Crítica | Porta dos Fundos: Contrato Vitalício
O sucesso que o Porta dos Fundos estabeleceu na internet com suas esquetes no YouTube é impressionante. Provavelmente o grupo de humor mais bem sucedido do país nos últimos anos, inspirando toda uma onda de canais de comédia do portal, seja através de episódios curtos ou narrativas seriadas. A passagem para o cinema era inevitável, em uma era onde praticamente qualquer youtuber popular é capaz de ganhar uma produção cinematográfica - independente de sua qualidade. Por isso, o que encontramos em Contrato Vitalício é o canal em uma forma mediana de seu humor característico, mas que surpreende por um aspecto que curiosamente passa longe da comédia.
A trama inicia-se no Festival de Cannes, quando os amigos Rodrigo (Fábio Porchat) e Miguel (Gregorio Duvivier) são premiados com a Palma de Ouro após sua última colaboração, como ator e diretor, respectivamente. Embriagados durante o coquetel de celebração, Rodrigo assina em um guardanapo um contrato vitalício que garante sua participação em todos os filmes que Miguel for realizar no futuro. Na manhã seguinte, Miguel desaparece repentinamente, e fica sumido por cerca de 10 anos, quando retorna enlouquecido e paranóico, clamando ter sido raptado por alienígenas que habitam o centro da Terra. A fim de alertar o mundo de uma suposta invasão, Miguel começa a produção de um filme duvidoso para relatar sua experiência, e Rodrigo não terá escolha a não ser participar.
É uma premissa muito interessante e que podemos facilmente associar ao humor do Porta, que é consideravelmente mais elevado do que a maioria das produções de gênero do país (quando Até que a Sorte nos Separe e De Pernas pro Ar viraram trilogias, alguma coisa deu errado), e o roteiro de Porchat e do diretor Ian SBF é eficiente ao extrair o melhor da situação. É uma fórmula previsível e batida, da vida de glória do protagonista indo lentamente ao Sétimo Círculo do Inferno em situações que seguem a narrativa de forma constante e até no formato de esquete, dependendo da subtrama abordada - o torturador e a namorada insuportável de Rodrigo (vivida por Thati Lopes) são os principais exemplos.
Mas como toda comédia que aposta em estruturas diversas, muita coisa não vai funcionar, e é o caso de Contrato Vitalício. Ainda que a porção central da história seja cativante e algumas piadas acertem, outras são simplesmente monótonas e sem graça dependendo do seu tipo de humor, e diria que até abaixo do nível do canal. A presença de estereótipos batidos e cartunescos também torna a comédia desleixada e preguiçosa, especialmente com o agente afetado vivido por Luis Lobianco e a exagerada coach de elenco vivida por Julia Rabelo. Insistir em tomadas longas de uma piada também é perigoso, e mostra-se letal aqui quando somos forçados a engolir cenas em um "dialeto alienígena" que consiste simplesmente nos atores fazendo barulhos com a boca
Porém, o aspecto que Contrato Vitalício é surpreendentemente efetivo - e que ninguém poderia esperar - passa longe da comédia, e sim o thriller psicológico. É isso mesmo, caro leitor, o filme do Porta dos Fundos consegue ser mais envolvente e intenso quando acompanhamos a vida de Rodrigo sendo destruída e devastada, com a performance de Porchat sendo hábil em garantir um afeto e identificação por parte do espectador, o que torna sua decaída tão... assustadora. A produção do filme sci-fi que mais parece uma produção B da Boca do Lixo é assombrosa, e o resultado final claramente será uma bomba desastrosa que acabará com a carreira de todos.
A maioria das situações enfrentadas pelo protagonista obviamente são postas para provocar o riso, mas em certo ponto só é possível sentir pena de Rodrigo e, quem diria, torcer para que a situação termine bem - quem diria que Serginho Mallandro poderia render uma cena quase assustadora. Vale mencionar também que o ato final do filme trilha por uma alternativa levemente sombria, bem explorada pela direção de Ian SBF. Não desmerecendo o valor técnico de comédias, mas é um fato de que é um gênero menos arriscado visualmente (com suas exceções, claro, fica o exemplo do brilhante Edgar Wright), e Ian SBF mostra-se competente em sua câmera criativa e no uso de elipses rápidas para marcar a passagem de tempo. Depois do excelente Entre Abelhas e da eficiência técnica em um gênero que exige pouco, fica a torcida para que SBF entre em projetos mais ambiciosos.
É possível dar algumas risadas em Contrato Vitalício, mesmo que seja um humor muito abaixo do que o canal Porta dos Fundos já tenha oferecido no YouTube. Porém, o que certamente é mais impressionante aqui, é a capacidade do grupo em criar uma história perturbadora.
Vindo de uma comédia escrachada com piadas escatológicas, é como achar petróleo no esgoto.
Crítica | É Fada!
Certas vezes na vida, é preciso ver para crer. Se eu ouço falar que Batman & Robin é uma das obras mais terríveis e vergonhosas da História do Cinema, simplesmente preciso ver com meus próprios olhos a dimensão da catástrofe. É quase um masoquismo, mas é da natureza humana a curiosidade por imperfeições. Dessa forma, se eu vejo que a youtuber Kéfera Buchmann estará nos cinemas interpretando uma fada modernete, eu me debato, contorço e grito internamente de pavor... Mas eu preciso ver. Porém, nada poderia me preparar para o horror residente em É Fada!
Chupinhada de praticamente todas as variações do gênero que você já viu, a trama é adaptada do livro "Uma Fada Veio me Visitar", de Thalita Rebouças, e acompanha a fada Geraldine (Kéfera), que perde suas asas após levar a seleção brasileira a tomar a agora infame goleada contra a Alemanha na Copa do Mundo de 2014 (juro que esse é o incidente incitante) e é incumbida de ajudar uma garota a fim de recuperá-las. Essa garota é a adolescente Júlia (Klara Castanho), que acaba de se mudar para uma escola nova e encontra dificuldades em se relacionar com as meninas "populares", recebendo assim conselhos e dicas fashion da fada Geraldine.
Não há absolutamente nada de novo aí. Se você já viu filmes como Cinderela, O Encanto das Fadas e até o vergonhoso O Fada do Dente, você conhece de cor todos os pontos pelo qual o roteiro de Patrícia Andrade, Fernando Ceylão e Sylvio Gonçalves construirá sua narrativa. O problema é que o trio adota todos os clichês de filmes norte americanos, esboçando um universo colegial que é fruto de convenções e estereótipos inexistentes no país (erro que Mate-me Por Favor também cometia), tornando-se assim, artificial e risível. Todos os núcleos e subtramas são rasos e não despertam o menor interesse, pecando também pelos estereótipos forçados e as figuras cartunescas, desde a mãe dondoca de Júlia, passando por todas as insuportáveis patricinhas do colégio até a própria Geraldine.
As "lições" de moral de Geraldine também são muito questionáveis, ainda mais para uma produção que mira-se no público adolescente. De acordo com nossa fada madrinha, o importante para Júlia é se "vestir melhor", alisar o cabelo e ganhar popularidade nas redes sociais e entre os garotos mais cobiçados da escola. Um extreme makeover - palavras de Geraldine - que já vimos um milhão de vezes, e que são mais apropriados para narrativas dos anos 50 do que uma obra ambientada em 2016. Isso sem falar em toda a contradição que o arco de Júlia sofre ao longo da narrativa, mas isso também é o menor dos problemas.
Com um material podre em mãos, era de se esperar ao menos que a direção de Chris D'Amato pudesse aproveitar alguma coisa, mas sua condução é descontrolada e sua mise em scene totalmente amadora, na medida em que tomadas aéreas e time lapses de drones são utilizados sem a menor função (nem estética, já que a diferença na qualidade de imagem entre tais cenas e as demais são gritantes) e uma simples cena de diálogo é prejudicada por quebras de eixo e cortes descontrolados da montagem de Diana Vasconcellos. Pior ainda são os momentos que dependem de efeitos visuais, desde a "macrofotografia" falseada para as cenas em que Geraldine surge diminuída ou os efeitos de "magia", "levitação" e o cachorro falante mais assombroso que você verá na vida. Esteticamente, nada se salva. Céus, até mesmo a montagem corta pedaços inteiros do filme dos quais personagens comentam em diálogos como se estivesse presentes na obra. É bizarro demais.
Então chegamos à Kéfera Buchmann. Não sou familiar com seu canal ou suas obras literárias, mas como atriz a moça é um desastre. Geraldine já é insuportável graças ao texto estranho e anacrônico ao combinar diversos estrangeirismos que doem a espinha ao serem pronunciados, mas Kéfera eleva a personagem a níveis de Jar Jar Binks ao trazer uma expressão sempre histérica e dependente de gestos, alterações no timbre da voz e tudo o mais que o espectador pode achar irritante. Não bastasse frases do tipo "Não sou fada, eu sou fadona" ou o fato de a personagem constantemente tirar objetos de seu ânus e enfiar a varinha no nariz, ainda somos forçados a acompanhar um clipe musical onde tal frase é o principal refrão durante os créditos finais.
