Existem diretores que são substancialmente subestimados. Não há uma boa explicação para esse fato. Mesmo que consigam se manter na indústria entregando excelentes filmes, não existe um burburinho forte sobre esses caras. É fácil apontar Peter Weir como um desses nomes, apesar de alguns de seus filmes serem tão festejados como O Show de Truman e A Sociedade dos Poetas Mortos.
Em uma das jornadas mais arriscadas da carreira, Weir decidiu retomar a parceria com Harrison Ford concretizada no ótimo A Testemunha, em uma difícil adaptação do livro A Costa do Mosquito de Paul Theroux que explora a fundo temas perturbadores como a psicologia humana, egoísmo, religião, criacionismo e civilização.
Para isso, Theroux usa o microcosmo de uma pacata família americana liderada por um patriarca excêntrico: o inventor Allie Fox. Naturalmente um pessimista e ferrenho crítico do acomodado estilo de vida da sociedade americana, Fox só precisava de um pequeno empurrão para largar a “Terra das Oportunidades”. Após não receber o reconhecimento devido ao inventar uma máquina de congelamento instantâneo, decide levar toda sua família para morar em La Mosquitia na Costa do Mosquito de Honduras, na América Central.
Ao chegar lá, Fox compra uma pequena cidade que é mais um rudimentar vilarejo com poucos habitantes no meio da selva. Determinado a dar forma a sua própria visão de mundo, Fox decide trazer “civilização” para aquele lugar, mesmo que isso lhe custe a própria sanidade.
Brincando de ser Deus
Se pegar A Costa do Mosquito sem saber absolutamente nada da produção, com certeza irá se surpreender quando o nome de Paul Schrader, lendário roteirista de Taxi Driver, aparecer nos créditos iniciais. Uma das características mais interessantes de Schrader é compreender como esse material que adaptou é a frente de seu tempo.
Lançado em 1986, o público não aceitou nada bem as temáticas complicadas e abordagens filosóficas que criticavam o modo americano de viver. O resultado foi drástico e, injustamente, A Costa do Mosquito foi um enorme fracasso de crítica e bilheteria. Isso ocorre porque o cinema comercial não estava acostumado com narrativas naturalistas, a linha filosófica popularizada por Henry Thoreau, e hoje muito romantizada por filmes pró-naturalismo como Na Natureza Selvagem e Capitão Fantástico.
Entretanto, Schrader sabia bem como trabalhar a psique humana e ainda consegue modelar um ótimo protagonista que viraria modelos para os filmes naturalistas atuais já mencionados. Esse tipo de narrativa geralmente é liderada por um protagonista nada simpático, extremamente egoísta e orgulhoso demais para admitir que seu modo de ver o mundo é errado.
O que torna essa adaptação tão interessante é que, ao contrário dos filmes naturalistas atuais, Schrader mostra sob uma narrativa cínica e severa como o naturalismo pode ser problemático e finaliza condenando completamente a filosofia com bastante sutileza. Allie Fox é um personagem bastante interessante, já apresentado como um arrogante completo, mas também como um homem genial.
Seu ódio pelo modo de vida confortável propiciado pela ascensão econômica capitalista é bem balanceado em argumentos interessantes e outros totalmente estapafúrdios que já demonstram o desequilíbrio psicológico do personagem. Assim como também é comum nesse tipo de narrativa, somente o protagonista recebe muito detalhamento ao longo do filme inteiro. A família que o acompanha, a Mãe (interpretada por Helen Mirren) e seus quatro filhos. Apesar do estranhamento inicial de uma mudança tão drástica no modo de vida, imbuídos pelo sentimento de aventura, todos aceitam embarcar nessa jornada insana de Fox: levar civilização para as matas selvagens de Honduras.
