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Crítica Com Spoilers | Velvet Buzzsaw – Arte de Matar

Um diretor de talento que não vinha recebendo chances o suficiente no cinema, agora migrando para a Netflix com uma história audaciosa em mãos e trazendo consigo um elenco estelar? Que grande novidade. Ironias à parte, eis que até um talento em ascensão como o diretor e roteirista Dan Gilroy vinha se mostrando ser desde seu grande debut com O Abutre, decidiu migrar para a plataforma Netflix e ter a liberdade criativa e orçamento ilimitado para investir em outra ideia louca e interessante que lhe veio à cabeça.

Já ouso em dizer que talvez seja até hoje, se não o melhor, com certeza o mais interessante texto que já escreveu. Que ao contrário de seu último filme, o mediano Roman J. Israel, que tinha um ótimo personagem e uma boa história que caíram nas próprias pretensões, sem falar das refilmagens apressadas que o filme sofreu, Velvet Buzzsaw é realizado do jeito que o diretor imaginou e resulta em um bom projeto de um autor, mesmo que não tome proveito de todo o seu potencial para tornar o filme muito melhor do que acaba sendo, mas ainda vamos chegar lá.

Após uma série de pinturas de um artista emergente de nome Vetril Dease serem encontradas após sua morte, os artistas de elite e colecionadores correm contra o tempo para conseguir por as mãos nos altos lucros que esses belos quadros clássicos podem trazer. Mas estão para pagar um preço caro quando uma força sobrenatural começa a misteriosamente a atacar todos que investiram nos quadros. Dando início a uma vingança contra aqueles que colocaram o lucro e o comercial acima do talento artístico.

Moderna vs Clássica

É mais fácil do que parece perceber que Gilroy deseja fazer aqui um forte comentário sobre, não o que é a “verdadeira arte”, mas como ela é realmente vista ou encarada no cenário atual. Ao mesmo tempo que procura fazer um estudo de personagem sobre índole, ganância, etc, o básico. Tão básico que se formos lembrar de filmes como Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância) de Alejandro G. Iñárritu cujo palco era o teatro mas fazia um comentário sobre cinema, Velvet Buzzsaw não se atém apenas comentar sobre a arte da pintura e expandir sua alegoria para outras artes, como um visitante da galeria de arte diz muito bem no início que uma das obras de arte na exibição, o “Mendigo-Homem” representa uma universalidade, o pop, o cinema, a economia, etc.

Misturar isso com uma trama que segue uma linha bem tênue dentro do terror e do mistério poderia facilmente ter se tornado enfadonho e desgastante, mas é um subtexto tão forte e afiado o suficiente para manter o filme intrigante e minimamente envolvente para quem gosta de admirar “a verdadeira arte”. E para isso ele recorre a táticas narrativas interessantes, mesmo que não sejam tão originais quanto parecem.

A influência que ele toma do cinema de David Cronenberg é muito palpável nas características que o filme possui e no que aspira fazer. Um retrato de classe decadente em espírito e moral que tanto lembra filmes como Mapas para as Estrelas, ou como o universo midiático corrupto de Videodrome. Sem falar nas tensões sexuais palpáveis entre cada um dos personagens, embora nenhuma seja devidamente explorada tirando o relacionamento de Morf (Jake Gyllenhaal) com Josephina (Zawe Ashton) que nem sequer apela para o erótico como em uma cena inicial dos dois sugere.

Mesmo que sua direção também tente ir mais pelo caminho serial killer catártico, com cenas de violência gráfica que remetem sutilmente ao estilo de thriller ala Brian De Palma ao tentar criar o constante sentimento de dúvida e mistério ao longo do filme, onde nada aparenta ser o que é. Exceto o fato de que as obras de arte estão realmente criando vida e matando os personagens, é exatamente o que parece e é o que está acontecendo. Mas também faz parte da muito bem executada tentativa de Gilroy em querer mostrar o quanto esse universo da “alta classe artística” vive em uma ilusão, onde mostra toda uma artificialidade que habita nesse meio, em que as relações são complemente falsas e descartáveis.

O que inicialmente parece ser uma amizade cheia de intimidade como entre Morf e Gretchen (Toni Collette), num piscar de olhos se torna uma inimizade quando Gretchen pede um adiantamento do que ele vai escrever na sua crítica para obter maior lucro. Isso o ofende profundamente. Os personagens são mutáveis, fugindo dos parâmetros clássicos de antagonista e herói, onde uma dita inocente admiradora de arte como Josephina que rapidamente se torna tão inescrupulosa quanto Rhodora (Rene Russo) em uma ganância ególatra cega; ou o gay que não é bem gay de Morf que sente uma forte atração ciumenta por Josephine. Nada da realidade é real ao ponto da arte criando vida ser a única coisa real dentro do filme.

