernos sobre o papel feminino, tradição, herança cultural e determinação.
Mensagens importantes e valiosas para as novas gerações que a Disney encantará por anos a fio. Um dos maiores méritos do texto de Moana é justamente investir no estabelecimento da mitologia polinésia e da história de sua protagonista já inferindo todos os conflitos que guiarão a trama.
Vemos a personagem dividida entre cumprir seu papel social como a próxima governante de Motonui, algo imposto pelo patriarca da vila, enquanto lida com sua imensa vontade em explorar o mundo, navegando pelo Pacífico. Os conflitos de Moana são bem imediatos e bem contornados: não demora muito para que o Chef Tui se oponha vorazmente com a vontade da filha em explorar o oceano. O que poderia ser gratuito e fajuto, rende uma boa motivação – importante citar que muitos dos trabalhos de motivação são clichês.
Servindo de contraponto ao pai, a avó de Moana a encoraja a cumprir seu destino. Logo, a relação dela com os dois personagens é eficaz, mesmo que ligeiras. Como em todo musical Disney, as músicas servem de síntese para expor os desejos internos de Moana e Maui. É exposição, sim, mas de uso inteligente, além da qualidade das canções serem excelentes.
Quando Moana parte, o roteirista não se alonga para apresentar novamente Maui para o público. Na relação dos dois, é onde o filme brilha de modo muitíssimo inteligente. Os diálogos, sempre adequados ao feeling da cena, divertem pela dinâmica ligeira entre eles. Maui, por ser um semi-deus com poderes mágicos graças ao uso de seu gancho, é arrogante, convencido e orgulhoso servindo de contraponto para Moana, ainda insegura e ingênua em encarar os diversos perigos da jornada.
Trabalho básico entre opostos, mas com uma jogada bastante inteligente. Maui, por ser muito poderoso, sempre põe em cheque a competência de Moana por ela ser humana e fraca. Não é preciso pensar muito para ver que se trata de uma metáfora para as constatações machistas do personagem. É evidente que o confronto é bem trabalhado e, conforme o filme avança, as certezas de Maui são postas em cheque.
Outra relevância do roteiro é enxergar na completa desnecessidade de um núcleo romântico. Creio que esse seja o primeiro filme da marca Princesas que deixe isso ausente, já colocando outra forma de pensamento sobre as personagens femininas da Disney, cada vez mais independentes e aventureiras. Isso é frisado com certa frequência, pois Bush usa linhas de diálogo que escancaram um exercício metalinguístico dessa animação. Ou seja, o texto tem consciência de que se trata de uma narrativa de princesas em um filme Disney.
Friso que isso nem chega perto de ser panfletário. A ordenação é bem inteligente em trabalhar polemicas com naturalidade e humor. Também é inteligente a solução de seu clímax na aventura, subvertendo a figura do antagonista de modo mais profundo do que já visto em Frozen.
Talvez, as fraquezas do longa estejam nos excessos e na estrutura previsível e manjada ao extremo. Como o longa tem insights valiosos e trabalhe com uma jornada do herói muito similar a de Odisséia, de Homero, a narrativa derivada não incomoda tanto. O personagem do Galo, um alívio cômico, é usado demais com piadas repetitivas, além de um diálogo sofrer um anacronismo miserável.
Fora isso, não muito com o que reclamar de Moana. É um filme que satisfaz imensamente.
E o faz apostando em uma aventura expansiva e épica enquanto centra seu núcleo em esferas intimistas e delicadas, cativando pela quantidade seleta de personagens muito cativantes. Destaque para a avó de Moana, também trabalhada em clichés vistos em Pocahontas e Kung Fu Panda, porém, novamente, temos essa consciência tão valiosa sobre as limitações do filme.
Diretores Antropólogos
É impossível se desapegar de certas tradições. A Disney frisa isso em todos os filmes, justificando o longo trabalho de produção de cada um dos longas. Para a empresa, é preciso conhecer de perto a realidade do tema que será retratado na ficção para ser o mais acurado possível. Com Moana não é diferente.
A dupla Clements e Musker viajaram por diversas ilhas da Polinésia para compreender a cultura local, aplicando o conhecimento transcendental a favor da narrativa. Inegável notar isso em tela. O contato com a natureza, a importância da família, da cultura, da herança, de seu papel na sociedade é frisada compartilhando a cultura local seja com tatuagens, com os hábitos alimentares, na arquitetura fidedigna dos barcos, dos adereços, da decoração apropriada, da mitologia e religião e, principalmente, no caso do oceano que vira um personagem ativo na obra, seja como elemento dramático ou cômico.
É uma dualidade encantadora de pavor, medo, paixão, humor e alegria. Nisso, ambos sabem trabalhar bem. Apesar do oceano ter escolhido Moana para a aventura, não significa que ele é responsável por ela – logo o filme se livra de muitos problemas de conveniências narrativas e deus ex machina.
A voz da Polinésia
Até mesmo as escolhas dos atores são convenientes com o tema. Dwayne Johson, descendente de povos originários do arquipélago da Polinésia, arrasa com Maui, conseguindo atingir a potência vocal necessária para elevar a imponência do personagem. Até arrisca em uma sequência de canto excelente onde os diretores apresentam um recuso sensacional que dura no restante do filme: o uso das tatuagens de Maui, animadas tradicionalmente com traço único, como elemento narrativo catártico e moral para o personagem – tem a função de side kick como Olaf, Grilo e Mushu.
O maior destaque fica para a protagonista Auli’i Cravalho, havaiana, que oferece uma explosão de vida para Moana. É uma voz um pouco rouca que combina com os sentimentos refreados da personagem, além de ambas serem adolescentes – os pitis são genuínos. O talento musical também é destaque, superando o desempenho da cantora oficial em How Far I’ll Go.
Fotorrealismo abundante, técnica elegante
Com O Bom Dinossauro, a Pixar alçou o fotorrealismo em animações feitas por computação gráfica em outro patamar. Moana é o correspondente no feito para a Disney. O conceito é similar. Os cenários são bastante realistas, de cores saturadas com iluminação impressionante e de texturas sinestésicas. Os diretores valorizam o trabalho dos artistas e clamam por diversos desafios para os animadores. Esse é, possivelmente, o melhor mar animado que tenhamos visto em filmes do gênero. O que justifica completamente a escolha da computação gráfica.
Seria uma pena notar que toda a riqueza visual do filme talvez fosse prejudicada se optassem pela animação tradicional. Não somente pela qualidade da animação, das artes conceituais, dos cabelos volumosos ou da intrincada tecnologia de iluminação exemplar, mas principalmente na modelagem dos protagonistas que carregam traços do povo indonésio.
Esse é um filme mais apressado em termos visuais. Os diretores apostam em muitos planos com variedade tremenda de linguagem cinematográfica, além de esbanjarem criatividade para as sequências musicais com destaque para Shiny, que é uma cena bem mista em termos de qualidade. Visualmente ótima, mas muito dilatada com uma música a la David Bowie que destoa bastante do tom das outras – há uma justificativa, mas é estranho de toda a forma.
Particularmente, mesmo que seja um filme abundante aos olhos, os dois não demonstram muitas jogadas visuais inteligentíssimas ou particularmente sensíveis. É tudo correto e condizente, sombrio e contemplativo quando necessário e efervescente, pulsante em outros momentos. A única jogada espetacular é a solução visual lindíssima para uma tragédia que atinge profundamente a vida e o emocional da personagem. Uma sequência de primeira catarse digna de aplausos.
Aliás, os dois consegue se valer bastante de metáforas com o mar para representar o vai-e-vem emocional da personagem. Infelizmente, diria que a direção de A Princesa e o Sapo é um pouco mais criativa nesse tipo de riqueza metafórica, mas ainda se trata de um trabalho exemplar.
Mar de Aventuras
Apesar de seu roteiro se sustentar em arquétipos clássicos e conflitos manjados, além de se movimentar por conta de um macguffin, Moana é uma animação nada menos que excelente. Cativa pela sutileza, pelo carisma impressionante e da própria qualidade visual soberba. O cuidado antropológico e cultural é vasto, além de contar com uma trilha musica digna de Oscar captando completamente a atmosfera da Polinésia. Não somente por esses cuidados, mas por possuir soluções narrativas para repensar a figura do antagonista e da mulher nos filmes de princesa do estúdio.