É Fada! consegue ser pior do que eu poderia imaginar, não se encaixando nem mesmo na categoria de filmes ruins que agradam pela trasheira. É um pouco ""adulto"" demais para crianças, e estúpido demais para uma faixa etária mais alta. Em outras palavras, é uma aberração que não deve agradar a ninguém além dos fãs de Kéfera.
Fada-se esse filme.
É Fada! – (Idem, Brasil, 2016)
Direção: Cris D’Amato,
Roteiro: Bárbara Duvivier, Fernando Ceylão, Sylvio Gonçalves (baseado na obra de Thalita Rebouças)
Elenco: Kéfera Buchmann, Klara Castanho, Charles Paraventi, Bruna Griphão, Silvio Guindane, Aramis Trindade, Christian Monassa, Carla Daniel, Lorena Comparato, Clara Tiezzi, Otavio Martins, Isabella Moreira
Duração: 85 min
Crítica | 12 Horas para Sobreviver: O Ano da Eleição
Estabelecendo algum sucesso na sua franquia descerebrada, James DeMonaco atinge o clímax de sua trilogia desconexa que só conta o tema como laço unificador. Obviamente inspirado pelo horroroso quadro político americano dessas eleições de 2016, o criador faz vista-grossa para um dos lados, para criar o filme mais bobo e pretensioso que já vi neste ano que busca mimetizar a corrida presidencial americana – de algum modo.
Desistindo do gorefest e do horror que marcavam os dois medíocres longas anteriores, DeMonaco faz um filme de ação mal coreografado com forte viés ideológico, rasteiro e preconceituoso banhado à sangue falso. Dessa vez acompanhamos a corrida presidencial entre um homem que pretende manter o establishment do Expurgo anual contra uma candidata que teve a família inteira assassinada durante o Expurgo. Portanto, ela pretende acabar de vez com a noite de crimes que nessa altura já é tratada como feriado nacional de grande comemoração.
O discurso para dizimar o candidato oponente é acusá-lo de manter o Expurgo graças aos lucros que corporações privadas e algumas governamentais conseguem graças a enorme matança que sempre elimina os mais pobres e minorias – nada disso é bem justificado, DeMonaco apenas joga os factoides na tela.
Como todo roteirista preguiçoso, ele logo estabelece o conflito principal do modo mais maniqueísta possível. O pastor e candidato “republicano” é apenas um fantoche de um líder de uma organização capitalista poderosa que pretende exterminar a oponente na eleição, a senadora Charlie Roan.
Não satisfeito apenas com uma linha narrativa estúpida repleta de clichês, o roteirista insere mais outra onde acompanhamos o drama diário de um proprietário de uma lojinha de mercadorias. Com seu seguro contra o Expurgo cancelado, Joe monta guarda para proteger seu negócio da terrível noite. Porém ele consegue criar uma rixa com uma psicopata que quer roubar os doces de sua loja – literalmente.
O investimento com os personagens se restringe aos estereótipos e cartas raciais usadas do modo mais pejorativo possível. DeMonaco demoniza o empresariado constituído por brancos, insere símbolos nazistas, templários, confederados e frases de ódio nos uniformes da milícia branca também paga pelo empresariado. Já os negros e hispânicos são os heróis da resistência. Para amenizar um pouco isso, ele também apresenta alguns psicopatas afrodescendentes como no caso da menina que quer matar Joe por causa de uma barra de chocolate. Os únicos brancos não condenados na fita são justamente o casal protagonista: a presidenciável Charlie Roan e seu guarda-costas Leo Barnes – sim, o mesmo personagem do filme anterior.
Obviamente isso não seria problema, caso o filme não fosse tão pretensioso e autoindulgente como ele pensa que é. DeMonaco faz questão de esfregar na cara do espectador que seu filme não se trata mais da noite de crime, mas sim de alguma versão de guerra racial. Grande parte dos conflitos são catalisados por conta disso. Há uma cena absurda onde Leo discute por Joe sem nenhuma razão aparente, mesmo depois do lojista ter salvo a vida dele. O racismo nem mesmo fica implícito, pois os diálogos deploráveis sempre enfatizam a cor de pele dos personagens.
Alguns exemplos de frases que DeMonaco escreve: “Você deveria ter mais respeito depois desse negro ter salvado a sua vida. ”; “Deixa eu te dizer, eu gosto de pessoas negras, mas não vou deixar você atirar nesses branquelos. Esses são os nossos branquelos. ”, entre diversas outras linhas de diálogo tenebrosas demais para serem mencionadas aqui.
O roteirista/diretor não consegue desenvolver um pingo de qualquer potencial que algum personagem possa ter. Todos são literais, além dele tratar a senadora Charlie de modo bipolar. Ora heroína boazinha, epítome da moralidade e do bom-senso, ora uma verdadeira hipócrita. Diversos momentos são risíveis, mas é muito engraçado quando a personagem decide passar a noite do Expurgo em sua própria casa, como uma cidadã comum, para não perder votos. Porém não se omite ao plano de Leo para proteger a casa com trocentas câmeras, placas de aço cobrindo janelas e portas, além do apoio de vinte homens armados. Coerente, não?
Também há outras besteiradas como o ‘turismo do crime’ onde diversos viajantes europeus (obviamente) vem até Washington para participar do Expurgo. A história é muito raquítica para manter seu interesse ativo por quase duas horas. São reviravoltas previsíveis de um roteiro preguiçoso e pedante. Até mesmo os personagens chegam no cúmulo de irritar os espectadores graças à qualidade tenebrosa dos diálogos que evidenciam todas as escolhas estapafúrdias que tomam.
12 Horas para Sobreviver poderia se valer de ao menos ter uma direção competente, mas isso também parece ser feito no desleixo. A decupagem é baseada em muitas sequências com câmeras nos ombros, cheias do efeito câmera trêmula, com objetiva fixa – quase sempre muito aberta, gerando certa mesmice visual só quebrada em planos de close ou de câmera lenta. Aliás, as sequências de slow motion quase sempre servem para sensualizar os corpos fantasiados das psicopatas que decidem matar Joe e sua lojinha. Por ser um filme bastante barato de 10 milhões de dólares, ainda não é possível ver o Expurgo em toda sua carnificina, já que a cidade inteira parece um deserto por falta de dinheiro para preencher esses espaços vazios.
Nem a matança presta já que tudo se resume aos velhos tiroteios sem-graça de sempre e DeMonaco não se esforça em nada para entregar algum elemento mais rico ou diferenciado visualmente. Além do filme ser bastante dilatado: não tem história suficiente para contar durante sua longa projeção. O diretor também não faz questão de melhorar a performance de seus atores. Boa parte do elenco esbanja atuações dignos de filmes pornô de quintal – é ruim desse jeito, bem canastrão e tosco.
Há dois modos de ver este 12 Horas para Sobreviver: a mais correta é desligando seu cérebro sem interpretar nada ou ligar para a mensagem bizarra que o filme transmite. Desse jeito, é possível que você tire algum divertimento dessa obra. Porém, assim que você sacar que o longa é muito enviesado com pontos de vista absurdos, preconceituosos, simplistas, maniqueístas e equivocados, será extremamente difícil assistir até o fim. Boa sorte.
Crítica | Assassino à Preço Fixo 2: A Ressurreição
Durante a década de oitenta vieram os tais filmes de “brucutus”. Filmes de ação, nos quais o herói indestrutível matava todos os vilões e salvava a mocinha no final. Não foi à toa que Sylvester Stallone chamou Jason Statham para participar da franquia “Os Mercenários”, pois nos tempos de hoje o britânico se mostrou ser um descendente desses heróis.
Em “Assassino a Preço Fixo 2 – A Ressureição”, Statham volta a fazer o papel que fez em todos os seus filmes de ação: o herói misterioso, metódico e frio, mas que tem um bom coração. E para quem gosta desse gênero não vai se decepcionar com esse novo longa dessa “franquia”. Pois ele segue de maneira bem fiel a estrutura do cinema brucutu que foi descrito acima.
Arthur Bishop (Jason Statham) está aposentado e quer esquecer a sua vida como assassino profissional. Quando o traficante Riah Craine (Sam Hazeldine) sequestra o amor da vida de Bishop, Gina (Jessica Alba), o ex-assassino terá de realizar uma missão dada por Craine: matar três pessoas e fingir que foram acidentes.
A trama é bem simples e estúpida. E quando esse roteiro tenta ser mais complexo ou mais profundo do que ele deveria ser se torna no mínimo risível. É só prestar atenção na maneira em que Gina conhece Bishop, é exageradamente confuso. E como na maioria dos filmes de gênero, o roteiro do longa segue as seguintes regras: personagens unidimensionais; furos de lógica e de história; e frases de efeito. Exigir mais que isso é uma grande ingenuidade.
