Crítica | Luke Cage - 1ª Temporada

A parceria entre a Netflix e a Marvel Studios é definitivamente um dos maiores acertos em termos de recepção crítica e aceitação popular que ambas as empresas fizeram até agora, atraindo até mesmo o braço da ABC (que já cuida de Agents of SHIELD) para o negócio. Depois de duas temporadas de Demolidor e a apresentação da desconhecida Jessica Jones no ano passado, é a vez do icônico Luke Cage ganhar sua própria série após projetos descartados e uma participação forte na série de Jones.

Ambientada alguns meses depois dos eventos de Jessica Jones, a nova série nos situa no bairro do Harlem e nos apresenta a Luke Cage (Mike Colter) balanceando uma vida de dois empregos enquanto luta para manter sua animosidade. Um dos trabalhos o coloca no círculo perigoso de Cornell Stokes, conhecido como o Boca de Algodão (Mahershala Ali), um gângster dono de boate que prepara-se para travar uma guerra com as gangues latinas a fim de dominar por completo o Harlem. Paralelamente, a detetive Misty Knight (Simone Missick) investiga tanto o mistério das habilidades de Luke Cage quanto a trajetória corrupta de Stokes, enquanto a vereadora (prima e sócia de Stokes) Mariah Dillard (Alfre Woodard) tenta garantir o sucesso de sua campanha política.

Em termos de tom, já cansamos de falar e reafirmar que a Netflix adotou uma abordagem muito mais sóbria, realista e urbana para os heróis que futuramente formarão o grupo dos Defensores (o último a ser apresentado é o Punho de Ferro, que ganha sua série em 2017). Se Demolidor era mesmo uma saga mafiosa dark e Jessica Jones uma variante distinta do neo noir, Luke Cage se aproxima de um blaxploitation anacrônico com pitadas de crime urbano a lá The Wire. Mover a história de Hell's Kitchen para o Harlem finalmente permite aos produtores - aqui chefiados pelo showrunner Cheo Hodari Coker - explorar novos ares desse universo urbano do MCU, contando aqui com um elenco quase que predominantemente negro, uma direção de arte mais característica do que as da séries anteriores e uma identidade cultural muito mais forte - desde citações a nomes de ruas importantes e origens de monumentos significativos, desde Malcolm X até grandes nomes da cultura musical negra.

E falando nisso, a trilha sonora é um dos grandes acertos da série. Tanto a composta por vários artistas que dão as caras no Harlem's Paradise, boate do Boca de Algodão, e preenchem a atmosfera com soul, blues e jazz de forma marcante para render sequências envolventes com ações paralelas (algo que vem se revelando como um padrão um tanto excessivo para a Netflix, mas chegaremos nisso depois), quanto pela excepcional trilha sonora original de Ali Shaheed Muhammad e Adrian Younge, que emula com perfeição o estilo slick e divertido da música de produções blaxploitation dos anos 70; conferindo um bem vindo anacronismo temático à série e personalidade à figura de Luke Cage. É o uso mais marcante de música em uma produção da Marvel desde o Awesome Mix Tape de Guardiões da Galáxia.

Caracterização e a criação de um universo rico e coeso são alguns dos principais acertos de Luke Cage. Quando chegamos à história em si, temos alguns problemas, já que é uma narrativa que demora para engatar e que carece de elementos que justifiquem a longa duração de 13 episódios de 50 minutos. Por exemplo, os fillers e subtramas são um problema para a Marvelflix desde a primeira temporada de Demolidor (com o insuportável núcleo de Foggy e Karen com a idosa), e aqui eles são simplesmente tediosos e repletos de clichê. Tudo o que envolve a personagem de Misty Knight é um atraso narrativo , principalmente quando uma reviravolta ocorre com seu parceiro Scarfe (Frank Whaley), levando Misty a um arco descartável e que tira a força de seus equivalentes. Não que estes sejam realmente muito melhores, já que os conflitos de Cage com Boca de Algodão tomam um rumo indireto e confuso em sua condução. Mas quando de fato ocorrem, vemos a série brilhar: é um conflito quase que político, já que Cornell é simplesmente incapaz de machucar o indestrutível Cage, e que se desenrola através de boca a boca nas ruas, procura de podres no passado de cada um e diálogos memoráveis.