Moana é a melhor Odisseia que seu filho pequeno pode ver e, com certeza, as mensagens adequadas sobre valores tradicionais e ecologia encantarão os mais adultos. É a mágica da Disney. Encantar pessoas, não importando sua idade.
Moana: Um Mar de Aventuras (Moana, 2016, EUA)
Direção: Ron Clements, Don Hall, John Musker, Chris Williams
Roteiro: Jared Bush, história de Ron Clements, John Musker, Chris Williams, Don Hall, Pamela Ribon, Aaron Kandell e Jordan Kandell
Vozes originais: Auli’i Cravalho, Dwayne Johnson, Rachel House, Temuera Morrison, Jemaine Clement, Nicole Scherzinger, Alan Tudyk, Oscar Kightley
Gênero: Infantil, Comédia, Aventura
Duração: 107 min.
Crítica | Animais Noturnos
Certos diretores talentosos de cinema não necessariamente surgem já na sétima arte. Boa parte deles faz o clássico caminho do videoclipe para o cinema como David Fincher, Marc Webb ou Spike Jonze. Porém, nunca tinha visto um diretor vir do mundo da moda dar seus pitacos como cineasta. Em 2009, tivemos a grande estreia de Tom Ford, renomado estilista, para o mundo cinematográfico com o excelente Direito de Amar.
Depois da celebração de sua estreia, o diretor entrou em hiato até agora. Sete anos depois recebemos um filme especial: Animais Noturnos. Longa que, aliás, conversa bastante com sua vida por conta de retratar temas muitos inerentes ao ambiente texano.
O roteiro de Ford adapta o romance Tony e Susan escrito por Austin Wright. Ao contrário do livro, Ford optou por uma narrativa não linear que certamente favorece o modelo cinematográfico de storytelling. Acompanhamos a vida de Susan Morrow, uma curadora bem-sucedida de um museu de arte pós-moderna. Entre cortejos, festejos, riqueza e um casamento fadado ao fracasso, Susan leva sua vida entediante dia após dia. Até que recebe um pacote em sua casa.
Seu ex-marido, o escritor Edward Scheffield, envia a cópia de seu novo livro, Animais Noturnos, batizado em homenagem as insônias constantes de Susan. Intrigada, Susan começa a ler a obra inspirada nela, mas o que encontra escrito nas páginas conversa diretamente com a problemática história regressa dos dois. Conforme a história do livro fica mais violenta, Susan relembra do passado com seu ex-marido, repensando ações equivocadas.
O thriller diabólico
A escolha da narrativa de Animais Noturnos certamente é seu maior diferencial. Temos uma característica das mais difíceis de serem realizadas no Cinema: a ficção dentro da ficção. Ou seja, a história do livro de Edward também é adaptada para o longa. E para gostar por completo de Animais Noturnos, é preciso compreender os personagens e a atmosfera de cada espaço temporal dos três que o filme aborda. Além de ter certo conhecimento extra-filme para poder apreciar por completo.
A tom do texto de Ford é crítico e ácido quase extrapolando no cinismo. Animais Noturnos é um filme cínico sobre a natureza humana mais comum: a crueldade. Seu início aborda o casamento frio e opaco de Susan com o marido rico, galante, mas chato e entediante. Sua vida segue a rotina pré-definida, estável e sem aventura alguma. Até receber a bendita cópia do livro do ex-marido.
O texto, até então silencioso e de conflitos mornos, adapta toda a monstruosidade descrita nas páginas sangrentas de Animais Noturnos. Nessa narrativa, vemos a tragédia de Tony Hastings, um homem que viajava com sua família pelo interior do Texas até ser abordado por um grupo de caipiras de índole pervertida. Com a filha e a mulher sequestradas pelo grupo, Tony fará de tudo para reaver sua família no meio terra desolada.
A narrativa do livro, obviamente, atrai mais o espectador por conta de a história possuir mais conflito e personagens carismáticos ante a narrativa do tempo presente de Susan. Como sempre temos transições entre três linhas temporais, a narrativa do livro, por vezes, é um pouco apressada, possuindo diversas elipses que condensam até mesmo anos podendo causar certo estranhamento.
Porém, o conflito que o protagonista passa é exemplar para comprarmos sua dor, além de Jake Gyllenhaal estar estupendo neste papel. Basicamente é uma história de faroeste moderno que carrega toda a decadência moral e social que ocorre no Texas contemporâneo sobre o modo que o ambiente afeta a vida de homens bons e maus.
Nisso, há o excelente personagem de Michael Shannon encarnando o xerife local Bobby Andes. Um coadjuvante digno de atenção por sintetizar um pessimismo latente sobre toda aquela terra. Seu desenvolvimento impressiona também por ser muito coeso. Há uma transformação que consegue tocar o espectador a ponto de mudar a primeira impressão que tivemos do personagem que corrobora toda uma impressão inicial do arco de Tony: o fato de ninguém expressar muita vontade em querer ajudá-lo a reencontrar sua esposa e filha.
Metamorfoses
O roteiro de Ford, além de conseguir contar competentemente três histórias, é extremamente eficaz em conectá-las. Assim que Susan começa a ler o livro do ex-marido e sacar que toda a história de vingança e sofrimento que o protagonista sofre é uma elaborada metáfora da vida regressa do casal, a terceira narrativa em flashback surge.
Temos então uma Susan completamente distinta da que protagoniza o tempo presente. A narrativa acompanha o relacionamento de Susan com o ex-marido Edward – também encarnado por Jake Gyllenhaal que consegue criar camadas distintas e similares para cada personagem. Aqui, há todo o começo do relacionamento dos dois, ainda jovens, aspirantes a sonhadores. O conflito é muito pertinente, pois ele é originado através de outro flashback excelente de Susan com sua mãe – performance destruidora de Laura Linney, enquanto almoçam.
Para quem estiver atento, o cerne da mensagem do filme está nesta cena. A partir disso, temos dois núcleos narrativos com excelentes conflitos em contraste com a vida insossa que Susan leva no presente. Só o fato da leitura do livro despertar essas memórias na protagonista, já torna a história muito mais instigante do que ela é. A grande eficiência de Animais Noturnos não está centrada no roteiro e no desenvolvimento pleno dos personagens, mas sim na excepcional técnica que Ford possui em conduzir o longa.
Corte e Costura
A abertura de Animais Noturnos – que, inclusive, foi censurada em alguns países, já sintetiza boa parte da vida de Susan e da subversão de beleza que o filme aborda. As mulheres obesas, idosas e nuas que dançam na abertura já trançam uma ironia pertinente ao filme inteiro sobre a lembrança de uma terra em completa decadência, seja estética, moral ou ética.
Todo o figurino e adereços utilizados pelas senhoras são os mesmos que várias mulheres “fantasia” jovens e voluptuosas vestem para celebrar o feriado de 4º de julho, independência americana, em festivais ou paradas urbanas. Ou seja, todo o bastião da liberdade de outrora representando pela famosa beleza americana é subvertido – o que se prova por todas as ações dos protagonistas e antagonistas que vão contra a moral vigente para diversas classes da sociedade americana.
A maior ironia se concentra justamente quando é revelado sobre o que se trata aquilo tudo: de uma peça de arte pós-moderna. O ranço de Ford pelo movimento é expressado pela síntese da chatice ególatra prepotente com exposições estúpidas e pseudo-intelectuais que Susan é obrigada a conviver e curar diariamente. Até mesmo alguns diálogos abordam esta questão de modo incisivo e direto. É um excelente paradoxo essa sequência inicial em criar uma encenação que agregue tanto ao filme enquanto sua função narrativa exibe o gosto artístico decadente de Susan.
Esse niilismo da personagem é refletido pela atuação quase robótica de Amy Adams que vai se transformando em humana novamente conforme lê o livro do ex-marido. Se imagina que tudo isso é construído através de muitas simbologias inteligentes, saiba que acertou. O filme carece de desenvolvimento pautado através de diálogos, pois Ford praticamente te obriga a interpretar o filme. Caso não faça isso, apenas terá visto um bom filme que, na verdade, é excelente.