As sequências de ação funcionam, muito por conta da presença física de Statham. Como o ator utiliza poucos dublês, vemos realmente ele realizando os movimentos de luta, com muita verossimilhança. E é importante dizer que dá para entender a maioria das cenas de ação, porque a câmera não fica tremendo e a montagem não enche de cortes desnecessários. Mas, infelizmente, o diretor Dennis Gansel erra por não deixar claro o posicionamento espacial dos personagens em determinadas cenas. Não dá para entender onde Bishop está em relação a outro personagem e isso é um erro grosseiro do atual cinema de ação. Gansel acerta na câmera e nos cortes, mas esquece desse detalhe crucial.
O elenco só merece destaque pelo carisma de Statham e pela participação especial de Tommy Lee Jones. Mesmo sendo um personagem ridículo, o ator faz com dignidade. O resto é muito fraco. O vilão de Sam Hazeldine não consegue causar nenhum tipo de ameaça e a mocinha feita por Jessica Alba é irritante e estereotipada. Mais um filme que comprova que Alba teve seu momento de fama graças a sua beleza, porque se fosse por conta do seu talento dramático não conseguiria nada. Já a bela Michelle Yeoh - uma excelente atriz e artista marcial, vide “O Tigre e o Dragão” – faz uma participação de luxo e
Enfim, não tem muito que acrescentar em “Assassino a Preço Fixo 2”. É um filme de ação genérico, porém não ofende. Quem for ver é bom saber que se trata de um filme que não se deve esperar muito. A única coisa que deve se esperar é de ver Jason Statham sendo o Jason Statham em todos os filmes que temos o Jason Statham: um herói de ação indestrutível, que irá matar todos os vilões e salvará a mocinha. E apenas isso.
Crítica | No Fim do Túnel
Sabe-se lá como você, caro(a) leitor(a) interpretou o subtítulo desta crítica. Se para alguns parece um elogio, para outros pode soar pejorativo. De toda forma, acho que qualquer pessoa, minimamente cinéfila, já cria uma boa expectativa quando se trata de um exemplar do cinema argentino. Motivos não faltam, mas há quem diga que o filé que chama atenção deste lado da fronteira encobre uma imensa produção local não tão respeitável. No Fim do Túnel (Al Final del Túnel) pode até ser um desses casos e, sim, em vários aspectos, lembra fórmulas das produções da terra do Tio Sam. Como nos acostumamos com o que os hermanos têm de melhor e mais característico, isso se torna um problema. Nem por isso chega a ser ruim, mas vamos ao que a obra tem a oferecer.
O roteiro, assinado pelo próprio diretor, Rodrigo Grande, acompanha um difícil momento da vida de Joaquín (Leonardo Sbaraglia, de O Silêncio do Céu e Relatos Selvagens), um cadeirante que vive sozinho e melancólico, por conta de uma tragédia, em uma casa espaçosa em Buenos Aires, dividindo o tempo entre a rotina doméstica e seu trabalho como técnico de computadores. Com dificuldades financeiras, ele aluga um dos quartos do imóvel e a primeira interessada a procurá-lo é Berta (Clara Lago), uma stripper trazendo consigo uma filha de seis anos com problemas psicológicos. Relutante a princípio, ele a aceita, mas começa a incomodar-se com ela por perto, que faz de tudo para ser prestativa.
Paralelo a esse evento, como Joaquín trabalha no subsolo da casa, percebe barulhos estranhos no terreno ao lado. A descoberta de que são ladrões cavando um túnel que passa por baixo de sua casa, com o objetivo de chegar ao cofre do banco vizinho, faz com que ele decida espionar o grupo liderado pelo psicopata Galereto (Pablo Echarri), com câmera e escuta, pretendendo tirar algum proveito do roubo.
Entre os recursos mais manjados desta história, o recluso atingido pela tragédia, recebendo um raio de luz em sua vida com a chegada de uma desconhecida. O drama do cachorro de estimação até passa, mas é difícil não encarar como apelação a presença de uma criança com problemas. Betty, a filha de Berta, afeta Joaquín de uma forma mais que previsível, mas a menina ainda é utilizada mais à frente na narrativa para forçar alguns sentimentos do espectador, sem muito efeito. O lado “MacGyver” do esperto cadeirante também pesa e pede uma suspensão de descrença maior do que esperávamos.
Em seu quarto longa-metragem, Rodrigo Grande não parece ter grandes pretensões com No Fim do Túnel, o que é bom, pois seu roteiro não tem absolutamente nada de especial. No entanto, isso não o exime de perder-se no miolo desta narrativa. Se Joaquín se apresenta no começo com um pano de fundo claro, exposto sem a necessidade de diálogos explicativos, depois ele acaba perdido no meio de manobras e reviravoltas que prejudicam a dramaticidade e verossimilhança da situação. Esse deslize sacrifica um pouco a experiência do espectador, apesar de um suspense eficiente aqui e ali, mas Leonardo Sbaraglia ainda se esforça com o material que dispõe, segurando-se bem na pele do protagonista.
Ainda sobre o texto, o cineasta/roteirista, lamentavelmente, opta por um exagero gritante na construção de Galereto. Essa falta de sutileza é um dos motivos da comparação com alguns produtos de Hollywood. A maldade do antagonista da trama estava bem justificada até determinado momento, mas uma revelação - que cai na história com a delicadeza de um meteoro – parece tentar obrigar o público a odiar o sujeito. Na mesma via do protagonista, Pablo Echarria, entrega uma boa atuação, apesar da limitação do roteiro.
Abrindo o filme com a câmera movimentando-se em travelling pelo interior da casa, onde se passa a maior parte da duração, o filme promete bastante neste momento. Ainda que falhe na construção conceitual, o diretor consegue bons planos e enquadramentos no espaço restrito e a decupagem é competente. A produção pôde contar com a fotografia de Felix Monti, do excepcional O Segredo de Seus Olhos, um detalhe que evita a queda na vala comum de filmes meramente esquecíveis. Bem trabalhado em ambientes pouco iluminados, com as inevitáveis sombras, as imagens estão de acordo com o conceito e conferem algum charme ao conjunto.
Do vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2010, também veio o compositor Federico Jusid, aqui trabalhando com Lucio Godoy. A trilha sonora é outro ponto que valoriza o filme como um todo, aliado ao bom trabalho na mixagem de som, fundamentais em qualquer suspense.
Chegando aos seus momentos finais, No Fim do Túnel consegue crescer e recuperar algo do que perdeu lá pela sua metade. Talvez se beneficiasse com uma duração mais enxuta, mas, enquanto aproxima-se da resolução, entrega momentos e situações que amarram pontas soltas. Nada extraordinário ou memorável, além de lembrar dezenas de situações que você já viu em filmes dos EUA, mas é o melhor momento da trama e o mais divertido, recompensando o espectador que manteve a fé diante da irregularidade. Sobre o derradeiro momento da projeção, pode até desagradar por vários motivos, mas segue um tom já delineado antes, portanto, não surpreende quando chega.
Bom para uma – e apenas uma – sessão descompromissada, o filme de Rodrigo Grande fica aquém da vitrine do cinema portenho. Mesmo assim, ainda consegue um pouco mais de sofisticação do que a grande maioria que infesta as salas de cinema atualmente. Se for um alívio não sentir-se tratado como idiota enquanto assiste a um longa, vale a pena encarar.
*Via parceiro Formiga Elétrica.
Crítica | Festa da Salsicha
Muita gente não considera filmes de animação como uma forma artística voltada para temas mais adultos. Quantas vezes já falou de um desenho adulto e recebeu aquela face de indignação de seu amigo desinformado: “Ué? E lá existe desenho que não seja para criança?”. Sim, existem, e não são poucos. Porém filmes animados destinados aos adultos são um pouco mais raros.
Para termos uma base, Festa da Salsicha é primeiro filme animado adulto com censura alta lançado desde 1999 por estúdio major. Em 1999, foi a vez do longa de South Park causar o alvoroço na época. Agora em 2016, é a turma de Seth Rogen que traz uma peça bizarra para as telonas de todo o país.
O time de muitos roteiristas é encabeçado por Seth Rogen, o comediante que teve a ideia original para o argumento. Pegando emprestada a proposta de Toy Story, Rogen nos apresenta a rotina dos alimentos felizes de um hipermercado. Todos conversam e festejam com a abertura do comércio, na esperança de serem escolhidos pelos “deuses” – nós, humanos – e que eles os levem até o paraíso – suas respectivas moradias. Porém, todos desconhecem o que realmente acontece com os alimentos quando chegam nas casas dos deuses.
Um produto comprado por engano, o Mostarda com Mel, é devolvido para o mercado e tenta comunicar todos dos horrores que acontecem nas humildes moradas dos clientes do mercado. Estressados, os outros produtos se recusam a acreditar no molho histérico. Após ser novamente escolhido por uma cliente, Mostarda com Mel se recusa a ser comprado e acaba causando um grande acidente. Nisso, uma salsicha chamada Frank e sua bisnaga-namorada, Brenda, acabam saindo de suas embalagens. Juntos terão que encontrar um caminho de volta para seus corredores. Mas nada será tão fácil, pois uma ducha assassina pretende aniquilar os dois. Além disso, dúvidas sobre a índole dos deuses começam a pairar nos pensamentos turvos de Frank.