Como disse, Schrader não é um roteirista incompetente e sabe segurar com muita competência a primeira metade inteira do longa, servindo para estabelecer uma ambiguidade assustadora em Fox que é um personagem cheio de boas intenções – exatamente como o Inferno. Em Jeronimo, vemos como Fox trabalha incessantemente e força os outros a trabalharem para conseguir erguer sua utopia, aliando tecnologia limpa, agricultura e um bendito esquema de refrigeração no meio da selva.
Certamente o personagem é bem-sucedido na missão e consegue melhorar a qualidade de vida das pessoas que viviam ali. Sua divina missão é concretizada e o homem rapidamente não fica satisfeito com a paz que dominou o lugar. Afinal, novamente, os locais não o trataram como uma divindade por conseguir produzir gelo, por produzir a civilização. Em uma insana jornada, Fox decide carregar um imenso bloco de gelo em toda a floresta em busca de índios isolados para presentear-lhes com gelo, acreditando que irão adorá-lo como uma pedra preciosa.
Obviamente que o plano engrena um ótimo conflito para o restante do filme, além de deixar explicito como a família de Fox já não aguenta mais viver essa loucura. Ou seja, é uma clara divisão entre ascensão e declínio do paraíso privado que Fox construiu. O que antes era ambíguo, se torna explícito com a loucura completa que o personagem entra.
Há sacadas políticas e sociológicas muito interessantes, algumas são pouco desenvolvidas como o esquema rudimentar de economia que Charlie, o filho mais velho, organiza com algumas crianças em segredo. Já a mais interessante tem a ver com proteção territorial, opressão e o desarmamento ligando diretamente como consequências negativas tanto da arrogância do personagem como da sua filosofia, colocando todos da cidade em perigo extremo.
Schrader constantemente aborda essa questão do espírito humano e do caos. Fox quer ter controle de tudo e dominar a natureza, sendo que nada segue os padrões impostos pelos humanos. Esse duelo entre ele e a força da selva é muito bem estabelecido na segunda metade, acompanhando o declínio completo que ele trouxe para si mesmo, sua família e os habitantes de Jeronimo os deixando em um estado ainda mais precário do que estavam antes de sua chegada.
Nessa descida, Schrader, enquanto mostra mais fracassos do personagem e sua completa falta de noção ao ignorar os pedidos de sua família ao afirmar categoricamente que os Estados Unidos foram destruídos em uma guerra nuclear, também revela uma posição elitista e racista do personagem. Um conflito recorrente, que também é resgatado aqui, é o tremendo ranço que Fox tem com os missionários religiosos que viajam até a Costa para converter os cidadãos locais, também oferecendo avanços tecnológicos e o comodismo tão rejeitados por Fox.
Apesar de, na prática, esse choque de Fox com os religiosos ser fraco e redundante, também traz momentos que nunca abordam a questão religiosa que o protagonista sofre internamente de maneira explícita, além da sempre presente (e desnecessária) narração over. É aí que Peter Weir entra com seu tremendo talento cinematográfico.
A Tragédia Humana
Peter Weir é um prolífico diretor interessado na condição humana. Seja na depressão com A Sociedade dos Poetas Mortos, na crueldade do isolamento involuntário em O Show de Truman, da obsessão completa pela violência em O Mestre dos Mares e dos sacrifícios de uma paixão em A Testemunha. Todos os filmes dialogam nesse ponto, além de trazerem um quê de excentricidade e exotismo.
A Costa do Mosquito possui todas essas características que a tornam uma realização cinematográfica formidável. Weir é um diretor simples, mas muito eficiente. Em um drama pesado como esse, compreende bem que a decupagem não pode ser agitada, nem ficar chamando a atenção para os recursos técnicos que ele emprega na estética do filme.
Portanto, mesmo sendo um filme bastante bonito, valorizando tremendamente as imagens das locações belíssimas nos rios e das selvas, Weir opta em concentrar seus esforços enquadrando emoções. Há uma bela magia nos enquadramentos desses diálogos tensos que Schrader fornece entre Fox e todos os outros. Weir busca as reações das crianças, da Mãe e de Fox para tudo o que acontece ali, mostrando a ingenuidade das filhas mais novas, do crescente ódio dos garotos e do sofrimento que a Mãe passa, além das expressões completamente malucas e agressivas de Fox.