As metáforas são fáceis de captar e de interpretar a partir do momento que o espectador sacar que toda a jornada de Tony no romance espelha todo o sentimento nada amistoso que o autor sente pela ex-mulher – sentimento este muito bem justificado em uma reviravolta grotesca do longa.
Novamente, é impossível não sacar isso por conta de Ford sempre orientar o montador Joan Sobel em realizar cortes com imagens muito parecidas entre as linhas narrativas. A competência de raccords visuais de Tom Ford é invejável por conseguir costurar essa metáfora com perfeição através das imagens impactantes. O diretor muitas vezes usa a semelhança física entre Amy Adams e Isla Fisher, que interpreta a esposa de Tony na ficção, para colar esses paralelos de ódio, desespero e violência presentes no discurso.
Como muita gente espera, Animais Noturnos é um deleite visual. Um esteta explícito, Ford consegue criar imagens estéreis para a vida presente de Susan, sempre muito monocromática, limpa, sombria e sem graça, mas de profunda beleza pela composição dos enquadramentos – referência direta aos desejos de riqueza supérflua que a personagem almeja; enquanto abusa nos contrastes das imagens saturadas da narrativa do livro e das cenas que Susan se recorda do casamento com o ex - estas, muito mais softs e românticas.
A jornada texana começa completamente escura e tenebrosa, condizente com os eventos traumáticos que abrem o livro. Porém, passada as tensas cenas do sequestro também encenadas com proeza, Ford e o fotógrafo Seamus McGarvey apostam na paleta mais saturada a fim de transmitir a diegese clássica texana. Ao longo do retorno dessas cenas, as cores são minimizadas através de um filtro que contrasta maiores níveis de preto na imagem já refletindo o crescimento da sede de vingança de Tony.
Ford cria imagens belas e duras que raramente transmitem afeto amoroso. É um trabalho visual que visa sempre isolar os personagens em um estado de paranoia obsessiva ou alienação intensa. Repare que os enquadramentos conjuntos são postos em contrastes para a narrativa de Tony. Antes, tínhamos o homem enquadrado junto com sua família e captores enquanto, progressivamente, Ford o isola nos enquadramentos finais de sua narrativa.
Em alguns enquadramentos pontuais, o diretor também expressa simbologias mais evidentes. Elaboradas, mas de fácil compreensão. Vejamos três exemplos. O primeiro deles é um enquadramento que emoldura uma caixa com os dizeres "frágil" com Susan na profundidade de campo. Um belo foreshadowing para quebrar a primeira impressão de mulher forte e decidida que temos da protagonista. Depois, com o cadáver de uma moça, Ford deixa o colar dourado com um crucifixo amassado e impotente em evidência - novamente, um método de reforçar a mensagem da decadência da moral texana, um dos estados mais cristãos dos EUA. No último exemplo, depois de Susan ter lido os trechos mais violentos do livro, Ford enquadra a personagem ao lado de um enorme quadro com os dizeres Revenge. Ao mesmo tempo, enquanto Susan parece voltar a se apaixonar pelo ex, o espectador tem a consciência da ignorância da mulher em não perceber que o livro nada mais é do que uma peça de vingança contra ela. É um manifesto do desafeto, do desapego e do escape de violência que Edward deseja infligir contra Susan.
Outro foreshadowing potente se dá no momento que Susan abre o pacote com a carta e o livro escritos pelo ex. Ao cortar-se com o papel, praticamente temos uma dívida de sangue selada entre os dois, além de marcar o começo da vingança de Edward consumando um desejo de violência física através de um objeto frágil. Mal sabe Susan, naquele momento, que a agressão do ex-marido será consolidada através das ideias, com imagens violentas apenas descritas por palavras. Paradoxo.
Com Susan, há o mesmo entre a alternância dos flashbacks de seu passado com o presente. Ford não decepciona ainda que não arrisque nunca em movimentar sua câmera para criar uma encenação mais envolvente. O diretor trabalha com a linguagem clássica dos anos 1950, mas com o ritmo da montagem moderna para criar a tensão necessária sem ter que recorrer à movimentação do aparato.
Além da montagem, o que torna Animais Noturnos tão magnético é a performance estupenda do elenco. Apesar de Adams e Gyllenhaal tomarem a dianteira no trabalho criativo conseguindo criar personagens complexos somente através do exuberante contraste de momentos da atuação, Michael Shannon e Aaron Taylor-Johnson dão um show em suas cenas dedicadas. Mesmo que o personagem de Shannon incorpore estereótipos e clichés do faroeste, o ator consegue conferir um grau de insanidade e passividade assustadora para o personagem por conta de olhares ora obtusos, ora flamejantes.
Já Taylor-Johnson encarna o hillbilly perfeito. Sua apresentação é fantástica por conta da subjetividade das ações do personagem. Mesmo que saibamos que a índole do antagonista seja cruel, Johnson mantém o personagem no limiar de uma loucura que busca gentileza e agressividade. A cena do sequestro só se torna tão eficiente por conta desse trabalho muito interessante de Johson que mantém esse cinismo camaleônico da moralidade até o fim do filme. Seu personagem é a síntese do animal criado pelo meio implacável capaz de fazer tudo para sobreviver.
Beleza Putrefata
É muito compreensível que Animais Noturnos não seja um filme que caia no gosto de todos. É outro caso de “ame ou odeie” por conta das tonalidades artísticas e da narrativa do filme pesar tanto na estética e na direção para que consiga ser desenvolvida de modo pleno e eficaz. Não é um filme difícil, mas ele exige sua atenção e senso artístico para esmiuçar todas as imagens que Ford traz em tela. Sem abordar o filme desse modo, é bem possível que ele se torne bastante chato após a meia hora inicial, afinal há uma troca de gênero.
Passamos de um thriller repleto de violência que promete uma história de vingança explosiva para então se tornar um drama psicológico humano sobre relações amorosas fracassadas e o luto do abandono. Porém, a graça de Animais Noturnos é justamente essa: em flertar com o ser e não ser, em se metamorfosear em um filme paradoxal extremamente simples, mas ao mesmo tempo complexo e exigente. Delicado e cruel, apaixonado e incrédulo, altivo e mortal.
Para fechar o ano em grande estilo, eis que Tom Ford confere uma obra estupenda, muito inteligente, que deve agradar bastante àqueles que procuram um filme completo em todos os sentidos, incluindo sua trilha musical maravilhosa, romântica, idílica e leve. Uma música que emana toda a beleza moral nunca alcançada por seus míseros, infelizes personagens.
Animais Noturnos (Nocturnal Animals, 2016 - EUA)
Direção: Tom Ford
Roteiro: Tom Ford (baseado no romance de Austin Wright)
Elenco: Amy Adams, Jake Gyllenhaal, Michael Shannon, Aaron Taylor-Johnson, Isla Fisher, Ellie Bamber, Armie Hammer, Karl Glusman, Laura Linney, Michael Sheen
Gênero: Suspense
Duração: 117 min.
Crítica | Invasão Zumbi (2016)
O cinema sul-coreano se consolidou com expressividade neste século. Hoje, é possível encontrar cinéfilos que não aguardam somente os blockbusters hollywoodianos com certa ansiedade, mas também discutem a antecipação de lançamentos de novas promessas cinematográficas coreanas.
Ao contrário de mestres já consolidados como Chan-wook Park ou Bong Joon Ho, Sang-ho Yeon ainda era um tanto desconhecido. Tradicionalmente, Yeon é um diretor de animações adultas coreanas, mas Invasão Zumbi marca esse ponto de virada em sua carreira. Decidindo trabalhar com o tema dos mortos vivos neste ano, Yeon fez este live action e uma animação sobre uma infestação zumbi na Coréia do Sul.
A narrativa, escrita pelo próprio diretor, é de escopo menor ante a um terror de escala nacional. Acompanhamos a história de Seok Woo, um empresário arrogante e egoísta repleto de trabalho que consome todo seu tempo livre que seria dedicado para aproveitar a infância de sua filha Soo-an. Falhando mais uma vez com os compromissos escolares da garota, além de esquecer de seu aniversário, a filha clama para que Seok faça a viagem para Busan, cidade onde vive sua ex-mulher e mãe da pequena Soo.