Novamente, partindo da premissa do Mito da Caverna de Platão – já deve ser o terceiro longa com esse tema neste ano, Rogen e seus roteiristas criam uma história promissora. Afinal se trata de um filme onde as comidas têm vida própria e descobrem que seu único propósito existencial é ser mastigada, fervida, cortada, ralada, frita, escaldada, assada, entre diversos outros horrores culinários que ocorrem na cozinha – levando em conta o ponto de vista dos alimentos, claro.
Mas Rogen não está muito interessado em contar uma boa história no restante do longa, restringindo todo o potencial que ela possui. O aviso já é claro: caso odeie a comédia do grupo já visto em É o Fim, é certeza de que esse filme não conseguirá agradar. A justificativa é muito simples: o humor que Rogen utiliza é o do mais básico e chulo possível. Há uma quantidade massiva da palavrões, piadas sexuais, escatológicas e de consumo de drogas.
Tudo é cru demais para que os roteiristas tentem qualquer tipo de humor mais refinado, inteligente ou eficaz. É claro que as piadas, de primeiro momento, conseguem fazer rir, mas ao longo da projeção, escutando os mesmos palavrões e as mesmas frases de efeito, o humor começa a falhar.
Logo, por alguma competência, Rogen passa a emular as ideias vistas em Uma Aventura LEGO, filme que se vale de diversos estereótipos e clichês. Até as situações são similares, com os protagonistas visitando diversos corredores temáticos do mercado. Vemos a ala western cheio de produtos mexicanos ‘ilegais’, a ala das bebidas alcoólicas com produtos bêbados, ala das frutas e legumes, sucos, condimentos, etc. Todas rendem bons momentos graças às piadas preconceituosas, revelando um humor que ainda tem coragem de existir mesmo sendo massacrado pelas reverberações politicamente corretas.
Aliás, este é o maior trunfo do filme: não se resignar em nenhum ponto. Rogen aponta sua metralhadora para todos: drogados, alcoólatras, homossexuais, ninfomaníacos, monstros de academia, estupradores, cristãos, judeus, muçulmanos, moralistas e mais outros grupos. É evidente que as religiões são os alvos prediletos de Rogen, já que todo o filme é uma metáfora para mostrar o quão estranho o pensamento religioso possa parecer ser – principalmente pelos deuses e seu tratamento com os alimentos antropomorfizados.
A própria personagem Brenda, a bisnaga namorada de Frank, ilustra as metáforas com seus diálogos cheios de temores sobre pudor e moral. Tudo isso se esvai com o pós-clímax do filme que serve como síntese de um experimento anárquico niilista – sob o ponto de vista de Rogen. Os outros personagens coadjuvantes, principalmente Sammy Bagel e Lavash, recebem humor mais inteligente discutindo a questão Israel-Palestina do modo mais esdrúxulo possível. Já o taco homossexual é um personagem redundante e de pouca graça. A figura do antagonista, a Ducha, tem alguns bons momentos, mas não deixa de ser descartável.
Os diretores Greg Tiernan e Conrad Vernon – veteranos em filmes animados, junto do roteirista também trabalham na linguagem fílmica e na abordagem visual em favor da comédia. Ao contrário do texto que se baseia muito em palavrões, trocadilhos e xingamentos, o trio elabora piadas paródicas conseguindo duas com perfeição, O Resgate do Soldado Ryan e Rattatouille. Toda a questão entre o ponto de vista dos humanos e dos produtos também é resolvida com facilidade.
Mesmo sendo um longa relativamente barato de 19 milhões de dólares, os diretores não poupam recursos para deixar a decupagem mais rica possível. Muitos planos são apenas descritivos para ilustrar a ação bem filmada, mas há sim uma acuidade estética pensada com cores e iluminação corretas. O número musical do começo é o melhor exemplo disso. Aliás, canção esta composta por ninguém menos que Alan Menken, gênio oscarizado das trilhas musicais de diversas animações Disney.
Outras piadas de cunho sexual estão na própria caracterização dos protagonistas. Frank é uma salsicha por motivos óbvios e a bisnaga Brena tem lábios demarcados em formato de vagina. Frank também possui luvas e sapatos iguais aos de Mickey Mouse. Já a animação, apesar de fluida, às vezes tem texturas simples muito perto do limiar de serem consideradas feias. O design hipercaricato dos humanos também desperta certa curiosidade.
Aliás, um detalhe especial para a dublagem brasileira e também da adaptação do Porta dos Fundos. Além de contar com os integrantes do grupo, a Sony selecionou diversos talentos conhecidos que dublam outras animações infantis. Logo, ao reconhecer a voz de tantos atores comuns à infância dialogando com montanhas de palavrões certamente é engraçado. A adaptação também é competente ao adaptar palavrões americanos para os impropérios brasileiros, além de encaixarem memes de modo orgânico.
Festa da Salsicha é um bom longa de comédia que te deixará boquiaberto ao fim da sessão. Se perguntando, “o que raios que acabei de ver? ”. A comédia, apesar de rasteira e imperfeita, é eficiente de certa forma, mas as paródias conseguem elevar a qualidade. A história seguindo na margem de segurança do storytelling, repleta de clichês, não surpreende mesmo sob o ponto de vista muito curioso dos alimentos. Na proposta, é um filme que atinge boa parte de seu potencial, ainda mais conhecendo o estilo dos realizadores.
Bom, também, honestamente, estamos vendo um filme sobre uma salsicha falante cujo desejo é entrar na bisnaga. Isso resume perfeitamente a experiência que encontrará com a comédia escrachada de Seth Rogen.
Crítica | Luke Cage - 1ª Temporada
A parceria entre a Netflix e a Marvel Studios é definitivamente um dos maiores acertos em termos de recepção crítica e aceitação popular que ambas as empresas fizeram até agora, atraindo até mesmo o braço da ABC (que já cuida de Agents of SHIELD) para o negócio. Depois de duas temporadas de Demolidor e a apresentação da desconhecida Jessica Jones no ano passado, é a vez do icônico Luke Cage ganhar sua própria série após projetos descartados e uma participação forte na série de Jones.
Ambientada alguns meses depois dos eventos de Jessica Jones, a nova série nos situa no bairro do Harlem e nos apresenta a Luke Cage (Mike Colter) balanceando uma vida de dois empregos enquanto luta para manter sua animosidade. Um dos trabalhos o coloca no círculo perigoso de Cornell Stokes, conhecido como o Boca de Algodão (Mahershala Ali), um gângster dono de boate que prepara-se para travar uma guerra com as gangues latinas a fim de dominar por completo o Harlem. Paralelamente, a detetive Misty Knight (Simone Missick) investiga tanto o mistério das habilidades de Luke Cage quanto a trajetória corrupta de Stokes, enquanto a vereadora (prima e sócia de Stokes) Mariah Dillard (Alfre Woodard) tenta garantir o sucesso de sua campanha política.
Em termos de tom, já cansamos de falar e reafirmar que a Netflix adotou uma abordagem muito mais sóbria, realista e urbana para os heróis que futuramente formarão o grupo dos Defensores (o último a ser apresentado é o Punho de Ferro, que ganha sua série em 2017). Se Demolidor era mesmo uma saga mafiosa dark e Jessica Jones uma variante distinta do neo noir, Luke Cage se aproxima de um blaxploitation anacrônico com pitadas de crime urbano a lá The Wire. Mover a história de Hell's Kitchen para o Harlem finalmente permite aos produtores - aqui chefiados pelo showrunner Cheo Hodari Coker - explorar novos ares desse universo urbano do MCU, contando aqui com um elenco quase que predominantemente negro, uma direção de arte mais característica do que as da séries anteriores e uma identidade cultural muito mais forte - desde citações a nomes de ruas importantes e origens de monumentos significativos, desde Malcolm X até grandes nomes da cultura musical negra.
E falando nisso, a trilha sonora é um dos grandes acertos da série. Tanto a composta por vários artistas que dão as caras no Harlem's Paradise, boate do Boca de Algodão, e preenchem a atmosfera com soul, blues e jazz de forma marcante para render sequências envolventes com ações paralelas (algo que vem se revelando como um padrão um tanto excessivo para a Netflix, mas chegaremos nisso depois), quanto pela excepcional trilha sonora original de Ali Shaheed Muhammad e Adrian Younge, que emula com perfeição o estilo slick e divertido da música de produções blaxploitation dos anos 70; conferindo um bem vindo anacronismo temático à série e personalidade à figura de Luke Cage. É o uso mais marcante de música em uma produção da Marvel desde o Awesome Mix Tape de Guardiões da Galáxia.
