Na vida de um artista já reconhecido, é preciso uma característica essencial: presença. Sergio Leone foi um dos maiores nomes do cinema mundial com sua seleta, mas preciosa filmografia. Tornando-se um cineasta prolífico nos anos 1960 até 1971, o grande mestre do western desapareceu da indústria para dirigir elogiadíssimos comerciais ou produzir outros longas.
Perdendo todo o fervor cinematográfico dos anos 1970 que revelou vasta gama de diretores talentosos no mundo inteiro, incluindo seu antigo parceiro Clint Eastwood, Leone precisava retornar. Tomando uma decisão muito estranha no começo da década, recusou dirigir O Poderoso Chefão, o maior filme sobre máfia já feito, para focar em outro projeto de temática similar que custou uma década inteira de produção: Era uma Vez na América.
Marcando um retorno muito aguardado, Leone colecionou polêmicas com seu último filme finalizado antes de sua prematura morte em 1989. Batalhando com o estúdio em uma enorme insistência em lançar uma versão de quase quatro horas de exibição, o diretor viu o filme fracassar nos cinemas americanos sob um corte quase incompreensível de duas horas abandonando características narrativas de suma importância.
Magoado pela recepção péssima de crítica e bilheteria de seu último filme, o diretor só foi retomar prestígio quando a Warner decidiu lançar o corte de 229 minutos como Leone queria. Em um esforço conjunto da crítica e do público, rapidamente aconteceu um raro revisionismo que alçou Era uma Vez na América como um dos maiores clássicos do Cinema Americano. E de fato é.
Vidas não Vividas
Porém, isso não significa que a grandiosa jornada criminosa de David ‘Noodles’ (Robert DeNiro) que atravessa eras seja perfeita. Foram necessários seis roteiristas, incluindo o próprio Sergio Leone, para conseguirem adaptar o livro de memórias de Harry Grey, um ex-mafioso, The Hoods. Ambição é o que não falta para Leone e seu time de roteiristas. Não bastasse o tamanho homérico da história que pretendem contar, Leone foi enfático em trazer uma narrativa não-linear, contando com o uso constante de flashbacks para trazer retratos da infância, juventude e velhice de Noodles ao longo do filme.
A técnica se prova eficaz para sustentar bem o interesse ao longo das exorbitantes horas de projeção, além de fornecer facetas diversas para conferir camadas ao protagonista e seu melhor amigo Max (James Woods), também membro da gangue de Noodles. Entretanto, é curioso que mesmo com essa ênfase, tão pouco é delineado para os outros comparsas e amigos de Noodles, Patsy (James Hayden) e Cockeye (William Forsythe) servindo para pouco ou nada na construção do caráter complicado dos personagens.
Leone é um roteirista que gosta de desafiar as convenções tradicionais da narrativa. Como visto em Era uma Vez no Oeste, novamente temos o recurso das camadas, revelando muito posteriormente as motivações e a história regressa dos personagens principais. Do mesmo modo que tratou o western e conseguiu cumprir seu objetivo, o autor tenta revolucionar o gênero dos filmes de gângster apresentando diversas subversões de viradas clássicas, abandonando o grau noir e estripando qualquer essência de romantismo no crime.
Apesar do começo muito confuso com uma transição intensa entre 1933 para 1968, logo os roteiristas encontram o ponto ideal para apresentar a infância de Noodles estabelecendo seu interesse romântico e crescimento na vida do crime. Rapidamente o espectador já nota a alma que vai sustentar todo Era uma Vez na América: a relação conflituosa de Noodles com Deborah (Elizabeth McGovern). A partir desse trecho cheio de química e magnetismo de tensão sexual, os roteiristas trabalham com extrema proeza a fase cheia de desejos da adolescência enquanto a molecagem da infância ainda permanece – isso é representado pela relação dos garotos com Peggy, uma prostituta menor de idade.
Com engenhosidade e bons acontecimentos já envolvendo a impossibilidade do florescer do amor e da resistência da amizade enquanto enfrentam a vida perigosa do crime, Leone finaliza esse enorme primeiro ato com um tom trágico, mostrando as enormes consequências da realidade do submundo nova-iorquino. Aliás, Era uma Vez na América é um elogio sobre a tragédia, pois os roteiristas sempre finalizam os atos em tom pessimista – apesar de nada superar o horror do final de segundo.
Ainda intercalando com passagens em 1968, finalmente conseguimos entender parte dos elementos misteriosos que Leone apresenta sem contexto previamente, conferindo maior peso dramático e suspense para uma inestimável virada que só é revelada nos últimos trinta minutos de exibição. Enquanto arquiteta propósito para uma velhice abandonada e tristíssima de Noodles, enfim conhecemos sua juventude e sobre quem ele realmente virou.