Refém de sua própria arrogância, Seok não consegue negar o pedido da garota. Ambos partem para Busan em uma viagem de trem-bala partindo de Seoul. Porém, no qual seria apenas um dia normal, coisas estranhas passam a acontecer. Rumores de pessoas raivosas atacando inocentes na rua tornam-se mais recorrentes até que a situação se torna totalmente insustentável. Antes do trem partir da estação, uma mulher mordida por essas pessoas estranhas embarca no vagão. Como já está infectada, a garota se transforma e começa a morder os demais passageiros.
Com o trem tomado por zumbis e o forte sentimento de insegurança por conta da falta de notícias, a única esperança dos poucos sobreviventes, incluindo Seok e Soo, reside na conclusão da viagem até Busan, a última cidade que resistiu com sucesso a primeira onda da infecção e contágio.
Releitura?
O sub-gênero dos filmes sobre zumbis está mais que saturado nas mídias. O campo do entretenimento de jogos e filmes já não sabem mais o que fazer depois da vasta exploração até sua exaustão nessa década. Ter um olhar tão peculiar sobre o tema pode ter trazido sim novas esperanças a esse tipo de narrativa.
O motivo é bastante simples: Yeon não pavimenta sua história através de lugares comuns e, ainda por cima, consegue emplacar críticas sociais bonitas e mensagens edificantes através de um filme que só teria a mera obrigação de divertir. A proposta é incrivelmente simples: colocar um grupo de personagens testando seus limites para sobreviverem aos infectados que infestaram na embarcação e durante algumas paradas em estações.
Yeon se preocupa em estabelecer bem a mitologia da infecção, mas devido ao isolamento do grupo com o mundo externo, muito da situação fora do trem fica restrita a baterias e sinais de smartphones. Mas essa situação apocalíptica que ocorre na Coréia interessa pouco perto do que acontece dentro do trem. A história se move rapidamente. E mesmo que seja uma narrativa de grupo, o conflito principal gira em torno da relação entre pai e filha estabelecido muito rapidamente através de certos clichês.
Aliás, o roteirista define praticamente o rol inteiro de personagens através do clichê. Temos o pai empresário egoísta e arrogante, a filha que só quer a companhia paterna e espera uma reunião entre família com a mãe ausente, uma mulher grávida acompanhada de seu marido fortão cínico, duas irmãs idosas que se contrastam entre fé e ceticismo e um time de baseball acompanhado de uma cheerleader que tenta emplacar um romance com o atleta tímido do grupo.
O único elemento que foge um pouco do padrão é o mendigo que invade a embarcação tentando se salvar dos ataques na cidade. Uma pena que Yeon desperdice bastante esse personagem que nunca tem a oportunidade de dizer a que veio, mas reforça uma das críticas sociais do cineasta.
O monstro invisível
Além dos zumbis, Yeon sabe que toda boa narrativa precisa de um bom antagonista. Invasão Zumbi não foge dessa regra. O lado ruim humano da história reforça uma mensagem de segregação que pode conversar com a realidade sul-coreana. O discurso de separação é construído a todo momento: o pai que se separa da filha e da ex-mulher, do mendigo recluso encontrado no banheiro e, principalmente, dos dois grupos sobreviventes que se antagonizam diante do medo de um conjunto de pessoas estar infectado ou não.
Mesmo que não seja uma pérola na elaboração desse discurso, é bastante eficiente em causar reflexões no espectador sobre os diferentes estados de monstruosidade e egoísmo diante de terríveis horrores que nos afligem na vida real. Para construir a catarse do protagonista que precisa reencontrar um modo de resgatar o afeto com sua filha, temos o antagonista que é um personagem muito similar ao herói. Também homem de negócios, é egoísta e fará de tudo para conseguir sobreviver – a filosofia do “antes ele do que eu”.
É através das ações do antagonista, Yong-suk, que Seok consegue ter uma carga dramática competente para atingir um clímax cruel e altruísta em seu arco, afinal, ele percebeu que suas ações abomináveis no começo do filme são iguaizinhas ao do homem detestável. O único outro personagem que recebe maior complexidade no tratamento é Sang Hwa, o marido rústico de Sung, que está grávida.
É justamente com esse personagem que toda a influência dos animes da carreira do diretor que vem à tona. Já a interpretação de Dong-seok Ma é bastante caricata e exagerada, praticamente traduzindo um estereotipo de personagem de alivio cômico durão com bom coração que vemos em diversos outros animes. A filosofia de vida, seu estilo despojado e espirito protetor também entram em completa antítese de todos os valores egoístas que o protagonista carrega. Esse trabalho de contrastes é explicito para acelerar a transformação que o herói sofre durante a jornada.
Animação da vida real
O restante do trabalho do roteiro está intrinsecamente ligado com a direção de Sang-ho Yeon. As opções tomadas pelo diretor para deixar seu filme distinto são inteligentes. O estabelecimento do protagonista e de uma Seoul fria e triste é um bom exemplo disso. Ele é cuidadoso para jogar na cara do espectador que o mundo já está ruindo por conta do vírus. São passagens pontuais que indicam a infestação do vírus.
A atmosfera é muito mais eficiente em nos envolver para demonstrar um espectro sombrio que ronda a vida do protagonista. Seja na casa bastante sombreada e estéril, no amanhecer azulado nauseante de Seoul ou dos caminhões de bombeiro partindo até um incêndio na distância.
O investimento da narrativa não é centrado apenas na questão da reaproximação do pai com a filha, mas sim o destino final, Busan, que se comporta mais como uma Pasárgada por sua representação de refúgio e segurança. O diretor enfatiza por diversas vezes, em diálogos, a importância simbólica da família chegar até Busan, pois seria a primeira vez em anos que família estaria unida.
Justamente pela construção desse significado sobre tempo e família que os sacrifícios finais para a vitória tornam o filme emocionante. Confesso que não esperava nada que o longa traria um trato tão humano assim. Yeon vai tão além que até mesmo cria referências que flertam com a cinematografia de Terrence Malick de modo eficaz. O drama inteiro da personagem Soo é sintetizado pela canção que canta para seu pai. Então, apesar de simples, por abordar um tema tão humano sobre tempo, amor, altruísmo e família, o diretor ganha muitos pontos por conseguir traduzir isso de modo pleno.
Aliás, um desperdício mercadológico essa tradução infeliz que o filme recebeu no Brasil. Invasão Zumbi desmerece completamente o título original: Train to Busan, que já indica sobre o verdadeiro tema que o filme representa.
O diretor é compentente. Inclusive por elaborar contrastes visuais entre o começo e o fim do filme. No primeiro ato, raramente Yeon movimenta a câmera, sempre buscando planos intimistas e menos expansivos como se tornasse o mundo exterior em uma verdadeira claustrofobia por conta de pressões internas do protagonista. Assim que os zumbis tomam conta do trem, sua linguagem passa a ficar mais frenética até chegar em grandes planos gerais, bastante movimentados, no clímax da obra.
Como de praxe, todo o estabelecimento da mitologia dessa versão de zumbis é contado através das imagens. Yeon mistura conceitos do zumbi de Extermínio, Guerra Mundial Z e The Walking Dead, mas consegue adicionar uma característica excelente que contribui muito para gerar tensão nas cenas mais poderosas criativamente – todas acontecem quando o trem atravessa túneis.
Logo, há sempre um bom misto de picos de suspense, ação e horror no filme. Quando a ação surge a inspiração claramente vem Guerra Mundial Z com zumbis que jorram aos montes como se fossem cerais caindo na tigela – é impressionante e os efeitos visuais dão conta do recado.
Para tentar conferir a impressão de velocidade nas correrias das criaturas, Yeon usa alguns jump cuts curtos – fica um efeito ligeiramente brega, mas é eficiente. Se tem algo de ruim em Invasão Zumbi está restrito exclusivamente na parte sonora do filme.
Enquanto os diálogos são limpos e bem captados, centrados na realidade, Yeon comente alguns excessos com os efeitos sonoros dos mortos-vivos que não gemem ou urram, mas sim grasnam. É um tanto difícil levar a matança a sério ou ficar preocupado com os personagens quando os zumbis soam exatamente como o Pato Donald resmungando. É ridículo.