Caracterização e a criação de um universo rico e coeso são alguns dos principais acertos de Luke Cage. Quando chegamos à história em si, temos alguns problemas, já que é uma narrativa que demora para engatar e que carece de elementos que justifiquem a longa duração de 13 episódios de 50 minutos. Por exemplo, os fillers e subtramas são um problema para a Marvelflix desde a primeira temporada de Demolidor (com o insuportável núcleo de Foggy e Karen com a idosa), e aqui eles são simplesmente tediosos e repletos de clichê. Tudo o que envolve a personagem de Misty Knight é um atraso narrativo , principalmente quando uma reviravolta ocorre com seu parceiro Scarfe (Frank Whaley), levando Misty a um arco descartável e que tira a força de seus equivalentes. Não que estes sejam realmente muito melhores, já que os conflitos de Cage com Boca de Algodão tomam um rumo indireto e confuso em sua condução. Mas quando de fato ocorrem, vemos a série brilhar: é um conflito quase que político, já que Cornell é simplesmente incapaz de machucar o indestrutível Cage, e que se desenrola através de boca a boca nas ruas, procura de podres no passado de cada um e diálogos memoráveis.
Os núcleos narrativos também cometem alguns dos mesmos erros das séries anteriores, com o excesso de flashbacks e até algumas quebras na linearidade de certos episódios (dois deles começam pelo final, mas puro estilo e choque). É interessante para conhecermos o passado de alguns personagens, como a infância traumática do Boca de Algodão e o próprio núcleo de Luke quando era um presidiário chamado Carl Lucas, mas não deixam de ser fillers elegantes. Felizmente, sempre que retornamos para Cage, a performance de Mike Colter é o suficiente para manter o interesse, dada a presença imponente do ator e sua capacidade de explorar diferentes camadas do personagem, mesmo com uma persona tão nota única quanto de Cage - especialmente no episódio em que descobrimos a origem de seus poderes.
Seguindo a escola de seus predecessores, Luke Cage também se beneficia de um ótimo antagonista. Mahershala Ali surge magnético e poderoso como o Boca de Algodão, mesmo sendo uma figura sem a ira e pose de Wilson Fisk ou as habilidades manipuladoras de Kilgrave: é simplesmente um homem movido por sua ambição e sagacidade; e os diretores acertam ao usar constantemente o enquadramento de sua cabeça abaixo de um pôster do rapper Notorius B.I.G. com uma gigantesca coroa dourada. Ali é ótimo, mas não subestimem a força e presença de Alfie Woodard, excelente como Mariah. Os conflitos familiares entre os dois rendem algumas das mais bem atuadas cenas da série, e Mariah mostra-se uma antagonista ainda mais perigosa para Cage ao criar uma imagem pública danosa do herói, influenciando a população a acreditar que a existência de um homem à prova de balas é danosa para todos; já aproveitando um eixo temático de Capitão América: Guerra Civil.
O mais curioso é que Woodard também estava em Guerra Civil, mas como outra personagem...
Há ainda um terceiro vilão na figura de Kid Cascavel, que ganha muita malícia e sadismo com a ótima performance de Erik LaRey Harvey, oferecendo também um oponente mais pessoal no passado de Cage e com uma ferramenta capaz de verdadeiramente machucar o protagonista - puxando aí uma referência de Homem de Ferro 2 e cujo efeito rende uma sequência absurda, porém brilhante, que parece o resultado de uma transa entre Breaking Bad e Pulp Fiction. Mas Cascavel não deixa o pacote pesado demais, já que 13 episódios oferecem tempo de sobra para explorar diferentes arcos, evitando que a série caia na armadilha de Jessica Jones de manter o mesmíssimo vilão por uma temporada inteira.
No quesito ação, Luke Cage fica bem abaixo das anteriores. O realismo e a violência gráfica ainda são os principais códigos a serem seguidos, mas a decupagem das sequências de pancadaria, tiroteio e perseguições é preguiçosa e sem nenhuma inovação. Só funciona quando temos alguma música rap inserida ao fundo ou pela imagem impactante que é ver um homem negro sendo baleado constantemente sem nenhum efeito, de maneira similar como acontecia em O Exterminador do Futuro. O que favorece esse tipo de cena são os belos cenários, que vão de apertados corredores (Marvelfilx e seus corredores...) até luxuosos teatros vazios.
Luke Cage poderia ter sido mais do que o que recebemos aqui. Tem uma construção cultural e iconográfica primorosa, mas ainda comete os mesmos erros das séries anteriores da parceria da Marvel com a Netflix, ao trazer uma história de estrutura tortuosa e um conteúdo que é forçado a caber nos 13 episódios excessivamente longos. Talvez a Netflix devesse repensar o formato de 13 episódios, visto que algo mais curto (como os 8 episódios de Stranger Things) flui melhor e não depende de uma enxurrada de arcos e subtramas desnecessárias.
Luke Cage - 1ª Temporada (EUA - 2016)
Criado por: Cheo Hodari Coker
Direção: Paul McGuigan, Phil Abraham, Andy Goddard, Marc Jobst, Clark Johnson, Magnus Martens, Sam Miller, Vicenzo Natali, Guillermo Navarro, Tom Shankland, Stephen Surjik, George Tillman Jr, Steph Green
Roteiro: Cheo Hodari Coker, Matt Owens, Charles Murray, Jason Horwitch, Christian Taylor, Akela Cooper, Aïda Mashaka Croal
Elenco: Mike Colter, Mahershala Ali, Simone Missick, Alfre Woodard, Rosario Dawson, Jaiden Kaine, Erik LaRey Harvey, Frank Whaley, Theo Rossi
Emissora: Netflix
Episódios: 13
Gênero: Ação, Aventura
Duração: 50 min
https://www.youtube.com/watch?v=wQGemT66yhc&t
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Crítica | O Orfanato da Srta. Peregrine para Crianças Peculiares
A busca pelo próximo Harry Potter é incansável. Não estamos restritos apenas à indústria cinematográfica de produção massiva, mas sim a própria literatura que deu origem a diversas criações que tentam emular o sucesso da franquia mágica. Intrinsicamente ligados, o Cinema depende (mais do que nunca) do próximo sucesso literário infanto-juvenil para encomendar trilogias ou sagas inteiras baseadas em obras muitas vezes vazias – Saga Crepúsculo e Cinquenta Tons.
Órfã de uma saga de muitos milhões, as editoras se contentaram com muitas obras de alguns milhões. Nessa onda vieram A Cidade dos Ossos, Jogos Vorazes, Jogo do Exterminador, Saga Divergente, Maze Runner, entre diversos outros que ainda não ganharam relevância para ganhar uma equivocada adaptação cinematográfica. Um tanto quanto tardiamente, O Orfanato da Srta. Peregrine para Crianças Peculiares finalmente ganhou seu filme – mesmo sendo um livro de qualidade um tanto superior à de tantas outras sagas derivadas – até mesmo com direito a um diretor de nome relevante.
Como havia apontado na crítica do filme que estreou há pouco tempo, entre suas qualidades, a que mais se destacava era o enorme convite para conferir a obra original de Ransom Riggs. Com a curiosidade persistindo em minha cabeça, acabei lendo o livro poucos dias depois da cabine do filme. Como esperado, o longa adapta livremente muitas coisas tomando escolhas mais adequadas a uma obra hollywoodiana. O livro, por outro lado, é melhor que o filme, mas não por longa margem. Descobri exatamente o que estava esperando.
As tramas são muito similares entre si. Jacob, um menino ordinário e sem graça, adorava as histórias do avô sobre as crianças peculiares com quem convivia no orfanato de srta. Peregrine quando era jovem em 1940. Sua vida muda quando seu avô subitamente é morto por uma criatura bizarra que somente ele conseguiu ver na fatídica noite. Deprimido, seu psicólogo recomenda que ele vá para Cairnholm no País de Gales conversar com a srta. Peregrine e descobrir mais sobre o passado de seu avô. Junto de seu pai desinteressado, Jacob busca o orfanato, srta. Peregrine e as crianças peculiares. Porém, sua jornada não será tão simples quanto imaginava.
Indo comumente contra a maré, não segui o conselho que tantos amigos meus dizem: evite ler o livro depois de ver o filme. Logo, comparações serão inevitáveis. Riggs opta por uma narrativa em primeira pessoa de ponto de vista único com narrador-personagem. Jacob é quem conta toda a história e, mesmo tendo apenas 16 anos, ele não foge da característica que é quase inerente à esse tipo de narrador: é basicamente um intelectual fantástico em interpretar os outros e ser muito mais capacitado em tudo do que alguém poderia ser com 16 anos. Jacob seria a epítome do adolescente racional, como tantos outros narradores desse tipo.
Não que seja grande defeito, mas é sempre engraçado ver pensamentos e vocabulários de um adulto em diálogos monumentais de crianças. No caso, até daria para casar com a proposta de todos os outros peculiares serem muito mais velhos do que aparentam e, portanto, Jacob acompanharia a idade mental de cada um deles. Felizmente, Riggs consegue encaixar alguns chiliques genuínos à adolescência entre diversos diálogos com Jacob e seu pai.