Daí vem a grande relevância que a personagem de Rhodora tem no desenrolar da trama bem mais do que aparenta. À primeira vista ela parece alguém apenas movida à ganância, mas tem um coração amargurado ali dentro, que constantemente se é lembrada do seu passado como artista de música, cujo nome era Velvet Buzzsaw, cuja obra começou a ser vista com o passar dos anos como autoparódia. Se comparando à uma anarquista que se tornou uma provedora de “bom gosto”, uma lucradora da “arte moderna”, a copiada e sem originalidade, abandonando suas origens como artista.

Eis que nasce a razão, tanto do título, quanto pelo evento macabro, ou castigo divino se preferirem, onde o classicismo dos quadros de Vetril Dease parece criar e vida sobrenatural e começa a caçar um por um dos que tiveram um mínimo de lucro dos seus quadros, usando da arte para apenas um fruto financeiro vazio. E também quem regurgita dessa arte moderna artificial, como a morte de Gretchen vindo da suposta esfera que transmite sensações aos que a colocam o braço dentro dela. Acabando apenas sentindo a sensação de dor e morte quando tenta, metaforicamente, tentar sentir o que a esfera, a obra de arte, lhe transmite.

Mas não é o mero toque que vai dar ao indivíduo um conhecimento profundo da obra de arte. Gilroy sabe disso quando busca focar atenção nas visões mal assombradas que afetam Morf o fazendo fazer exames paranoicos de oftalmologia, e o faz ter uma terrível experiência dentro de uma sala de exposição para uma obra auditiva. O ver e o ouvir apontados como ferramentas importantes para se visualizar uma obra devidamente, mas há quem os sabe usar, os que não sabem e os que pensam que sabem como o crítico ególatra que Morf mostra ser. Com o seu constante discurso de que suas análises são sensações do tipo transcendentais e que ajudam a engrandecer a obra.

O personagem é a perfeita representação dos grandes e únicos conhecedores e apreciadores da “verdadeira arte”. Se usando da sua dialética elevada e do seu trabalho de críticos da arte para mostrar uma sabedoria superior à de outros, de uma arte que eles talvez nunca compreenderão à fundo ou serão capazes de realizar. Por isso em contrapartida à Morf temos os dois personagens menores mas de igual grande relevância na narrativa, os artistas Piers (John Malkovich) e Damrish (Daveed Diggs).

Ambos que ironicamente são os únicos que olham para as obras de Dease como verdadeiras obras de arte, sem visar o lado lucrativo. Por mais que Morf olhe com genuíno encanto para os quadros, ele apenas visa o lucro pelo conteúdo como crítico e autor, que resulta da sua morte vindo de um literal estupro do robô mendigo que caçoou no início em uma cena cinicamente hilária – o filme, aliás, possui ótimos foreshadowings. Nessa cena, o robô avisa que não conseguirá salvá-lo, a mesma coisa que já o havia dito no início do filme. Fazendo parecer assim que as obras de arte já estavam à espreita de suas futuras vítimas.

Enquanto os dois artistas restantes, não só sendo dois dos únicos a sobreviverem aos ataques sobrenaturais, junto com a coitada da secretária Coco (Natalia Dyer), como também adquirirem conhecimento valioso. Com Damrish se esquivando completamente da arte gananciosa, por mais que Josephina o tente atrair, e no final apenas procura voltar para suas origens pois ele vê a sua arte de rua como mais valiosa do que a moderna inacessível e idiótica.

Já Piers, que procurava reconquistar as antigas glórias do passado com obras que lhe traziam dinheiro, decide parar de refazer a mesma coisa de novo e de novo e fazer algo genuinamente do coração. Por isso que Rhodora, em seu raro momento de humanidade no filme, entrega à Piers uma carta de uma antiga colega, que consiste não só no monólogo perfeito que define todo o filme, como também serve o intuito de ajudá-lo a reencontrar a inspiração:

A dependência mata a criatividade, a criatividade brinca com o desconhecido. Não existem estratégias que possam abranger o reino infinito do novo. Apenas a confiança em si mesmo pode te levar além dos seus medos e do que já é conhecido.”

Transcrevendo para o que o filme busca dizer com esse belo trecho: a dependência do lucro, do sucesso, mata qualquer forma inspiração pura. Isso no nosso mundo moderno só se intensificou ao ponto de fazer com que a genuína forma de arte crie uma vida própria, daí nasce a imaginação de onde nasce a inspiração artística. Onde não mais existem tentativas desesperadas e frustradas de procurar ser original em um mundo onde ela não mais existe. Mas é na segurança em si mesmo, no seu potencial, no seu amor pela arte que é possível se vencer o medo da frustração e do não ser reconhecido por uma obra feita com verdadeiro coração. Isso, evidentemente, é uma crítica certeira aos blockbusters enlatados que permeiam os cinemas anualmente, e com os mesmos filmes, ou músicas, entre outras formas de arte, sendo feitos e refeitos constantemente.

Assim, por mostrar como os gananciosos que só desejavam tirar o fruto financeiro das obras de arte sucumbiram ao seu poder, enquanto o vendedor de rua humilde que cobra uma simples merreca pelos quadros que encontra no lixo é o que consegue transmitir ao público a beleza e pureza presente naqueles quadros. Assim como Piers que consegue por para fora a inspiração que queria quando se encontra em um cenário rústico e, novamente, de humildade ao desenhar sua arte nas areias de uma praia. Onde as ondas que passam não destroem os desenhos na areia, pois não há mais uma força, sobrenatural ou natural, capaz de destruir verdadeira e genuína arte, feita com sentimentos.