Já a trilha musical também comete excessos com composições que muitas vezes mal conseguem conversar com as cenas que vemos em telo ou se comporta de modo excessivamente emocional. A melhor parte da trilha musical de Invasão Zumbi é quando ela se cala.
Outro detalhe muito interessante da obra é o termo de sobrevivência levado bastante a sério. Como a ação se concentra em uma viagem comercial de um trem-bala, nenhum passageiro porta uma arma de fogo. Logo, temos um punhado de personagens extremamente vulneráveis aos ataques dos zumbis violentíssimos. Então a ação consegue sair do lugar-comum marcado por tiroteios e barricadas nesse gênero. Aqui é correria e porrada mano-a-mano em realizações excepcionais de decupagem – o diretor é muito competente em manter uma coerência visual hermética ao longo da obra.
Viagem para Busan
Há sim novos ares para o tema tão explorado inexoravelmente pela indústria. Misturando conceitos e apresentando novos, incluindo a circunstância peculiar de seu espaço de ação ser dentro de um trem, Invasão Zumbi se consagra como um dos melhores filmes dessa temática da última década. A aposta no drama humano, sem ficar no melodrama sem sal, é acertada. O conflito desenvolvido da dupla protagonista satisfaz e emociona pelo talento da atriz mirim ao final do filme. Os outros conflitos em síntese funcionam seja para causar catarse e transformação ou apenas para justificar uma ação extremada do roteiro.
Assim como grandes filmes de qualquer gênero e temática, Yeon fez de seu filme de zumbi uma excelente história sobre conflitos humanos e questionamentos éticos que transbordam moral. Acredite, não se trata de uma obra complexa que fique se preocupando em matutar temas adultos. O diretor quer mesmo é divertir o seu público com as ótimas sequências de ação e suspense que o filme possui, mas, ao mesmo tempo, consegue transmitir uma mensagem bem elaborada.
Certamente, é uma das melhores surpresas do ano que merece sua atenção.
Invasão Zumbi (Busanhaeng, 2016 - Coréia do Sul)
Direção: Sang-ho Yeon
Roteiro: Sang-ho Yeon
Elenco: Yoo Gong, Soo-an Kim, Yu-mi Jeong, Dong-seok Ma, Woo-sik Choi, Sohee, Eui-sung Kim
Gênero: Ação, Terror.
Duração: 118 min.
Crítica | O Lamento
O interessante dos gêneros para o cinema é o como são maleáveis, como podem se encaixar e ser encaixados de diferentes formas, seja de maneiras mais simples, o que dá margem para muita incompetência e filmes esquecíveis, seja da sua subversão. E isso parece ser potencializado ainda mais quando é deslocado para um polo produtivo que não o do cinema ocidental. O cinema sul-coreano já vem conquistando seu espaço desde a década de 90 e já adquiriu apelo suficiente, até mesmo entre neófitos, para deixar de ser regional.
Alguns diretores já chegaram até a ser importados com sucesso. Bong Joon-ho soube trabalhar bem em O Expresso da Amanhã, apesar dos seus filmes anteriores merecerem muito mais destaque. O mesmo para Sede de Sangue de Park Chan-wook. Enfim, o diretor da vez não é, nem precisaria ser, nenhuma estrela dessas. Nesse que é seu terceiro longa-metragem, Na Hong-jin tenta fazer um terror alternativo, mesclando diferentes visões do gênero. O Lamento, no entanto, exibe uma enorme distância da potência de O Hospedeiro, por exemplo.
Uma onda de misteriosos e sangrentos assassinatos atinge uma pequena cidade onde mora Jong-gu, personagem principal, que só sente particularmente afetado quando “o que está acontecendo” atinge sua filha, que passa a agir estranha e violentamente. Boatos sobre um japonês que está residindo nas proximidades e que estuprara algumas mulheres da vila costuram uma possível história policial/detetive a um enredo sobrenatural. O protagonista mostra-se, desde o começo, um grande incompetente de maneira ímpar – o que o torna inverossímil e o transforma num amontoado de carne que só substitui o espectador na tela, sem inspirar empatia.
O policial e seu amigo não fazem nada além de visitar as cenas dos crimes, possibilitar alguns quadros chocantes e perturbadores para a câmera, depois berrar e chorar histericamente. Não que as situações enfrentadas sejam de fácil assimilação, nem que bravura fosse a solução para todos os problemas, mas cada cena é um momento frustrado e frustrante atrás do outro. Na epígrafe da Bíblia, com Jesus questionando a crença dos seus apóstolos na materialidade do seu espírito ressuscitado, o filme tem seu ponto de contato mais reconhecível. Não demora para a mensagem se esgotar (antes de metade do filme suas conclusões já estão em tela) e ser substituída pela máxima “Se Deus não existe, então tudo é permitido”, sem ponto de interrogação, em seu sentido mais fraco e insuficiente.
Na Hong-jin sabe mostrar muito bem que o sobrenatural no melhor sentido da palavra. Algo que ultrapassa o natural. Sua melhor discussão, inclusive chave para a cacofonia da sequência final, recai especialmente no fator da materialidade. Guardadas as devidas posições e intenções, lembra inclusive a habilidade da câmera de certo diretor tailandês. Hong-jin, por sua vez, não sabe aproveitar dessa fineza, e a extrapola, como tudo no filme.
Os pontos de contato com o cristianismo (os furos na mão de um demônio, uma mocinha que joga pedra nos policiais em frente a cena do crime, o estrangeiro que passa a doença venérea...) são facilmente abandonados para se fecharam na implacabilidade da cultura budista e xintoísta. A incompetência de Jong-gu passa por cima até dos valores morais para se tornar a autodestruição familiar. O pecado assume uma forma diferente aqui. Lembra, assim, a invencibilidade do mal no direto e eficiente A Bruxa. No mérito da dúvida, O Lamento consegue até ser melhor na medida em que brinca com a imprevisibilidade das situações.
Os três personagens espirituais, digamos – o estrangeiro, o xamã e a mulher de branco –, nunca mostram quem realmente são, o que realmente estão fazendo, se estão ajudando ou piorando a situação. Mas, para Na Hong-jin, isso é suficiente. Basta o roteiro atropelado, pouco coerente e em tom pesado. O ridículo surge mais vezes do que o esperado, e já que o tom predominante é de seriedade, já que ninguém relaxa, o humor negro funciona poucas vezes. Se o diretor tinha alguma pretensão de discutir algum detalhe da cultura sul-coreana, temo que só encontrou tachinhas para seus pneus nessa estrada onde só sobrevive cinema pouco inflado.
O Lamento é um filme para masoquistas que querem passar o filme inteiro intrincando o cérebro, maquinando sobre o quebra-cabeça que é o filme, procurando simbologias em cada plano, em cada movimento. E eles existem, o diretor afirma pelo excesso de montagens paralelas. Um filme que é pura tensão, que foge da tenra e suculenta carne do cinema como o diabo foge da cruz.
No geral, o longa conta com uma boa produção, especialmente em termos de fotografia. As cores fortes impõem identidade na chuva e nos rituais macabros. Os efeitos computadorizados são mais perceptíveis do que poderiam ser, mas não chegam a atrapalhar. As cenas perdem por serem ou simplesmente desinteressantes de um ponto de vista visual, ou por serem absolutamente óbvias. Os símbolos ficam dispersos pelo rastro da película (um gibi de ponta cabeça, uma árvore com panos coloridos, um anzol com duas pontas e uma isca, a cabeça caprina no altar de um feiticeira e a bovina no altar de outro…) e são a única coisa a se notar em revisão. Na Hong-jin faz de O Lamento um gozo para os obsessivos.
Num escancarado exercício de exagero, de elevar certos sentidos à flor da pele, o diretor tenta contar a sua história usando duas horas e meia de projeção sem concessões. Mais cineastas fazendo concessões? Já chega os americanos. Mas o filme é fechado, enclausurado em si mesmo e em sua própria voz. Ou na voz que busca. E todo som necessita de um meio para propagação, precisa chegar em algum lugar.