Até uns 40% do livro, Riggs trabalha essencialmente essa enorme problemática de estabelecer seu protagonista niilista com seu pai tão desinteressado como ele – só que sem a justificativa de ser deprimido. Aliás, essa que é uma das grandes deficiências do filme, é muito melhor trabalhada aqui. Jacob tem seu longo momento de luto, a relação com seu avô é profundamente construída através de memorias confidenciadas ao leitor e também toda incompatibilidade paterna entre Jacob e Franklin.
Franklin cresce bastante graças a competência de Riggs em delinear ele também como um loser assim como Jacob – mesmo que o narrador nunca se dê conta disso. Franklin, mesmo repetitivo, é um dos personagens mais ricos do livro. Sem achar ruim toda a grande relação de afeto que seu pai tinha com seu filho, ele mesmo repete, digamos, os sins of the father – Abraham é uma figura paterna deficitária para Franklin e que, por sua vez, é um insosso com seu filho, Jacob.
Nesse caso, Riggs delineia a imaturidade de Jacob, coerente com sua idade real, que não consegue interpretar seu pai tão bem quanto expõe os desejos de Emma, seu interesse romântico, para o leitor. Talvez, a grande amálgama de Franklin seja oriunda da pouca importância e afeto que ele recebeu de Abe. Disso, desdobram-se todos os fracassos e desistências na vida, afinal se até o próprio pai dele parecia ter desistido, por que continuar tentando?
Enriquecendo esse lado, Riggs ajeita a mãe de Jacob como uma ricaça herdeira de uma rede de farmácias na Flórida. Porém, ambos possuem essa enorme deficiência de relacionamento com o filho. No caso da mãe, é mais superficial – o autor não elabora muito bem isso durante o vasto estabelecimento narrativo anormal para livros infanto-juvenis de aventura. Mesmo que seja proposital para conferir relevância em um conflito posterior envolvendo o orfanato, não deixa de ser esquisito. Por O Orfanato da Srta. Peregrine para Crianças Peculiares ser o seu livro de estreia, isso é compreensível.
Mesmo novato na literatura, Riggs estudou consideravelmente storytelling, pois de forma alguma o livro se torna maçante. Ler O Orfanato da Srta. Peregrine para Crianças Peculiares é uma tarefa fácil e que entretém bastante, pois o autor encaixa muitíssimo bem os pontos de virada da obra, além de manter diversas características peculiares de sua aventura em segredo por muitas páginas.
Como o narrador é o protagonista, acabamos o conhecendo a fundo, seus medos e paixões e mesmo com certo temperamento irritante, é agradável ler a história através de seu ponto de vista. A escolha é certeira, pois assim como Jacob, o leitor é introduzido a todo aquele universo mágico pela primeira vez então há muita pureza de sentimentos no relato dele. Riggs também é ótimo para descrever cenários, ambientes e ação com vocabulário vasto. Além de explicar, através de didatismo coerente, toda a mitologia “nova” criada por ele.
O que carece de maior descrição é justamente Jacob que é tão invisível quanto Millard para o leitor. O orfanato, muitas vezes, também não é bem descrito assim como srta. Peregrine e os outros órfãos – até mesmo Emma. Apesar de grave, essa nem chega a ser a maior deficiência do livro. O que havia achado que era um problema único do filme, se repete aqui em grau um tanto assustador, pois há elementos ótimos que o Riggs pincela, mas logo abandona para manter a locomotiva aventureira se movimentando altivamente.
Sim, os coadjuvantes carecem enormemente de conflitos, pois na escrita, uma parte considerável deles tem alguma personalidade única. No fim, muitos deles tornam-se redundantes e tão pálidos quanto no filme. Não gostaria de dizer quais são os elementos que Riggs pincela, mas eles evocam paixões e uma faceta muito obscura daquele orfanato preso no tempo. Obviamente, isso é introduzido por Enoch, o personagem mais propenso a maldade entre todos os órfãos.
Nesse jogo de esconder detalhes importantes, próximo ao clímax que surge o antagonista espectral que adiciona uma carga de outros detalhes e conflitos de mitologia que só serão apreciados em Cidade dos Etéreos, segundo livro da trilogia planejada – para se perceber como o autor não é idiota, conhecendo muito bem os vícios de entretenimento e interesses de seu público alvo. A srta. Peregrine também sofre com a palidez da escrita, mas ele tenta conferir mais contornos psicológicos para a personagem em algumas confidencias de Jacob. Infelizmente, isso nunca é posto em conflito. Jacob é o típico adolescente cheio de pensamentos recalcados apregoando muito juízo de valor equivocado em muitas passagens.
Riggs parece reconhecer os problemas de descrição que acometem seus personagens e, nisso, vem justamente a peculiaridade do livro: suas ilustrações. Na verdade, são fotografias vintage posadas para causar estranheza e calafrio. O ensaio é muitíssimo eficiente nisso, pois claramente há alguma inspiração naquelas fotografias que as pessoas insistem em dizer que vieram da deep web, o lado obscuro da internet. Algumas, causam sim algum tipo de incômodo, mas nada que seja assustador demais para adolescentes de 13 a 17 anos.
A graça é que as fotografias tornam o livro mais rico, pois todas são bem encaixadas na narrativa. Basta um personagem citar alguma foto que ela não demora muito para surgir preenchendo a página inteira. Aliás, as fotos também revelam algumas coisas que Riggs esquece pelo caminho desta primeira obra: peculiares retratados que não aparecem no restante do livro, sejam os gêmeos, a menina retorcida ou o cachorro humano.
Voltando aos personagens, o grosso da interação de Jacob reside no seu interesse romântico em Emma, a menina manipuladora do fogo – no filme, trocaram aparências e poderes de alguns personagens, além de contar com outros peculiares. Toda a problemática dela ser apaixonada pelo avô de Jacob é um pouco melhor explorada, além do choque da morte de Abe afetar muito mais as crianças do orfanato do que no filme. Riggs sabe elaborar relativamente bem essa grande paixão, apesar de carecer de explicar a motivação, fora a beleza, para que os dois se apaixonem. Uma história de amor interessante, com o conflito escondido de Emma talvez projetar os sentimentos que tinha por Abe em Jacob: algo que só vou descobrir nos livros posteriores.
O Orfanato da Srta. Peregrine para Crianças Peculiares carece de substância em diversos personagens, além da correria típica de seu clímax burocratizado que nada mais é do que um belíssimo pontapé para comprar a trilogia inteira. Por outro lado, Ransom Riggs cria uma história muito divertida, com diversas fotografias creepy, além da ambientação de fantasia tenebrosa ser bastante convidativa para os leitores. É impossível perder o interesse no livro, ainda mais depois do longo investimento em conflitos muito humanos no primeiro ato da obra. Se ficou interessado após ver o filme de Tim Burton, a compra é garantida e o entretenimento, também.
O Lar da Srta. Peregrine Para Crianças Peculiares (Miss Peregrine's Home for Peculiar Children, EUA – 2011)
Autor: Ransom Riggs
Publicação no Brasil: Intrínseca
Tradução: Ângelo Lessa
Páginas: 352 páginas
Crítica | Demônio de Neon
Defender qualquer filme usando seu visual como argumento é complicado, já que isso nada mais é do que procurar compensar algum(ns) defeito(s) grave(s) que a produção possa ter. Se admitirmos os deslizes, sem problema algum, mas entramos em uma esfera muito pessoal pesando Imagem X Conceito para decidir se a experiência valeu a pena e se merece a recomendação. No caso de Demônio de Neon (The Neon Demon), no entanto, não há muito a se pesar, tamanha a excelência visual exibida em quase duas horas de duração, isso independente de quaisquer outras ressalvas que podem – e devem – ser levantadas.
O diretor dinamarquês Nicolas Winding Refn, do aclamado Drive (2011), encarou uma recepção dividida em seu penúltimo filme, Só Deus Perdoa (2013), onde se rendeu à influência da obra de um amigo, o chileno Alejandro Jodorowsky. Agora, ele mostra que não cedeu a qualquer pressão que poderia ter sofrido neste sentido, retornando com um filme carregado no simbolismo, ainda que com uma história linear e absolutamente simples. Recorrente como escritor dos roteiros que dirige, aqui ele co-escreveu com Mary Laws e Polly Stenham, inexperientes na função.
Partindo de uma ideia principal das mais básicas, garota inocente do interior que procura o sucesso como modelo na cidade grande, Refn persegue incessantemente outro clichê pouco sutil, martelado por toda a projeção. O retrato cruel do mundo das passarelas é previsível, com toda a mesquinharia, indiferença, maldade e paranoia de jovens mulheres anoréxicas com dúzias de intervenções plásticas. É neste cenário que a recém-chegada Jesse (Elle Fanning) tenta se inserir timidamente, mentindo sobre sua idade, encontrando conforto na amizade oferecida pela maquiadora Ruby (Jena Malone).