Os núcleos narrativos também cometem alguns dos mesmos erros das séries anteriores, com o excesso de flashbacks e até algumas quebras na linearidade de certos episódios (dois deles começam pelo final, mas puro estilo e choque). É interessante para conhecermos o passado de alguns personagens, como a infância traumática do Boca de Algodão e o próprio núcleo de Luke quando era um presidiário chamado Carl Lucas, mas não deixam de ser fillers elegantes. Felizmente, sempre que retornamos para Cage, a performance de Mike Colter é o suficiente para manter o interesse, dada a presença imponente do ator e sua capacidade de explorar diferentes camadas do personagem, mesmo com uma persona tão nota única quanto de Cage - especialmente no episódio em que descobrimos a origem de seus poderes.

Seguindo a escola de seus predecessores, Luke Cage também se beneficia de um ótimo antagonista. Mahershala Ali surge magnético e poderoso como o Boca de Algodão, mesmo sendo uma figura sem a ira e pose de Wilson Fisk ou as habilidades manipuladoras de Kilgrave: é simplesmente um homem movido por sua ambição e sagacidade; e os diretores acertam ao usar constantemente o enquadramento de sua cabeça abaixo de um pôster do rapper Notorius B.I.G. com uma gigantesca coroa dourada. Ali é ótimo, mas não subestimem a força e presença de Alfie Woodard, excelente como Mariah. Os conflitos familiares entre os dois rendem algumas das mais bem atuadas cenas da série, e Mariah mostra-se uma antagonista ainda mais perigosa para Cage ao criar uma imagem pública danosa do herói, influenciando a população a acreditar que a existência de um homem à prova de balas é danosa para todos; já aproveitando um eixo temático de Capitão América: Guerra Civil.

O mais curioso é que Woodard também estava em Guerra Civil, mas como outra personagem...

Há ainda um terceiro vilão na figura de Kid Cascavel, que ganha muita malícia e sadismo com a ótima performance de Erik LaRey Harvey, oferecendo também um oponente mais pessoal no passado de Cage e com uma ferramenta capaz de verdadeiramente machucar o protagonista - puxando aí uma referência de Homem de Ferro 2 e cujo efeito rende uma sequência absurda, porém brilhante, que parece o resultado de uma transa entre Breaking Bad e Pulp Fiction. Mas Cascavel não deixa o pacote pesado demais, já que 13 episódios oferecem tempo de sobra para explorar diferentes arcos, evitando que a série caia na armadilha de Jessica Jones de manter o mesmíssimo vilão por uma temporada inteira.

No quesito ação, Luke Cage fica bem abaixo das anteriores. O realismo e a violência gráfica ainda são os principais códigos a serem seguidos, mas a decupagem das sequências de pancadaria, tiroteio e perseguições é preguiçosa e sem nenhuma inovação. Só funciona quando temos alguma música rap inserida ao fundo ou pela imagem impactante que é ver um homem negro sendo baleado constantemente sem nenhum efeito, de maneira similar como acontecia em O Exterminador do Futuro. O que favorece esse tipo de cena são os belos cenários, que vão de apertados corredores (Marvelfilx e seus corredores...) até luxuosos teatros vazios. 

Luke Cage poderia ter sido mais do que o que recebemos aqui. Tem uma construção cultural e iconográfica primorosa, mas ainda comete os mesmos erros das séries anteriores da parceria da Marvel com a Netflix, ao trazer uma história de estrutura tortuosa e um conteúdo que é forçado a caber nos 13 episódios excessivamente longos. Talvez a Netflix devesse repensar o formato de 13 episódios, visto que algo mais curto (como os 8 episódios de Stranger Things) flui melhor e não depende de uma enxurrada de arcos e subtramas desnecessárias.

Luke Cage - 1ª Temporada (EUA - 2016)

Criado por: Cheo Hodari Coker
Direção: Paul McGuigan, Phil Abraham, Andy Goddard, Marc Jobst, Clark Johnson, Magnus Martens, Sam Miller, Vicenzo Natali, Guillermo Navarro, Tom Shankland, Stephen Surjik, George Tillman Jr, Steph Green
Roteiro: Cheo Hodari Coker, Matt Owens, Charles Murray, Jason Horwitch, Christian Taylor, Akela Cooper, Aïda Mashaka Croal
Elenco: Mike Colter, Mahershala Ali, Simone Missick, Alfre Woodard, Rosario Dawson, Jaiden Kaine, Erik LaRey Harvey, Frank Whaley, Theo Rossi
Emissora: Netflix
Episódios: 13
Gênero: Ação, Aventura
Duração: 50 min

https://www.youtube.com/watch?v=wQGemT66yhc&t

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Crítica | O Orfanato da Srta. Peregrine para Crianças Peculiares

A busca pelo próximo Harry Potter é incansável. Não estamos restritos apenas à indústria cinematográfica de produção massiva, mas sim a própria literatura que deu origem a diversas criações que tentam emular o sucesso da franquia mágica. Intrinsicamente ligados, o Cinema depende (mais do que nunca) do próximo sucesso literário infanto-juvenil para encomendar trilogias ou sagas inteiras baseadas em obras muitas vezes vazias – Saga Crepúsculo e Cinquenta Tons.

