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Crítica | Dear White People: 3ª Temporada – Mais acidez e (muito) mais ironia

Ainda que a Netflix peque consideravelmente na relevância e na originalidade de algumas histórias originais, grande parte de seu catálogo seriado se desenrola em uma madura construção narrativa que nos deixa empolgados a cada novo episódio. Felizmente, é isso o que acontece com a ovacionada produção Dear White People, um ácido e necessário show da plataforma baseado no filme homônimo de 2014 que retornou para sua terceira temporada após um ano. E, como já era de se esperar, Justin Simien conseguiu entregar um novo ciclo com grande competência estética e técnica que, mesmo falhando em alguns aspectos, permanece nos guiando de forma honrável através de uma trama tragicômica e misteriosa.

Seguindo os passos da iteração original, o último season finale deu as cartas para os próximos dez capítulos ao levar Sam (Logan Browning) e Lionel (DeRon Horton) ao encontro do misterioso do Mestre da Ordem do X (Giancarlo Esposito) também conhecido como o Narrador. Na verdade, todos os eventos desenrolados nos episódios anteriores culminaram neste momento e, delineando-se do modo mais hilário e irreverente possível, acaba mostrando que a Ordem não existe mais, estando fragmentada pelos quatro cantos da Universidade de Winchester e escondida esperando a brecha certa para reinsurgir. O que, eventualmente, leva os nossos dois protagonistas a enterrarem esse caso sem saída e seguiram com as próprias vidas – e, três meses depois, Sam pareceu ter abandonado sua militância como porta-voz da comunidade negra, e Lionel se transformou em uma sex machine incontrolável.

É claro que a trama principal continua regendo implacavelmente sua orquestra ao mesmo tempo em que abre espaço para arcos secundários também ganharem expressividade. Troy (Brandon P. Bell) se juntou à machista revista Pastiche tarde demais para descobrir que sua organização não passa de uma extensão de qualquer monarquia autoritarista dos séculos passados, enquanto Joelle (Ashley Blaine Featherson) assume a apresentação do programa-título da série, ao mesmo tempo que lida com o recém-assumido relacionamento com o conturbado Reggie (Marque Richardson) e com o coração quebrado do insuportável Rashid (Jeremy Tardy). Coco (Antoinette Robertson), por sua vez, tenta desesperadamente conseguir uma carte de recomendação para seu intercâmbio em Paris e luta para não ceder à exaustão completa – além de ser presidente da Black Caucus local.

No geral, o terceiro ano explora com mais força os obstáculos que cada um dos protagonistas enfrente, seja num nível macro ou microcósmico: as questões raciais tão belamente sondadas nos capítulos predecessores deixam de ter protagonismo, enquanto os sarcásticos elementos ganham palanque ainda maior. De fato, Simien perde um pouco de sua identidade narrativa, apesar de construir novas joias televisivas bastante aprazíveis e chocantes: a produção inclusive se arrisca em ambiências antes não exploradas, alcançando um nível de metalinguagem divertida, mesmo que pedante em certos pontos (a própria Netflix faz brincadeiras sagazes consigo própria); mas os excessos estéticos de modo algum falam mais alto, servindo apenas como escapes cômicos ou base consecutiva para os personagens.

Os dez capítulos movem-se na mais pura fluidez, talvez pelo fato de serem arquitetados sobre pouco menos de trinta minutos. Não há muito melodrama a tomar conta dos holofotes, o que abre espaço para uma dinâmica sucessão de causas e consequências que envolve as personas – sem esquecer da inúmeras e bem-vindas adições ao elenco. Brooke (Courtney Sauls) é promovida a personagem regular e se afasta de sua construção extremamente metódica e workaholic, transformando-se em uma crível mulher passível de acertar e errar assim como todos os outros. Lionel continua a explorar sua sexualidade ao se envolver com novos amigos, incluindo o diabolicamente sedutor D’Unte (Griffin Matthews) e um paixão inesperada com Michael (Wade F. Wilson).

Apesar das emaranhas subnarrativas tangenciarem a saturação cênica, o incrível time criativo enfileira as relações de ação-reação com a máxima de cautela, abrindo espaço para um núcleo interessante que começa a se desenrolar a partir do sétimo episódio e envolve a controversa Muffy (Caitlin Carver) e o complexado Prof. Moses Brown (Blair Underwood), que aparece na universidade como um prospecto otimista para os alunos negros apenas para se revelar um hipócrita descarado que se aproveita de qualquer um que atravessa seu caminho.

Como se não bastasse, o seriado também encontra sucesso quanto às suas sutilezas diegéticas, criando uma proposital ambiguidade entre o que nos é explicado e o que vemos. Desde o princípio, o personagem de Esposito anuncia que Sam e Lionel precisam “matar o narrador”, mudando a organicidade do núcleo principal e, como preconizado, abandonado a presença de uma voz onisciente para guiar os protagonistas. Além disso, as investidas imagéticas criam uma envolvente e anacrônica ambientação que se vale de um filtro pastel e onírico que se afasta e se aproxima (num paradoxo delicioso) do panfletarismo documentários de tantas produções do gênero.

O novo ano de Dear White People pode até ser inferior aos predecessores, mas ainda faz um bom uso de ingredientes infalíveis para sua própria identidade, adicionando e retirando um tempero ou outro como forma de se renovar e não se render a uma obra medíocre. Mesmo com os pequenos erros, uma coisa é certa: no final das contas, o público vai querer repetir o prato (mais até do que deveria).

Dear White People – 3ª Temporada (Idem, Estados Unidos – 2019)

Criado por: Justin Simien
Direção: Justin Simien, Kevin Bray, Charlie McDowell, Kimberly Peirce, Salli Richardson-Whitfield, Steven Tsuchida, Janicza Bravo
Roteiro: Justin Simien, Chuck Hayward, Njeri Brown, Leann Bowen, Jack Moore, Yvette Lee Bowser, Nastaran Dibai 
Elenco: Logan Browning, Brandon P. Bell, DeRon Horton, Antoinette Robertson, John Patrick Amedori, Ashley Blaine Featherson, Giancarlo Esposito, Marque Richardson, Nia Jervier, Jemar Michael, Rudy Martinez, Caitlin Carver, Nia Jervier, Courtney Sauls, Griffin Matthews
Emissora: Netflix
Episódios: 10
Gênero: Drama, Comédia
Duração: 30 min.

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Publicado por Thiago Nolla

Thiago Nolla faz um pouco de tudo: é ator, escritor, dançarino e faz audiovisual por ter uma paixão indescritível pela arte. É um inveterado fã de contos de fadas e histórias de suspense e tem como maiores inspirações a estética expressionista de Fritz Lang e a narrativa dinâmica de Aaron Sorkin. Um de seus maiores sonhos é interpretar o Gênio da Lâmpada de Aladdin no musical da Broadway.

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