Mas O Lamento, esse uivo interminável, assustadoramente insuportável, rodopiante em sua própria histeria, nunca encontra seu anteparo, seu alvo. Continua reverberando sem encostar em parede alguma, gaguejando como o seu protagonista – o que não é justificativa nenhuma. Seu maior problema é não aceitar a sua burrice, que é empurrada minuto a minuto. E se o espectador não colaborar com essa ditadura, terá uma péssima experiência. Um filme inchado demais para deixar-se chamar de filme de terror.
O Lamento (Goksung, 2016 - Coréia do Sul, EUA)
Direção: Hong-jin Na
Roteiro: Hong-jin Na
Elenco: Jun Kunimura, Jung-min Hwang, Do-won Kwak, So-yeon Jang, Han-Cheol Jo
Gênero: Terror
Duração: 156 min.
Crítica | Belos Sonhos - Marco Bellocchio em grande estilo
A Mostra Internacional de Cinema de SP que começa dia 20/10 terá em sua sessão de abertura o filme do diretor italiano Marco Bellocchio “Belos Sonhos” (Fai Bei Sogni, 2016). Bellocchio é um diretor acostumado a levar para o cinema histórias humanas e com situações que são um espelho da realidade. Foi assim com seu filme A Bela Que Dorme que teve como tema central a discussão da eutanásia.
Na história, baseada no livro autobiográfico de Massimo Gramellini acompanhamos um garoto de nove anos que vive seus dias de infância com sua mãe e seu pai, mas algo parece chatear sua mãe, descobrimos que ela está doente.
Bellocchio não está preocupado em contar qual doença, nem apresentar as causas de sua morte e sim em mostrar o relacionamento do garoto com sua mãe e como ele lida com o fato de um dia acordar e não mais poder a ver, abraçar nem conversar com ela. Não haverá mais presente nem futuro e sim um passado para se sonhar.
Belos Sonhos tem como tema a superação do processo de luto. Massimo se nega o tempo todo a aceitar que sua mãe se suicida, em sua fase adulta acha que já superou essa fase, mas isso não é verdade. Ele mente para si mesmo. E é isso que o nos filme apresenta, de forma rápida como se fosse um sonho o processo de superação do garoto e seu crescimento, desde a adolescência até a fase adulta como um jornalista de sucesso cobrindo desde guerras até desfiles. Esse processo de aceitação não é fácil, já que tudo no filme lembra a perda de sua mãe.
A mensagem é clara, aproveite o tempo com sua mãe, nunca sabemos quando pode ser a última vez que a veremos. Bellocchio trabalhou muito bem a história, ela funciona em suas mais de duas horas e não é cansativo. Talvez algumas cenas poderiam ter sido retiradas na edição final. Em algumas partes parece que as cenas foram jogadas apenas para compor a história.
A fotografia é essencial para o andamento da produção. Sempre quando sua mãe aparece na lembrança de Massimo as cores são reais, vivas e quando volta para sua realidade - não importa em qual fase de sua vida - tudo é escuro e triste. Essa luz só muda quando ele conhece uma enfermeira e esse fato de conhecer outro amor o faz começar a sua fase de superação. A frase final do filme é emblemática quanto a isso. Ela se aproxima de seu ouvido e diz “Deixe-a ir embora”. Massimo passou muito tempo pensando na morte de sua mãe que se esqueceu de viver sua vida.
Belos Sonhos é um filme sensível e que não perde a força em nenhum momento. Parece que Marco não quis chocar ou apelar para o lado emocional do espectador. Foi a escolha certa para a abertura da mostra. Filme tem data de estréia para o dia 29 de dezembro, mas sorte de quem puder assisti-lo com antecedência na mostra.
Belos Sonhos (Fai bei sogni, Itália, 2016)
Direção: Marco Bellocchio
Roteiro: Edoardo Albinati, Marco Bellocchio, Valia Santella, Massimo Gramellini (Livro)
Elenco: Bérénice Bejo, Valerio Mastandrea, Fabrizio Gifuni, Guido Caprino, Barbara Ronchi
Gênero: Drama, Romance
Duração: 130 min.
https://www.youtube.com/watch?v=rLNFbCdhRiI
Crítica | Capitão Fantástico
Ah, a vida no campo. O contato com a natureza. Viver com o verde, livre das amarras das leis, livre da poluição da cidade cinzenta e do estresse do trânsito. Esse sonho por Pasárgada é antigo. Porém foi em 1950, em contexto pós-guerra, que uma nova filosofia de vida, remetendo aos sonhos idílicos surgiu. Eis a geração beat: os beatniks. O termo foi cunhado por Jack Kerouac, um dos símbolos máximos do movimento. Pregavam a subversão do materialismo, da fuga dos afazeres cotidianos castradores do ciclo escola-trabalho-futuro-vida doméstica.
O movimento ressuscitou com força o naturalismo de Thoreau, dessa busca intensa de contato com a natureza, de viver em nomadismo e fugindo e condenando totalmente a sociedade capitalista. No contexto dos beatniks, o consumo de drogas, desobediência civil, anarquismo, ecologia, as caronas, os cafés e a vida desregrada lançaram esse novo modelo de vida. O curioso é que essa ideologia anti-capital, gerou exatamente o efeito contrário: apenas reforçou uma nova indústria de produtos para esse nicho de pessoas que, querendo ou não, consomem muito.
Capitão Fantástico é justamente um desses produtos sedutores de venda de sonhos idílicos, afinal a geração e o movimento beatnik ainda não morreram. Vez ou outra, temos filmes que abordam o tema. O mais famoso deles é Na Natureza Selvagem, um dos longas favoritos de muita gente assim como esse deve se tornar. E não é por mero acaso. O movimento seduz pelo imaginário popular em crer em uma vida mais saudável, natural e feliz no campo.
Porém este filme é muito mais do que apenas um elogio ao modo naturalista de viver. Ele aborda questões cruciais ao fazer um jogo inteligente.
Estudo de natureza
O roteiro do também diretor Matt Ross segue o caminho inverso de Na Natureza Selvagem. Não partimos de um homem cansado da vida da cidade seguindo caminhos perigosos em direção a natureza, mas sim uma família inteira que vive isolada na floresta sendo confrontada ao chamado da cidade.
A história gira em torno de Ben, um homem que vive com seus seis filhos completamente isolado da civilização. Ben e sua esposa construíram um paraíso para sua família. Vivem longe de qualquer centro comercial. Tudo é construído por eles mesmos, comem o que a natureza provê seja na plantação ou na caça. Porém viver em um paraíso não é fácil.
Ben faz com que seus filhos estudem filosofia, ciências diversas, história, geografia e literatura. Não somente o treinamento intelectual é importante, mas como os exercícios físicos diários que o homem submete nas crianças. É uma criação implacável. Porém, com a morte de Claire, a mãe das crianças, Ben é confrontado com a realidade de ter que partir em uma jornada para o velório de sua mulher.
Recluso por tantos anos e com as crianças que nunca tiveram qualquer contato com a civilização, Ben terá que tomar escolhas difíceis que revelarão o verdadeiro sentido da paternidade.
O que Ross faz é o mesmo tipo de narrativa que mais acomoda o espírito beatnik: é uma narrativa de viagem, um road movie. O roteirista faz tudo didaticamente para explicar como funciona aquela família nada convencional, sobre seu modo de pensar e do respeito sobre a pluralidade de ideias dos diferentes integrantes. Porém, ao mesmo tempo que o protagonista ensina diversos elementos importantes de educação, fica nítido que ele não tem o menor traquejo social ao dar a notícia do falecimento da mãe dos garotos.
É justamente ali que começa a fundamentar os conflitos que permeiam o longa em sua totalidade – mesmo que muitos deles se provem completamente artificiais na conclusão do terceiro ato. São seis filhos e basicamente, apenas dois criam os conflitos que movem a trama. Bo, o mais velho, tem interesse em ingressar nas faculdades que ele foi aceito. Já Rellian discute que odeia a vida “natureba” que a família leva, quer participar de um círculo social mais padrão, uma sociedade capitalista para poder ir à escola, jogar videogame, fazer coisas que crianças normais fazem.