Jesse exerce um fascínio quase mágico em seus contatos profissionais, abrindo portas muito rapidamente, mas a virginal protagonista, encantada com os vislumbres de uma nova vida, não teria como evitar algum antagonismo neste caminho, aqui personificado pela evidente inveja da dupla Sarah e Gigi, interpretadas por Abbey Lee e Bella Heathcote, já “veteranas” na profissão. O único elo da garota com a realidade, até certo ponto, é Dean - Karl Glusman, protagonista em Love, de Gaspar Noé. Fotógrafo também tentando a sorte, ele a ajuda sem segundas intenções, embora não esconda que gostaria de ir além.
Com essa sinopse simples e ingênua, o filme se propõe a uma discussão em torno das obsessões da beleza feminina, escolhendo o pano de fundo perfeito para isso. Ironicamente, se Refn buscou criticar os excessos e artificialidade do mundo da moda, ele o fez de uma forma a valorizarmos primordialmente o lado estético de seu trabalho. Neste quesito, Demônio de Neon é absolutamente irretocável e mesmerizante como poucos, não apenas elogiando fotografia em si. Se o conteúdo é discutível, pela maestria narrativa com a qual ele o exibe, não há como deixar de ouvir o que ele tem a dizer.
Admitindo que existe um certo componente de ego trip aqui, abrindo o filme com um nada modesto “Nicolas Winding Refn Presents:”, ele provoca seu público, pois sabe que em seguida vai surpreendê-lo. Ao apresentar Jesse, o diretor já se exibe com um jogo cênico onde o campo e contra-campo do primeiro diálogo é construído da mistura das personagens e seus reflexos nos espelhos. Aliás, a relação delas com suas imagens refletidas é uma constante no filme, chegando a lembrar o genial Cisne Negro, de Darren Aronofsky. No entanto, o simbolismo aqui é evidentemente diverso, evocando não a duplicidade de uma psique fragmentada, mas criando uma alegoria – um tanto óbvia, é verdade – do mito de Narciso.
Se a decupagem e a composição de Refn merecem aplausos, ela é absurdamente valorizada pela fotografia de Natasha Braier, cujo longa anterior, The Rover – A Caçada (2014), já foi um show neste sentido. A paleta de cores incomum é ressaltada de forma a ganhar vida na tela, trabalhando texturas e contrastes de forma magistral a serviço do conceito, mesmo quando é preciso preencher a tela com o fundo branco infinito de um estúdio fotográfico. Preste atenção na cena que opõe o devaneio de Ruby com sua realidade. Tudo isso funcionando em perfeita harmonia com os ótimos figurino e desenho de produção, componente importante na construção de um mundo que parece uma casa de bonecas pós-moderna.
O elenco tem lá suas extravagâncias, mas é coeso no geral. Ignorando as participações especiais, e inúteis, de Keanu Reeves e Christina Hendricks, mais o esquisito Desmond Harrington como um fotógrafo apático, as moças do quarteto principal cumprem a contento suas funções, com cada uma passando exatamente o que o papel pede. Elle Fanning, escolha acertadíssima pelo tipo físico, no entanto, é quem consegue uma performance acima da média, convencendo tanto na ingenuidade quanto em sua nova persona, mais adequada para o sucesso naquele ambiente.
Parceiro recorrente do cineasta, o compositor Cliff Martinez retorna com seus sintetizadores, ajudando a compor um clima que vai do onírico ao suspense. Aliás, falando nesta transição de climas, um dos desafios do espectador, ao final de Demônio de Neon, é classificar o filme em algum gênero. Não é terror, apesar de algumas sinopses breves que encontramos por aí, além de seu suspense existir mais em decorrência da curiosidade sobre sua forma narrativa e do clímax de sua mensagem, do que uma construção direta neste sentido.
Em seus primeiros dois terços, apesar da linearidade, o filme exibe algumas situações que parecem gratuitas, sem acrescentar nada. Talvez tentando colocar o espectador mais para dentro deste mundo estranho, esses detalhes convidam a uma reflexão maior e a prestar mais atenção ao que virá depois. Ainda assim, em alguns casos, não existem respostas fáceis, o que vai render muitas conversas pós-sessão, facilmente. Chegando ao seu terço final e completando o raciocínio, Refn escorrega por querer falar demais onde não havia tanto assunto, infelizmente.
O filme tem três finais, resumindo, insinuando o encerramento duas vezes antes de, finalmente, baixar as cortinas. O pior é que ele seria melhor, caso tivesse ficado no primeiro. Nos outros dois, abraçou a subjetividade e criou momentos que soam um tanto apelativos dentro deste conjunto, ainda que contando com a mesma beleza plástica. A ego trip citada no início cobra seu preço, mas isso não significa que ele estragou o filme. Seria leviano ignorar tudo que foi exibido anteriormente, mas é uma atitude que, particularmente, deixa uma obra com tanto potencial atrás dos três exemplares anteriores do diretor.
É evidente que Demônio de Neon merece ser visto e apreciado por conta de suas qualidades indiscutíveis. A simplicidade de seu conceito e suas escolhas polêmicas, no entanto, se causam desconforto em alguns espectadores, também merecem ser discutidas. É por isso que, a partir de agora, o texto se permite a entrar em spoilers. Não é uma mera tentativa de justificar, mas sim especular e tentar entender o que existe por trás dessas imagens inesquecíveis e, talvez, entrar um pouco na cabeça de um artista tão provocador quanto Nicolas Winding Refn.
SPOILERS A SEGUIR!
Jesse é a boa menina virgem e ingênua tentando o sucesso em um mundo selvagem, cujo arco dramático a transforma no extremo oposto. Ela se torna a encarnação desta mesma selvageria, graças aos seus encantos, que fluem de forma absolutamente natural. Nenhum dos responsáveis pela sua ascensão a deseja sexualmente, seduzidos apenas pelo ideal da beleza suprema, o que a mantém imaculada fisicamente, mas a corrompe pela vaidade. Incapaz de entregar-se a alguém e apaixonada por si mesma, a referência ao mito de Narciso é inserido na cena do desfile, onde ela beija seu próprio reflexo.
Continuando a referência, o interesse sexual que Jesse – nome que serviria para ambos os gêneros - desperta em dois personagens também é simbólico, pois temos um homem –Dean- e uma mulher –Ruby. O primeiro apenas se afasta ao ser desprezado, mas a segunda arquiteta uma vingança, culminando no assassinato da garota. Se no mito tínhamos um lago para a destruição de Narciso, aqui temos a piscina vazia, causando uma morte bem mais violenta, é claro. Isso nos leva em seguida ao desfecho polêmico do filme, mas precisamos considerar outros detalhes antes.
Estaria Refn resgatando, além de Narciso, arquétipos de contos de fadas? Isso, de certa forma, explicaria a mensagem tão simples e direta, além dos diálogos e um desenvolvimento nada mais que básico, quando muito, destes personagens. Novamente ressaltando que essa reflexão não é uma tentativa de justificar qualquer coisa, vamos aos elementos que o diretor nos ofereceu.
Sarah e Gigi agem como se fossem irmãs, cúmplices de Ruby na morte e na canibalização de Jesse. As duas primeiras motivadas pela inveja e a terceira pela impossibilidade de possuí-la. Temos quatro mulheres, com três delas buscando – conseguindo, neste caso – a destruição de outra por motivos egoístas em um nível infantil. Faz sentido lembrar da invejosa dupla de meias-irmãs de Cinderela, que dividiam esse sentimento e o papel de antagonistas com a mãe, a madrasta da menina bondosa. O interessante é que esse olhar torna Ruby a personagem mais interessante, pois ela aparece inicialmente como uma Fada Madrinha, para depois tornar-se a madrasta, além, é claro, de carregar a alusão à ninfa Eco, apaixonada por Narciso.
É óbvio que a forma como a beleza de Jesse afeta algumas pessoas é digno de um conto de fadas, completando o conjunto de princesa com sua pureza e seu sucesso instantâneo, tudo bem distante de uma situação realista. A garota atinge o que seria o momento culminante de uma princesa das narrativas clássicas, mas sem passar pelas provações comuns a estas heroínas. Parece que, por conta disso, o preço é a corrupção completa e sua consequente destruição.
Lembrando de outro conto popularizado pelos irmãos Grimm, muito provavelmente derivado da mesma raiz de tradição oral que Cinderela, afinal ,as similaridades são inegáveis, Branca de Neve também parece influenciar Demônio de Neon. Mais uma princesa virgem vítima de inveja doentia de uma madrasta má, que, neste caso, agiu sozinha. Novamente, podemos encontrar dois arquétipos em um mesmo personagem do filme. Jesse é Branca de Neve, tornando-se a Rainha má durante o desfile, onde temos outro elemento forte de associação: o espelho. Como convém aos vilões, Jesse tem um fim trágico por conta de um sentimento mesquinho.