Apesar de ser consideravelmente menos interessante pela falta de boa apresentação e estabelecimento sobre a situação atual da gangue mafiosa de Noodles, os roteiristas usam um dos capítulos mais complicados da História Americana para criar um poderoso cenário que motiva os negócios criminosos para a trupe: a Lei Seca.
Mesmo que as novas aventuras sejam burocráticas e traiam a constante proposta de subversão de Leone, o peso conferido ao primeiro ato é sentido quando diversos recursos são reutilizados aqui. Também há a perversa apresentação da personagem Carol em um contexto bizarro dentro de um assalto que o grupo realiza – posteriormente isso é resgatado com bastante eficácia mostrando uma face estranha do estupro.
Por ser o trecho de desenvolvimento, vemos mais problemáticas envolvendo a amizade de Max e Noodles, enquanto o protagonista se reaproxima de Deborah. Novamente, esse é o núcleo que mais nos encanta no qual Leone consegue sim desenvolver elementos complexos que desafiam nossa percepção sobre Noodles, um protagonista progressivamente detestável. Deborah, apesar de pouco aparecer, é outra personagem feminina muito bem escrita, apresentando um enorme determinismo em seguir seus sonhos para não cair nas malandragens de Noodles. Ou seja, em uma rara ocasião do gênero, a mulher não se casa com o bandido para sofrer pelo resto da vida.
Embora também haja bastante sofrimento para Deborah. Seja pelos eventos posteriores ao jantar romântico mágico com Noodles ou pela completa ruptura de uma paixão verdadeira. O desalento do término do segundo ato é arrebatador forçando os roteiristas a preservarem más ideias como uma trama sindical no trecho final da obra, além de passagens cada vez mais fragmentadas que não dão espaço para Max se tornar mais complexo ou explicarem com cuidado sobre o motivo dele pirar toda vez que é chamado de “louco”.
O terceiro ato é muito mais fraco, mas apresenta novos dilemas para Noodles tentar preservar sua amizade com Max. Sem guardar muitas surpresas ou dar maior sentido para o atropelado começo do filme, seguimos enfim para a parte final em 1968, na qual os roteiristas apostam tudo em reviravoltas espetaculares e nada previsíveis. Com a vida desperdiçada e sem amigos, Noodles tenta redimir os pecados de seu passado e acaba descobrindo uma terrível verdade pela qual foi punido injustamente por trinta anos.
Mesmo que não haja um contexto mais aprofundado, as surpresas reservadas são mesmo fantásticas e despertam discussões até hoje graças ao final misterioso da obra. Mais interessante ainda, é a escolha de Leone encerrar o filme retornando para os anos 1930, retomando uma cena que mostra Noodles se drogando em uma casa de ópio sugerindo que tudo o que assistimos até agora era apenas um enorme delírio – Leone apontou essa provocação posteriormente em entrevistas. Extremamente audacioso, de fato.
O Crepúsculo de um Mestre
Outro bom grande motivo para não se afastar do ofício de diretor por muito tempo é a prática. Leone não dirigia uma grande produção há anos e isso certamente o deixou com alguma ferrugem em seu grande retorno. Não há como retirar o enorme mérito que é dirigir um épico tão complexo e cansativo como Era uma Vez na América. Sergio Leone merece todos os louros pela conquista, mas também não é possível fechar os olhos para algumas escolhas dúbias que comete ao longo da obra.
O início repleto de intercalações confusas nas linhas temporais embola a proposta do flashback que depois é tão bem costurada na imagem com transições em raccords visuais elegantes e inteligentes – o mais bonito deles certamente envolve a apresentação de Deborah, com Noodles a espionando na falha da parede do banheiro do bar do Moe. Já nessa transição fantástica, Leone demonstra o enorme apreço que vai manter com a direção de arte, transformando as décadas conforme o filme avança.
Nessas cenas do flashback da infância, o diretor se mostra bastante inspirado para dinamizar as interações do grupo de pequenos ladrões enquanto confere leveza em brincadeiras inusitadas ou em cenas geniais como a que envolve um bolinho para Peggy. Os elementos têm bastante peso para gerar certo sentimento de nostalgia quando são reintroduzidos de modo inteligente em momentos posteriores da obra. O mais forte deles, sem dúvidas, se trata da forte encenação que separa Noodles de Deborah toda vez que estão juntos: o chamado de Max, o chamado do crime, do sofrimento e da perda.