Órfã de uma saga de muitos milhões, as editoras se contentaram com muitas obras de alguns milhões. Nessa onda vieram A Cidade dos Ossos, Jogos Vorazes, Jogo do Exterminador, Saga Divergente, Maze Runner, entre diversos outros que ainda não ganharam relevância para ganhar uma equivocada adaptação cinematográfica. Um tanto quanto tardiamente, O Orfanato da Srta. Peregrine para Crianças Peculiares finalmente ganhou seu filme – mesmo sendo um livro de qualidade um tanto superior à de tantas outras sagas derivadas – até mesmo com direito a um diretor de nome relevante.

Como havia apontado na crítica do filme que estreou há pouco tempo, entre suas qualidades, a que mais se destacava era o enorme convite para conferir a obra original de Ransom Riggs. Com a curiosidade persistindo em minha cabeça, acabei lendo o livro poucos dias depois da cabine do filme. Como esperado, o longa adapta livremente muitas coisas tomando escolhas mais adequadas a uma obra hollywoodiana. O livro, por outro lado, é melhor que o filme, mas não por longa margem. Descobri exatamente o que estava esperando.

As tramas são muito similares entre si. Jacob, um menino ordinário e sem graça, adorava as histórias do avô sobre as crianças peculiares com quem convivia no orfanato de srta. Peregrine quando era jovem em 1940. Sua vida muda quando seu avô subitamente é morto por uma criatura bizarra que somente ele conseguiu ver na fatídica noite. Deprimido, seu psicólogo recomenda que ele vá para Cairnholm no País de Gales conversar com a srta. Peregrine e descobrir mais sobre o passado de seu avô. Junto de seu pai desinteressado, Jacob busca o orfanato, srta. Peregrine e as crianças peculiares. Porém, sua jornada não será tão simples quanto imaginava.

Indo comumente contra a maré, não segui o conselho que tantos amigos meus dizem: evite ler o livro depois de ver o filme. Logo, comparações serão inevitáveis. Riggs opta por uma narrativa em primeira pessoa de ponto de vista único com narrador-personagem. Jacob é quem conta toda a história e, mesmo tendo apenas 16 anos, ele não foge da característica que é quase inerente à esse tipo de narrador: é basicamente um intelectual fantástico em interpretar os outros e ser muito mais capacitado em tudo do que alguém poderia ser com 16 anos. Jacob seria a epítome do adolescente racional, como tantos outros narradores desse tipo.

Não que seja grande defeito, mas é sempre engraçado ver pensamentos e vocabulários de um adulto em diálogos monumentais de crianças. No caso, até daria para casar com a proposta de todos os outros peculiares serem muito mais velhos do que aparentam e, portanto, Jacob acompanharia a idade mental de cada um deles. Felizmente, Riggs consegue encaixar alguns chiliques genuínos à adolescência entre diversos diálogos com Jacob e seu pai.

Até uns 40% do livro, Riggs trabalha essencialmente essa enorme problemática de estabelecer seu protagonista niilista com seu pai tão desinteressado como ele – só que sem a justificativa de ser deprimido. Aliás, essa que é uma das grandes deficiências do filme, é muito melhor trabalhada aqui. Jacob tem seu longo momento de luto, a relação com seu avô é profundamente construída através de memorias confidenciadas ao leitor e também toda incompatibilidade paterna entre Jacob e Franklin.

Franklin cresce bastante graças a competência de Riggs em delinear ele também como um loser assim como Jacob – mesmo que o narrador nunca se dê conta disso. Franklin, mesmo repetitivo, é um dos personagens mais ricos do livro. Sem achar ruim toda a grande relação de afeto que seu pai tinha com seu filho, ele mesmo repete, digamos, os sins of the father – Abraham é uma figura paterna deficitária para Franklin e que, por sua vez, é um insosso com seu filho, Jacob.