São conflitos genuínos que forçam o estudo do personagem de Ben, afinal Ross não oferece muito backstory para a vida regressa do casal. O que interessa ao roteirista é o aqui e o agora. O protagonista tem completa aversão à civilização do modo que nós conhecemos, além de abominar feriados religiosos – o alvo é o Cristianismo, como sempre. É um personagem problemático, com certeza. E assim como em Na Natureza Selvagem, o filme tenta construir um discurso que mostre o quão egoísta é o personagem ao suprimir a vontade dos demais.
Além dos conflitos com os dois filhos – as demais crianças praticamente não servem para muita coisa até o clímax do filme, Ben entra em colisão contra seus sogros sobre o modo que farão o cortejo fúnebre de sua ex-mulher. Para piorar sua situação, os avós Jack e Ellie decidem que querem a guarda das crianças, as tirando do modo de vida considerado impróprio.
O curioso é que Ross nitidamente constrói um discurso favorecendo o lado do protagonista, da vida idílica e perigosa no ermo. Para não ofender demais a base com o pedantismo do personagem, o diretor tenta criar esse jogo de “extremos” entre os dois lados: o selvagem vs. doméstico.
Civilização vs. Natureza
O jogo de opostos é óbvio. Porém, o diretor, explicitamente, através dos diálogos, favorece o discurso naturalista anti materialista do protagonista. Enquanto as pessoas que vivem em civilização são detestáveis, burras, egoístas, ignorantes, obesas, indelicadas ou falsas, a família de Ben é educada, muitíssimo inteligente, culta, sabem diversos idiomas, apta a sobreviver na selva pelo rigoroso treinamento militar, em forma e possui diversas habilidades com diferentes artes.
Para nivelar o jogo, Ross indica que os filhos de Ben, mesmo lendo sobre tudo, são extremamente alienados com o convívio social. Porém, como disse, isso nunca é feito de modo degradante ou para firmar conflitos importantes entre os integrantes da família. Quando a alienação surge, geralmente é feita para injetar comédia no filme. Nunca como um fator limitador. Seja durante o flerte de Bo com uma garota normal ou das crianças se espantando com alguns jogos violentos.
O interessante do roteiro de Ross é tirar o protagonista da zona de conforto. Enquanto a história pode ser óbvia e ter viradas clichês, incluindo sua catarse, o estudo do personagem protagonista vale o ingresso. Há uma jogada inteligente com a personagem de Claire, a esposa morta. Devido algumas informações da narrativa, o roteirista põe em cheque tudo que os pais da moça e Ben dizem a respeito de suas vontades no testamento.
Então a narrativa conspira contra todos deixando ao critério do espectador o que tomar como verdade, pois a todo momento as ideias dos dois lados entram em conflito devido às ações tomadas pela mulher antes de morrer. O legal do desenvolvimento de Ben reside em sua enorme resistência em defender a sua ideologia e modo de viver, apesar das inúmeras investidas que tentam provar o quão errado ele está.
Como o personagem é bem desenvolvido, ocorre a clássica transformação ao final, porém de modo light, afinal o diretor não quer detonar o discurso do filme – é um morde assopra. Entretanto, enquanto o terceiro ato completa o personagem, ele é extremamente covarde ao arruinar todos os conflitos criados até então, infelizmente.
Digamos que ele tenha exatamente o mesmo problema do final de O Quarto de Jack. Resolve um conflito muito complexo de modo banal, praticamente um deus ex machina. A diferença é que Capitão Fantástico não é narrado a partir do ponto de vista de uma criança. Já sobre o tratamento com outros personagens, sejam as irmãs ou com as crianças mais novas, é uma metáfora inteligente da disputa dos irmãos mais velhos com o pai pelo domínio do grupo – assim como em diversos grupos de animais selvagens como hipopótamos ou leões.
Direção indie, mas nem tanto
Matt Ross é um diretor estreante de longas metragens. É um ator de seriados muito famoso, por sinal. E a partir desse contato com tantos diretores e diferentes linguagens, mostrou um trabalho promissor – ainda que o filme clame por uma indicação ao Oscar. Ross pega muitos conceitos da direção de filmes independentes. Toda sua encenação exala esse nicho cinematográfico e realmente é algo bem feito.
Seja no trabalho criativo dos atores mirins, da liberdade de linguagem com técnicas coerentes ao tipo de narrativa retratada – câmera na mão, contemplação, trilha musical característica, montagem ritmada, atmosfera excêntrica, etc – Ross realiza um bom trabalho. Pensa nos detalhes dos figurinos de cores vibrantes, da maquiagem e do nome dos personagens para torná-los essencialmente únicos.
Infelizmente, Ross tem a mão pesada demais para saber dosar a mensagem bastante enviesada de seu filme. Porém, mesmo assim, o diretor tem seus lapsos de genialidade.
Isso ocorre através do contraste inteligente entre imagens diferentes sobre uma mesma ação. Na primeira, temos Ben tomando um banho nas cataratas que praticamente castigam seu corpo. Mesmo com a tremenda força da água, Ben não se resigna. Ele demonstra sua força diante a natureza. Já próximos ao fim do filme, o diretor retoma. Vemos o protagonista tomando um banho por um chuveiro, com águas tranquilas, gentis, civilizadas. Porém, devido diversos acontecimentos, temos o personagem já curvado, com o espírito fraco.
É uma boa síntese para marcar pontos-chave para interpretarmos o personagem.
Capitão Interessante
Capitão Fantástico é mais um filme derivado de fantasias naturalistas que ressuscitam o espírito de Thoreau e Jack Kerouac. Para quem gosta desse tipo de narrativa e sonha com uma vida idílica na natureza, certamente é um prato cheio. Não se trata, obviamente, de um filme de comédia, apesar da presença tímida de humor. O longa é um drama bastante ideológico de discurso consideravelmente enviesado.
Porém, ao ignorar a mensagem do filme e reconhecer os esforços de Matt Ross em tentar nivelar a balança dos extremos, é capaz de encontrar um ótimo filme sobre estudo de personagem: de um homem que precisa remover seus filhos – e si mesmo, da Caverna de Platão que ele mesmo criou.
Ironicamente, a obra de Ross consegue ser justamente o que seus personagens mais abominam. Durante um diálogo sobre Lolita, Ben pede uma análise para a filha que classifica o clássico como “interessante”. O homem, enfurecido, a repreende dizendo que interessante não é uma classificação decente para qualquer coisa.
Bom, Capitão Fantástico é um filme interessante.
Capitão Fantástico (Captain Fantastic, 2016 - EUA)
Direção: Matt Ross
Roteiro: Matt Ross
Elenco: Viggo Mortensen, George MacKay, Samantha Isler, Annalise Basso, Nicholas Hamilton, Shree Crooks, Charlie Shotwell, Trin Miller, Kathryn Hahn, Frank Langella, Erin Moriarty
Gênero: Road Movie, Drama, Comédia.
Duração: 118 min.
Crítica | Sing: Quem Canta Seus Males Espanta
Já não é de hoje que repito por aqui ou em conversas entre amigos que Chris Meledandri é um daqueles eventos-catarse que a indústria recebe com alguma rara frequência. O cara entende de mercado como ninguém. Um dos mercados mais complicados: o infantil. O produtor já estava envolvido em animações desde o início de sua carreira, mas sua chance de ouro explodiu com a criação de Meu Malvado Favorito, rendendo para si uma sequência e um spin-off.
Vendo que sua franquia de maldade e ajudantes amarelos logo dará sinais de esgotamento, rapidamente voltou suas apostas em algo irresistível para todas as crianças e (muitos) adultos: animais, principalmente mamíferos fofinhos. Há poucos meses, a primeira aposta de fábula moderna se provou acertada: Pets foi um grande sucesso de bilheteria. Com Sing, a aposta deve se mostrar acertada mais uma vez.
Narrativa histórica
Assim como todos os filmes de Meledandri, o roteiro não é lá grandes coisas, mas este aqui é um dos melhores já feitos para suas produções. Acompanhamos o drama de Buster Moon, um coala simpático que tenta salvar seu teatro – adquirido através de muito esforço do trabalho do pai, da completa falência. A inaptidão completa de visão de mercado levou o pequeno Buster a apostar em peças que só lhe renderão prejuízo e empréstimos bancários.