Mal Pincelado

Como podem ter percebido, em conteúdo, Velvet Buzzsaw não desaponta nem um pouco no que tem a dizer habilmente sobre o mundo artístico em geral, e que vai facilmente despertar a reação mista que vai fazer o filme cair na categoria do “ame ou odeie”. Mas infelizmente Gilroy não parece se mostrar tão inspirado numa perspectiva técnica quanto facilmente poderia e que já havia feito tão grandemente com O Abutre

Seguindo uma estrutura tão básica e clichê na sua construção do terror, recorrendo à trilha sonora alta e distrativa, buscando criar um suspense gratuito, com sutis acordes tecnos que parecem tiradas de um filme do John Carpenter e que ficam completamente fora de lugar. A única cena onde o suspense genuinamente funciona é na cena que Josephina encontra os quadros de Dease, que ironicamente é filmada em um belo uso de silêncio que consegue construir o clima de suspense e perigo iminente.

Nem mesmo a violência gore consegue ressoar nada gráfico ou chocante quanto almeja ser. Algumas são criativas o suficiente para serem no mínimo visivelmente interessantes como Josephina sendo engolida pela tinta dos quadros que a cercam e Rhodora morrendo com a sua tatuagem no pescoço lhe cortando a garganta fora.

Nem o trabalho de câmera, que é funcional na maior parte do tempo, não faz grande proveito da EXCELENTE fotografia de Robert Elswit que cria alguns cenários paisagísticos no fundo de cena que parecem verdadeiros quadros de pintura no seu próprio formato, sem falar claro que, assim como tão bem em O Abutre, consegue tornar cada cena completamente imersível para o público dentro do mundo do filme.

Até no elenco temos acertos e oportunidades perdidas, coberto de imensuráveis talentos que conseguem passar por personagens que não são mesmo dos mais complexados ou dramaticamente profundos como víamos tanto em O Abutre e até em Roman J. Israel. Com nomes como Toni Collette sendo quase apenas um enfeite bonito de cena, enquanto John Malkovich embora integral à narrativa esteja em uma nota só durante todo o filme. O mesmo com Zawe Ashton que passa de tristonha traída no início para gananciosa cega durante o resto do filme de modo extremamente caricato.

Salvo Rene Russo que graças ao marido diretor volta à receber devido destaque com seu talento sendo explorado. Mas é Jake Gyllenhaal que como sempre rouba todos os holofotes e engrandece todas as cenas em que aparece com sua personalidade afeminada de determinação fria e calculista em suas intenções, mas com sentimentos puros turbilhando dentro de si em busca de uma redenção impossível.

Até mesmo que a montagem de John Gilroy tire pouco da personalidade contemplativa e observadora que a fotografia tanto almeja, consegue mostrar ser bem engenhosa e criativa, não perdendo tempo em estabelecer uma estrutura convencional no início do filme, e que mostra ter algo a revelar em cada um de seus cortes como quando Morf vê os quadros de Dease pela primeira vez e pergunta encantado quem é o autor para Josephina que abre um sorriso ambicioso, cortando para um programa de loteria com milhões em aposta indicando o mar de dinheiro que eles estão para mergulhar.

Arte em ascensão

Com tudo isso, Dan Gilroy está mostrando mesmo, cada vez mais, ser um diretor que almeja construir uma personalidade e estilo técnicos muito próprios, mesmo que ainda não tenha uma voz complemente reconhecível de autor. Embora possua um roteiro tão audacioso e com uma ótima história que traz temas ainda relevantes, e nada forçados, a se comentar sobre o cenário atual que encontramos o mundo das artes, seja ele qual for.

E sucede, mesmo dentro de certas inescapáveis familiaridades que, como o próprio filme diz ser impossível de fugir, em conseguir ser uma obra de teor interessantíssimo e capaz de gerar boas discussões. Se não sobre o valor do que são verdadeiras obras de arte hoje em dia, pelo menos sobre qual o tipo de valor e sentimento que damos à arte em si e o que ela nos consegue despertar.

Velvet Buzzsaw (Idem, EUA – 2019)

Direção: Dan Gilroy
Roteiro: Dan Gilroy
Elenco: Jake Gyllenhaal, Rene Russo, Zawe Ashton, Toni Collette, Daveed Diggs, John Malkovich, Natalia Dyer, Tom Sturridge
Gênero: Terror, Thriller, Suspense
Duração: 112 min.

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Publicado por Raphael Klopper

Estudante de Jornalismo e amante de filmes desde o berço, que evoluiu ao longo dos anos para ser também um possível nerd amante de quadrinhos, games, livros, de todos os gêneros e tipos possíveis. E devido a isso, não tem um gosto particular, apenas busca apreciar todas as grandes qualidades que as obras que tanto admira.

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