Aliás, tendo visto muitos filmes com Harrison Ford, já digo imediatamente que nunca tinha visto ele atuar com tanta vontade como aqui. Ford cria um personagem complexo, cheio de energia e totalmente imprevisível em suas reações: violentas ou não. O ator escolhe com cuidado como vai abordar os personagens, transparecendo uma ameaça e coerção em todo seu posicionamento, mesmo que ele seja amistoso. Não sou apenas eu que elogia essa performance de Ford, afinal ele próprio admite que esse é o filme que tem mais orgulho em ter trabalhado.
Weir também acerta muito ao mostrar em imagens claras do desenvolvimento de Jeronimo como Fox é um grande hipócrita, afinal, ele nunca tentou entender os habitantes e sua cultura. Fox apenas chega e assume que a sua vontade de progresso é a melhor possível quando na verdade outros convivem perfeitamente bem com o conforto oferecido pelos missionários e de recursos tecnológicos para entretenimento como rádios e televisores.
Outro fator interessante é como Weir estabelece a forte sensação de não pertencimento àquele lugar. Isso acontece quando Fox consegue enfim montar sua gigantesca máquina de refrigeração ao custo de uma boa quantidade de árvores desmatadas. Com um plano geral belíssimo, Weir mostra as copas das árvores e aquela geringonça faraônica montada no meio do mato, quebrando a beleza natural do lugar.
Essa máquina tem uma função vital na transformação da narrativa, pois ela simboliza o enorme ego do personagem. Quando enfim chega uma conclusão para o arco de Jeronimo, Weir simplesmente mostra o edifício como um gigante monstro cuspidor de fogo, basicamente um emissário do Inferno, demonstrando esse ódio completo que Fox tem com o cristianismo – evidenciado pela última atitude significativa que ele assume no longa.
Weir é particularmente feliz em estabelecer longas sequências para mostrar os esforços hercúleos de trazer civilização para Jeronimo, mas ao mesmo tempo, só mostra o sofrimento no sacrifício egoísta quando Fox organiza a expedição para levar gelo aos índios e ser inocente em atrair soldados de milícias locais para sua cidade – uma das duas grandes ironias que ocorrem na cena.
Nessa sequência, facilmente a mais tensa do filme, Weir cria um senso de ameaça tremendo, incluindo sugestões de violência sexual e infantil. É uma iminência de perigo gigantesca que mostra o quanto Fox é impotente em tudo: com sua família, com Jeronimo, com suas criações, com a natureza e a força divina. Graças a fotografia de John Seale que adiciona um grau de saturação adequado para emanar um calor insuportável no lugar, além das luzes refletidas pelo denso suor, temos um visual perfeito de aventura, mas de uma aventura cheia de tragédias e medo.
Utopia Fracassada
A Costa do Mosquito foi um longa visionário e rechaçado na época. Porém, me parece que ao longo dos anos, conforme é revisitado, mais pessoas compreendem sua importante mensagem cheia de pequenas complexidades. Mesmo que condene veementemente o modo de vida de ditos naturalistas dispostos a tornar a vida dos outros um verdadeiro inferno, Weir e Schrader tem um importante cuidado em definir mensagens edificantes sobre a natureza e o equilíbrio na vida.
Em todos os excessos, seja o das vaidades como o de consumo, o único caminho que se percorre é repleto de sofrimento, insegurança e solidão. Temos aqui um excelente estudo de personagem, um dos mais trágicos possíveis que não apela a sentimentalismos baratos e caminhos fáceis.
A Costa do Mosquito (The Mosquito Coast, EUA – 1986)
Direção: Peter Weir
Roteiro: Paul Schrader, Paul Theroux
Elenco: Harrison Ford, Helen Mirren, River Phoenix, Jason Alexander, Conrad Roberts
Gênero: Drama
Duração: 117 minutos.