Com a hipoteca do teatro explodindo e o banco ameaçando tomar a propriedade de volta, Moon pretende organizar uma disputa de canto onde o vencedor ganharia o prêmio de 1.000 dólares. Porém, com os erros de sua assistente-iguana meio cega e idosa, o valor anunciado nos panfletos é de 100.00 dólares. Graças ao valor altíssimo, diversos concorrentes se inscrevem para as audiências.
Observando os novos talentos, Moon aposta no sucesso de público de seu concurso, porém ainda é assombrado pelo valor da recompensa prometida que ele não possui a menor condição de pagar.
Provavelmente o motivo do roteiro de Sing ser bastante superior a dos outros filmes da Illumination é por conta do trabalho de Garth Jennings. Isso se dá pelo investimento em conflitos muito humanos, de fácil empatia, para os diversos personagens. Cada um deles carregam dramas distintos que conversam com o espectador.
Vejamos, Moon é o protagonista, logo possui o conflito mais abrangente do filme: dificuldades orçamentárias, ameaças do banco e sonhos frustrados. E então temos os selecionados para a competição. O roteirista faz que cada um seja motivado por elementos externos além do incentivo da recompensa.
Rosita é uma porquinha, mãe de vinte filhos, dona de casa que já viu o trabalho exaustivo de seu marido esfriar o calor do casamento. Seus sonhos ficam em 2º plano para cuidar da vida doméstica. Ash, uma porco-espinho, limitava seu talento como cantora para atender as conveniências do seu namorado pretensioso metido à artista pós-moderno, além de sofrer com as frustrações do relacionamento. Meena é uma elefanta tímida que mora em uma residência pequena junto de sua família de peso e enxerga a oportunidade da competição para se tornar extrovertida e menos insegura.
Os únicos que se afastam da normalidade dramática são Johnny e Mike com a função de injetarem mais aventura na história. Johnny, um gorila adolescente, ajuda a gangue de seu pai em diversos crimes, mas se vê dividido para seguir seu sonho de cantor. Já Mike, arrogante e fracassado, gasta todo o dinheiro do prêmio antes mesmo de ganhar o concurso. Trapaceando em um jogo de pôquer, uma máfia de ursos passa a caçá-lo até o restante do filme.
Se há algo que parabenizo Jennings, é seu poder de síntese em estabelecer bem o conflito desses diversos personagens que nos cativam bastante. Dentro disso, obviamente alguns personagens são representações metalinguísticas óbvias. Mike é claramente inspirado em Frank Sinatra – inclusive em suas escapadas e flerte com o crime e mulheres. Já Nana Noodleman, uma artista de teatro prestigiosa carrega a aura do clichê que Gloria Swanson lançou em Crepúsculo dos Deuses.
A estrutura narrativa, assim como em outros filmes da produtora, é bastante simples, permitindo o pleno entendimento das crianças. O interessante, mesmo sendo um filme musical – contando com mais de 65 canções, é a forma inteligente que o diretor/roteirista dispôs isso na história, afinal, já imaginaram que chatice seria escutar uma playlist completa com 65 músicas?
Pois então, muitas delas são cantadas parcialmente, às vezes, nem atingindo dez segundos – como na montagem em sequência da seleção dos candidatos. Outras, ela está disposta como música diegética. Na verdade, somente no clímax que temos uma cantoria completa, mas ainda no modelo de exposição do show de talentos como um The Voice ou X Factor. Toda a natureza musical, de mudança de atmosfera com iluminação dramática, é muito restrita aqui, mas casa com a proposta realista do diretor.
Também é curioso como Jennings toma decisões corajosas em Sing, principalmente no momento obrigatória de toda narrativa de grupo que demarca a tristeza, perda ou declínio completo para encaminhar o clímax. Fora isso, a narrativa é padrão, apostando em diversas conveniências narrativas, principalmente no fato de Buster ser melhor amigo de Eddie, um filho-de-papai riquíssimo.
As outras reviravoltas que atingem o grupo, com exceção à de Johnny, são todas previsíveis, aumentando o longa além da conta. Outros desenvolvimentos acabam apressados, muitos tomando rumos clichês, além da conclusão do arco de Mike ser bastante insatisfatório. Entretanto, a temática de libertação orbita toda a conclusão do filme. Não apenas de libertação feminina, mas sim de todos os personagens. É um experimento de redenção coletiva genuíno e belo. Algo que nunca tinha visto em um filme Meledandri anteriormente.
Sociedade animal
Sing é um dos muitos longas sobre sociedades constituídas totalmente por animais antropomorfizados. Zootopia foi o ápice em termos de design inteligente, história e direção. Em Sing, infelizmente, não temos aqueles insights valiosos que pintaram no filme da Disney. Os cenários não têm aquele charme animalesco, nem mesmo como a sociedade e tecnologia se comportam perante seus habitantes animais.
Apenas é uma transposição do mundo humano com algumas adaptações não muito criativas. Ao menos, há piadas inteligentes explorando a anatomia dos bichos.
Jennings mantém o bom trabalho no roteiro com sua direção. Até pode assustar um pouco no início quando apresenta todos os personagens-chave a partir de planos-sequência excessivamente afetados e cartunescos. Fãs de Chuck Jones devem identificar o modo bem característico que o diretor dispõe os animais na abertura. De resto, seguimos na linguagem clássica, bem invisível.
É um diretor que evita chamar a atenção para seu trabalho bastante correto e competente. Ainda que trabalhe bastante com a simplicidade, não se trata de algo pouco inspirado. Inclusive, em algumas cenas, há algumas metáforas visuais inteligentes. Os momentos mais enérgicos e inspirados se concentram no ótimo clímax.
Só lamento que se trate de um trabalho, majoritariamente, automático, centrado em trabalhar na linguagem apenas como meio e pouco como mensagem, pois há potencial de sobra.
As músicas, um show à parte, misturando hits de diversas décadas inclusive apontando o abismo sem fim que a indústria musical caminha a largos passos. Mas quase nenhuma vez há uso inteligente delas para favorecer o drama. As raras ocasiões que acontecem, são fracas, mas ajudam a delinear a atmosfera.
Algo que gosto muito da técnica dessa produtora em particular é a modelagem de personagens sempre interessantes visualmente, além de objetos de cenário de padrões artísticos muito peculiares, arredondados e curiosos para os espectadores. A animação certamente é soberba, mesmo que o cuidado com a textura com os pelos não atinjam a qualidade de Zootopia ou Kung Fu Panda 3.
A iluminação foi certamente melhorada ante trabalhos anteriores do estúdio. Já era possível notar a diferença em Pets, porém aqui isso é confirmado com clareza. Inclusive, existem cenas que brincam bastante com diversos efeitos de luz, na busca de conferir a atmosfera de shows musicais. A cor, sempre saturada, está presente para encher seus olhos.
Contando canções
Não devo encerrar o texto sem ao menos elogiar o grandioso trabalho de dublagem. Contando com Mathew McConaughey como Buster Moon, já é uma bela justificativa para checar a versão legendada. Mas o elenco inteiro, de grandes nomes, se destaque não somente dublando, mas cantando bastante. Destaque para Taron Egerton e Reese Witherspoon.
Sing consegue elevar a barra de histórias medíocres que a Illumination e Meledandri vinham trazendo ao público por bastante anos. Hoje já não posso reclamar que todos os filmes dele contenham historias fofinhas potencializadas pelo visual exuberante. Sing é uma excelente pedida para se divertir com toda a família nas férias do final do ano.
Finalmente foi dada a largada para Meledandri acreditar mais no seu público e nas histórias que tem para contar e, por que não, cantar.
Sing: Quem Canta Seus Males Espanta (Sing, 2016 - EUA)
Direção: Christophe Lourdelet, Garth Jennings
Roteiro: Garth Jennings
Elenco: Matthew McConaughey, Reese Witherspoon, Seth MacFarlane, Scarlett Johansson, John C. Reilly, Taron Egerton, Tori Kelly, Jennifer Saunders
Gênero: Infantil, Comédia, Musical
Duração: 108 min.