Nesse caso, Riggs delineia a imaturidade de Jacob, coerente com sua idade real, que não consegue interpretar seu pai tão bem quanto expõe os desejos de Emma, seu interesse romântico, para o leitor. Talvez, a grande amálgama de Franklin seja oriunda da pouca importância e afeto que ele recebeu de Abe. Disso, desdobram-se todos os fracassos e desistências na vida, afinal se até o próprio pai dele parecia ter desistido, por que continuar tentando?

Enriquecendo esse lado, Riggs ajeita a mãe de Jacob como uma ricaça herdeira de uma rede de farmácias na Flórida. Porém, ambos possuem essa enorme deficiência de relacionamento com o filho. No caso da mãe, é mais superficial – o autor não elabora muito bem isso durante o vasto estabelecimento narrativo anormal para livros infanto-juvenis de aventura. Mesmo que seja proposital para conferir relevância em um conflito posterior envolvendo o orfanato, não deixa de ser esquisito. Por O Orfanato da Srta. Peregrine para Crianças Peculiares ser o seu livro de estreia, isso é compreensível.

Mesmo novato na literatura, Riggs estudou consideravelmente storytelling, pois de forma alguma o livro se torna maçante. Ler O Orfanato da Srta. Peregrine para Crianças Peculiares é uma tarefa fácil e que entretém bastante, pois o autor encaixa muitíssimo bem os pontos de virada da obra, além de manter diversas características peculiares de sua aventura em segredo por muitas páginas.

Como o narrador é o protagonista, acabamos o conhecendo a fundo, seus medos e paixões e mesmo com certo temperamento irritante, é agradável ler a história através de seu ponto de vista. A escolha é certeira, pois assim como Jacob, o leitor é introduzido a todo aquele universo mágico pela primeira vez então há muita pureza de sentimentos no relato dele. Riggs também é ótimo para descrever cenários, ambientes e ação com vocabulário vasto. Além de explicar, através de didatismo coerente, toda a mitologia “nova” criada por ele.

O que carece de maior descrição é justamente Jacob que é tão invisível quanto Millard para o leitor. O orfanato, muitas vezes, também não é bem descrito assim como srta. Peregrine e os outros órfãos – até mesmo Emma. Apesar de grave, essa nem chega a ser a maior deficiência do livro. O que havia achado que era um problema único do filme, se repete aqui em grau um tanto assustador, pois há elementos ótimos que o Riggs pincela, mas logo abandona para manter a locomotiva aventureira se movimentando altivamente.

Sim, os coadjuvantes carecem enormemente de conflitos, pois na escrita, uma parte considerável deles tem alguma personalidade única. No fim, muitos deles tornam-se redundantes e tão pálidos quanto no filme. Não gostaria de dizer quais são os elementos que Riggs pincela, mas eles evocam paixões e uma faceta muito obscura daquele orfanato preso no tempo. Obviamente, isso é introduzido por Enoch, o personagem mais propenso a maldade entre todos os órfãos.

Nesse jogo de esconder detalhes importantes, próximo ao clímax que surge o antagonista espectral que adiciona uma carga de outros detalhes e conflitos de mitologia que só serão apreciados em Cidade dos Etéreos, segundo livro da trilogia planejada – para se perceber como o autor não é idiota, conhecendo muito bem os vícios de entretenimento e interesses de seu público alvo. A srta. Peregrine também sofre com a palidez da escrita, mas ele tenta conferir mais contornos psicológicos para a personagem em algumas confidencias de Jacob. Infelizmente, isso nunca é posto em conflito. Jacob é o típico adolescente cheio de pensamentos recalcados apregoando muito juízo de valor equivocado em muitas passagens.

Riggs parece reconhecer os problemas de descrição que acometem seus personagens e, nisso, vem justamente a peculiaridade do livro: suas ilustrações. Na verdade, são fotografias vintage posadas para causar estranheza e calafrio. O ensaio é muitíssimo eficiente nisso, pois claramente há alguma inspiração naquelas fotografias que as pessoas insistem em dizer que vieram da deep web, o lado obscuro da internet. Algumas, causam sim algum tipo de incômodo, mas nada que seja assustador demais para adolescentes de 13 a 17 anos.

A graça é que as fotografias tornam o livro mais rico, pois todas são bem encaixadas na narrativa. Basta um personagem citar alguma foto que ela não demora muito para surgir preenchendo a página inteira. Aliás, as fotos também revelam algumas coisas que Riggs esquece pelo caminho desta primeira obra: peculiares retratados que não aparecem no restante do livro, sejam os gêmeos, a menina retorcida ou o cachorro humano.