O canibalismo também não era algo incomum em contos de fadas. O cadáver de Jesse foi consumido por Sarah e Gigi, que queriam sua beleza e juventude, mas o filme não confirma se Ruby também partilhou desta carne, apenas que ela participou do ritual e banhou-se em seu sangue. Se for isso, faz sentido, já que a motivação dela era outra. Não apenas a antropofagia serve como referência, mas a forma irreal e simbólica como ela foi apresentada, já que Gigi vomita um olho inteiro (!) de Jesse, morrendo em seguida ao tentar abrir seu ventre para retirar os restos da garota. Deixando de lado o que esse acontecimento tenta comunicar, a situação geral tem algo da versão mais popular de Chapeuzinho Vermelho, onde a avó foi retirada inteira do estômago do Lobo.
Jesse e Ruby indo do “bem” ao “mal” simultaneamente é uma dinâmica curiosa, criando uma sequência de acontecimentos que termina em morte. Citei Cisne Negro e a diferença na questão dos espelhos. Se o significado dos reflexos é diferente em cada um, talvez a jornada de Nina no filme de Aronofsky tenha mais a ver com Jesse do que parece em um primeiro olhar.
No sentido psicanalítico, ambas as personagens são garotas com algum grau de repressão e infantilizadas, buscando uma realização que envolve encontrar um lado delas ainda não acessado na psique. No caso de Nina, é mais evidente que ela precisa alcançar sua sombra, seu lado que ela rejeita e nega, para personificar o Cisne Negro. Com Jesse, o processo já é inconsciente, mas ambas chegam a um estágio semelhante. Como um ego cindido não suporta o encontro com a sombra, o resultado é a extinção do indivíduo. Nina encontra a morte após abraçar sua sombra, assim como Jesse morre após o monólogo que confirma o que ela se tornou.
Enfim, há bem mais a se explorar na iconografia geral de Demônio de Neon. Com todos os defeitos que eventualmente apontemos, ainda existe muito conteúdo a ser discutido, o que torna o filme, no mínimo, muito intrigante e prova que Nicolas Winding Refn é um dos realizadores mais interessantes da atualidade. Gostem ou não do trabalho dele, é impossível ficar indiferente.
Crítica | Harry Potter e a Criança Amaldiçoada
O bruxinho está de volta nessa continuação que você talvez até tenha pedido, mas é como diz o ditado, cuidado com o que deseja. Pouco após J.K. Rowling ter terminado a famosa série de livros, ela disse que iria dar um tempo no mundo bruxo e experimentar coisas novas, dessa fase nasce o suspense político “Morte Súbita” e a série de livros policiais das aventuras do detetive Cormoran Strike (O chamado do Cuco, Bicho da Seda, etc.).
Mas essa fase não durou muito, as novas aventuras da Rowling nem chegaram perto do apelo que Harry Potter teve. Ela então não tardou a mudar de ideia e logo retornou ao universo do "menino que sobreviveu". Escreveu o roteiro do filme Animais Fantásticos e Onde Habitam que vai estrear esse ano e autorizou essa peça que não foi escrita por ela e sim por Jack Thorne, premiado dramaturgo britânico.
Mas será que esse retorno ao mundo bruxo valeu a pena? A história começa pouco depois de onde o sétimo livro parou, com Harry, Ginny, Rony e Hermione mandando seus filhos para Hogwarts, seus filhos são os novos protagonistas da história, Albus (Filho do Harry) e Rose (Filha do Rony e Hermione) costumavam ser grandes amigos mas simplesmente por Albus ter sido escolhido para integrar a casa da Sonserina eles param de se falar, assim ele acaba fazendo amizade com Scorpius (filho de Draco Malfoy).
O que é interessante aqui é que Albus tem problemas com o pai. Albus ao contrário do pai dele detesta Hogwarts, seus colegas e até mesmo a sua família acham um absurdo um Potter ter sido escolhido para a Sonserina, isso faz com que Albus se sinta muito só. Harry não parece entender pelo que seu filho está passando, afinal em sua cabeça Hogwarts é o melhor lugar da face da terra, esse pequeno elemento já faz com que os dois se estranhem.
O alívio de Albus é o seu grande amigo Scorpius. Scorpius é com certeza o melhor personagem novo, ele é engraçado, inteligente e os dois personagens (Albus e Scorpius) tem uma ótima química, é um bromance que funciona.
Hermione é ministra da magia e Harry agora é chefe do departamento de execução das leis da magia. Harry confisca um vira-tempo ilegal. Pouco depois de o livro “Harry Potter e a Ordem da Fênix” ter sido lançado, Rowling explicou que destruiu todos os vira-tempos na sala de mistérios porque ela percebeu que mexer com tempo é uma coisa complicada e ela quis descartar de uma vez por todas a possibilidade de usar esse recurso novamente. Assim é bastante engraçado que toda a trama da peça se baseia exatamente nisso que ela procurou evitar, ainda contradizendo regras que você fã de Harry Potter sabe muito bem que foram estabelecidas na mitologia.
Amos Diggory, o pai do finado Cedrico Diggory ficou sabendo que Harry tinha confiscado um vira-tempo e pede a ele para voltar no tempo para salvar o seu filho, já que ele não precisava morrer. Harry obviamente recusa, mas Albus ouve a conversa e num ato de rebeldia contra seu pai resolve ir atrás do tal vira-tempo, assim ele convence Scorpius a ir com ele buscar o vira-tempo.
A partir daqui a história vira uma espécie de “De volta para o futuro 2” que muitos estão cansados de ver. Albus e Scorpius viajam entre realidades alternativas desde uma realidade em que Rony e Hermione nunca ficaram juntos portanto seus filhos nunca nasceram e Hermione é uma professora chata de poções à la Snape para uma em que Harry morre na batalha de Hogwarts e Voldemort reina, onde tudo é muito sombrio.
A história é praticamente só um “E se” da vida e sim, tem um vilão. Um vilão muito óbvio e de longe o pior personagem da história, tem uma das piores motivações que eu já vi, é simplesmente terrível.
Alerta de Spoiler
A história da “Criança amaldiçoada” é a seguinte, há um boato dizendo que Draco e sua esposa Astoria tinham problemas para ter um filho Assim Lucio e Draco, para garantir o futuro dos Malfoy, enviaram Astoria de volta no tempo para ter filho com Voldemort. Esse boato já é absurdo, nós sabemos que nem mesmo Lucio tinha simpatia por Voldemort, ele o obedecia por medo e Draco muito menos, mais fácil seria eles darem a esposa pra qualquer zé-ninguém sem nem mesmo precisar do vira-tempo.
Pois bem, Scorpius também é muito repudiado em Hogwarts e sofre bullying por ser “filho do Voldemort” apesar dele ser a cara do Draco. Há uma cena em que Draco pede para Harry reafirmar que todos os vira-tempos foram destruídos na batalha do departamento de mistérios pois seu filho sofre muito com o boato, o que não custaria nada, mas Harry simplesmente se recusa dizendo que logo vão esquecer isso tudo e que ele mesmo nem acredita nesse boato.
Mas em outra cena quando Harry está procurando seu filho na floresta proibida de Hogwarts, o centauro Bane diz a Harry que tem uma “sombra” sobre o seu filho, Harry associa isso a Scorpius, fica paranoico e proíbe seu filho de andar com ele, contradizendo o que ele diz a Draco e se tornando um completo babaca.
Alguns personagens as vezes não soam como eles mesmos em alguns momentos, por exemplo, no caso de Rony, ele sempre foi um alívio cômico mas era bem mais que isso, ele era um personagem útil, na realidade alternativa sombria ele não consegue nem segurar em uma varinha direito... ele, um bruxo adulto da resistência contra Voldemort segurando a varinha ao contrário é no mínimo ridículo.
Draco, por outro lado é um dos poucos personagens que eu realmente gostei da mudança, você vê que ele realmente evoluiu como pessoa, não é mais aquele garoto covarde e fará qualquer coisa pelo bem de sua família sem hesitar.
Por fim, a criança amaldiçoada não era Scorpius e sim uma garota chamada Delphi, que é filha do Voldemort e da Bellarix Lestrange e indiretamente atiça o Albus a pegar o vira-tempo, pois o plano dela era voltar no dia em que Voldemort matou os pais de Harry para alertá-lo para não tentar matar o menino pois foi aí que ele enfraqueceu, se ele não tivesse feito isso conquistaria o mundo muito mais rápido e ela poderia governar ao seu lado.
Mas depois de derrotada por Harry, Albus e seus amigos ela admite que tudo que ela queria era um pai, uma relação paternal... quando seu pai é Voldemort é melhor ficar sem pai mesmo, preciso nem comentar.
Fim dos spoilers
A minha conclusão depois de ler essa história é que ela não chega nem aos pés de qualquer outro livro de Harry Potter, deveria ter ficado como spin off e não vendida como “A oitava história”. O enredo tem um plot preguiçoso demais e soluções mais preguiçosas ainda. Se for ler, não tente pensar muito porque se fizer isso provavelmente vai detestar tanto ou mais do que eu que li até com certo ceticismo.
Harry Potter e a Criança Amaldiçoada (Harry Potter and the Cursed Child, Estados Unidos – 2016)
Autor: J.K. Rowling, John Tiffany, Jack Thorne
Editora: Rocco
Gênero: Fantasia, Aventura
Páginas: 352