É uma indicação bonita da impossibilidade desse amor desde a infância e concretizado com maestria nos últimos trinta minutos do filme com outra reviravolta impactante. Além do uso muito adequado do silêncio em cenas preciosas e violentas como um dos estupros mais perturbadores já registrados em um filme, Leone usa de modo inteligente o constante chamado de um telefone logo nos minutos iniciais da obra para ajudar a tornar mais compreensível a jogada ousada da montagem com as linhas temporais.
Com a câmera, apesar de sempre apresentar belas composições e alguns movimentos de câmera, Leone parece muito mais comportado na decupagem do que em seus trabalhos anteriores na qual tornava todo o visual um verdadeiro atestado de sua assinatura. Em Era uma Vez na América, Leone não realiza muitas daquelas cenas que evoluíam para situações distintas das que a originaram. É simplesmente um trabalho quadrado em sua maioria, como se o próprio diretor quisesse homenagear a linguagem de um cinema mais clássico, próximo a Era de Ouro de Hollywood em 1950.
É uma escolha estética do diretor, mas que simplesmente limita as possibilidades que Leone poderia fazer ao deixar a obra um pouco mais estilizada em vez de ser tão centrada nesse realismo superficial. Há também um enorme problema que colabora para aumentar a confusão do espectador ou dar uma estranha sensação de pressa em diversos momentos, mas principalmente no terceiro ato. Leone trabalha com pouquíssimos establishing shots, transitando entre cenas sem estabelecer direito o lugar ou o salto temporal de uma elipse como no caso da transição entre o segundo para o terceiro ato.
Enquanto pode até falhar nesses momentos, Leone mostra todo seu talento em sequências excelentes como a do berçário revelando toda a perversidade dos mafiosos ou da até mesmo da onírica conclusão da obra mantendo na dúvida um acontecimento terrível para depois jogar a completa indiferença da cidade sobre as histórias que ocorreram naquelas ruas. O mesmo se pode dizer para todo o arco envolvendo o encontro amoroso de Noodles com Deborah, contrastando uma magia romântica de contos de fadas para então quebrar toda essa ilusão com o desejo repugnante de um homem covarde.
Ou, em uma assinatura mais evidente, quando escolhe enquadrar Noodles sempre a distancia na narrativa de 1968 tornando todo aquele homem uma diminuta figura se comparada ao cenário. Um retrato perfeito de solidão deprimente do estilo de vida que o protagonista escolheu levar. O mesmo ocorre com o uso da trilha musical estupenda de Ennio Morricone que cria outro tema belíssimo para Deborah, capaz de emocionar a todos somente com a enorme melancolia lúgubre que o arranjo evoca.
Enquanto acerta no encaixe da trilha original, o diretor às vezes se apressa em inserir um fade out na música causando estranhamento. Há também algumas passagens nas quais ele simplesmente força o melodrama exageradamente como na infame inserção de Yesterday dos Beatles, ou na repetição de um flashback para explicar uma decisão de Noodles já muito bem desenvolvida no filme todo. São pequenas arestas que sujam um pouco o brilho de um trabalho tão esforçado.
Sonhos do ópio
Assim como um belo ornamento de prata envelhecida, Era uma Vez na América não é a obra-prima definitiva de Leone revelando alguns entraves severos provavelmente gerado por um hiato nada saudável entre uma obra e outra. Mas de fato se trata de uma tristíssima história sobre indivíduos complicados, mas extremamente humanos que conseguem nos fisgar o interesse para acompanhar até seus últimos suspiros.
É uma obra importantíssima e obrigatória para todo cinéfilo tirar uma tarde inteira para admirar as proezas incríveis que Leone conseguiu com seu épico de quase quatro horas de duração. Assim como a vida, é cheia de altos e baixos, entregando um retrato denso sobre a tensa relação de Nova Iorque com a máfia. Uma grande despedida de um cineasta histórico. Pena que seja um adeus cheio de cansaços. Os nossos, dos personagens e o dele.
Era uma Vez na América (Once Upon a Time in America, EUA, Itália – 1984)
Direção: Sergio Leone
Roteiro: Sergio Leone, Leonardo Benvenuti, Piero De Bernardi, Enrico Medioli, Franco Arcalli, Franco Ferrini, Ernesto Gastaldi, Harry Grey
Elenco: Robert DeNiro, James Wood, Elizabeth McGovern, Joe Pesci, Burt Young, Tuesday Weld, William Forsythe, Darlanne Fluegel, Jennifer Connely
Gênero: Gangster, Drama
Duração: 229 minutos.