Voltando aos personagens, o grosso da interação de Jacob reside no seu interesse romântico em Emma, a menina manipuladora do fogo – no filme, trocaram aparências e poderes de alguns personagens, além de contar com outros peculiares. Toda a problemática dela ser apaixonada pelo avô de Jacob é um pouco melhor explorada, além do choque da morte de Abe afetar muito mais as crianças do orfanato do que no filme. Riggs sabe elaborar relativamente bem essa grande paixão, apesar de carecer de explicar a motivação, fora a beleza, para que os dois se apaixonem. Uma história de amor interessante, com o conflito escondido de Emma talvez projetar os sentimentos que tinha por Abe em Jacob: algo que só vou descobrir nos livros posteriores.

O Orfanato da Srta. Peregrine para Crianças Peculiares carece de substância em diversos personagens, além da correria típica de seu clímax burocratizado que nada mais é do que um belíssimo pontapé para comprar a trilogia inteira. Por outro lado, Ransom Riggs cria uma história muito divertida, com diversas fotografias creepy, além da ambientação de fantasia tenebrosa ser bastante convidativa para os leitores. É impossível perder o interesse no livro, ainda mais depois do longo investimento em conflitos muito humanos no primeiro ato da obra. Se ficou interessado após ver o filme de Tim Burton, a compra é garantida e o entretenimento, também.

O Lar da Srta. Peregrine Para Crianças Peculiares (Miss Peregrine's Home for Peculiar Children, EUA – 2011)
Autor:  Ransom Riggs
Publicação no Brasil: Intrínseca
Tradução: Ângelo Lessa
Páginas: 352 páginas


Crítica | Harry Potter e a Criança Amaldiçoada

O bruxinho está de volta nessa continuação que você talvez até tenha pedido, mas é como diz o ditado, cuidado com o que deseja. Pouco após J.K. Rowling ter terminado a famosa série de livros, ela disse que iria dar um tempo no mundo bruxo e experimentar coisas novas, dessa fase nasce o suspense político “Morte Súbita” e a série de livros policiais das aventuras do detetive Cormoran Strike (O chamado do Cuco, Bicho da Seda, etc.).

Mas essa fase não durou muito, as novas aventuras da Rowling nem chegaram perto do apelo que Harry Potter teve. Ela então não tardou a mudar de ideia e logo retornou ao universo do "menino que sobreviveu". Escreveu o roteiro do filme Animais Fantásticos e Onde Habitam que vai estrear esse ano e autorizou essa peça que não foi escrita por ela e sim por Jack Thorne, premiado dramaturgo britânico.

Mas será que esse retorno ao mundo bruxo valeu a pena? A história começa pouco depois de onde o sétimo livro parou, com Harry, Ginny, Rony e Hermione mandando seus filhos para Hogwarts, seus filhos são os novos protagonistas da história, Albus (Filho do Harry) e Rose (Filha do Rony e Hermione) costumavam ser grandes amigos mas simplesmente por Albus ter sido escolhido para integrar a casa da Sonserina eles param de se falar, assim ele acaba fazendo amizade com Scorpius (filho de Draco Malfoy).

O que é interessante aqui é que Albus tem problemas com o pai. Albus ao contrário do pai dele detesta Hogwarts, seus colegas e até mesmo a sua família acham um absurdo um Potter ter sido escolhido para a Sonserina, isso faz com que Albus se sinta muito só. Harry não parece entender pelo que seu filho está passando, afinal em sua cabeça Hogwarts é o melhor lugar da face da terra, esse pequeno elemento já faz com que os dois se estranhem.

O alívio de Albus é o seu grande amigo Scorpius. Scorpius é com certeza o melhor personagem novo, ele é engraçado, inteligente e os dois personagens (Albus e Scorpius) tem uma ótima química, é um bromance que funciona.

Hermione é ministra da magia e Harry agora é chefe do departamento de execução das leis da magia. Harry confisca um vira-tempo ilegal. Pouco depois de o livro “Harry Potter e a Ordem da Fênix” ter sido lançado, Rowling explicou que destruiu todos os vira-tempos na sala de mistérios porque ela percebeu que mexer com tempo é uma coisa complicada e ela quis descartar de uma vez por todas a possibilidade de usar esse recurso novamente. Assim é bastante engraçado que toda a trama da peça se baseia exatamente nisso que ela procurou evitar, ainda contradizendo regras que você fã de Harry Potter sabe muito bem que foram estabelecidas na mitologia.

Amos Diggory, o pai do finado Cedrico Diggory ficou sabendo que Harry tinha confiscado um vira-tempo e pede a ele para voltar no tempo para salvar o seu filho, já que ele não precisava morrer. Harry obviamente recusa, mas Albus ouve a conversa e num ato de rebeldia contra seu pai resolve ir atrás do tal vira-tempo, assim ele convence Scorpius a ir com ele buscar o vira-tempo.

A partir daqui a história vira uma espécie de “De volta para o futuro 2” que muitos estão cansados de ver. Albus e Scorpius viajam entre realidades alternativas desde uma realidade em que Rony e Hermione nunca ficaram juntos portanto seus filhos nunca nasceram e Hermione é uma professora chata de poções à la Snape para uma em que Harry morre na batalha de Hogwarts e Voldemort reina, onde tudo é muito sombrio.

A história é praticamente só um “E se” da vida e sim, tem um vilão. Um vilão muito óbvio e de longe o pior personagem da história, tem uma das piores motivações que eu já vi, é simplesmente terrível.

Alerta de Spoiler

A história da “Criança amaldiçoada” é a seguinte, há um boato dizendo que  Draco e sua esposa Astoria tinham  problemas para ter um filho Assim Lucio e Draco, para garantir o futuro dos Malfoy, enviaram Astoria de volta no tempo para ter filho com Voldemort. Esse boato já é absurdo, nós sabemos que nem mesmo Lucio tinha simpatia por Voldemort, ele o obedecia por medo e Draco muito menos, mais fácil seria eles darem a esposa pra qualquer zé-ninguém sem nem mesmo precisar do vira-tempo.

Pois bem, Scorpius também é muito repudiado em Hogwarts e sofre bullying por ser “filho do Voldemort” apesar dele ser a cara do Draco. Há uma cena em que Draco pede para Harry reafirmar que todos os vira-tempos foram destruídos na batalha do departamento de mistérios pois seu filho sofre muito com o boato, o que não custaria nada, mas Harry simplesmente se recusa dizendo que logo vão esquecer isso tudo e que ele mesmo nem acredita nesse boato.

Mas em outra cena quando Harry está procurando seu filho na floresta proibida de Hogwarts, o centauro Bane diz a Harry que tem uma “sombra” sobre o seu filho, Harry associa isso a Scorpius, fica paranoico e proíbe seu filho de andar com ele, contradizendo o que ele diz a Draco e se tornando um completo babaca.

Alguns personagens as vezes não soam como eles mesmos em alguns momentos, por exemplo, no caso de Rony, ele sempre foi um alívio cômico mas era bem mais que isso, ele era um personagem útil, na realidade alternativa sombria ele não consegue nem segurar em uma varinha direito... ele, um bruxo adulto da resistência  contra Voldemort segurando a varinha ao contrário é no mínimo ridículo.

Draco, por outro lado é um dos poucos personagens que eu realmente gostei da mudança, você vê que ele realmente evoluiu como pessoa, não é mais aquele garoto covarde e fará qualquer coisa pelo bem de sua família sem hesitar.

Por fim, a criança amaldiçoada não era Scorpius e sim uma garota chamada Delphi, que é filha do Voldemort e da Bellarix Lestrange e indiretamente atiça o Albus a pegar o vira-tempo, pois o plano dela era voltar no dia em que Voldemort matou os pais de Harry para alertá-lo para não tentar matar o menino pois foi aí que ele enfraqueceu, se ele não tivesse feito isso conquistaria o mundo muito mais rápido e ela poderia governar ao seu lado.

Mas depois de derrotada por Harry, Albus e seus amigos ela admite que tudo que ela queria era um pai, uma relação paternal... quando seu pai é Voldemort é melhor ficar sem pai mesmo, preciso nem comentar.

Fim dos spoilers

A minha conclusão depois de ler essa história é que ela não chega nem aos pés de qualquer outro livro de Harry Potter, deveria ter ficado como spin off e não vendida como “A oitava história”. O enredo tem um plot preguiçoso demais e soluções mais preguiçosas ainda. Se for ler, não tente pensar muito porque se fizer isso provavelmente vai detestar tanto ou mais do que eu que li até com certo ceticismo. 

Harry Potter e a Criança Amaldiçoada (Harry Potter and the Cursed Child, Estados Unidos – 2016)

Autor: J.K. Rowling, John Tiffany, Jack Thorne
Editora: Rocco
Gênero: Fantasia, Aventura
Páginas: 352