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Crítica | Evangelion 3.0+1.01: A Esperança – O novo testamento

Depois de quase uma década, finalmente o Rebuild of Evangelion terminou. De 2007 para cá, muita coisa mudou tanto no mundo quanto na vida do criador de Neon Genesis Evangelion, Hideaki Anno.

Em uma tentativa idealista de conseguir financiar ideias originais no campo do anime enquanto aproveitava a vasta fanbase da franquia para lucrar e corrigir “erros” da versão original, Anno chegou a cair novamente em depressão, se reergueu, dirigiu Shin Godzilla e constituiu família. 

Para compreender Evangelion 3.0+1.01, infelizmente é preciso entender também da história de Anno e do impacto sociocultural que Evangelion teve no Japão quanto na indústria de animes. Ironicamente, também é importante ver a série original para compreender melhor a história do filme que segue tão confusa quanto só Evangelion consegue ser.

São tantos “metacomentários” tecidos por Anno para concluir essa história que, se pegarmos o filme como uma obra individual, se torna uma experiência totalmente diferente e bastante frustrante.

É um filme realmente feito para os fãs trazendo novamente a mensagem que o autor insiste tanto em martelar para sua audiência: não vivam de escapismo, aproveitem a vida e encarem a realidade porque, apesar de toda a indiferença e crueldade do mundo, ainda há beleza lá fora. 

Agora, depois de tanto tempo, tantas polêmicas e conflitos com seus fãs, Anno finalmente conseguiu colocar um ponto final em Evangelion? A resposta é sim, mas ainda se trata de uma história repleta de problemas originados do desastroso Evangelion 3.33.

Correndo atrás do prejuízo

A história de A Esperança começa exatamente no ponto onde termina o terceiro filme. Asuka, Rei e Shinji vagam no mundo devastado pelo Quase Terceiro Impacto tentando chegar até a Vila 3, um dos últimos refúgios da humanidade no mundo inteiro. 

Enquanto caminham até esse lugar seguro, Misato, Ritsuki e Mari levam a Wunder até Paris na tentativa de salvar a cidade dos efeitos avassaladores do apocalipse. Todo esse esforço é para reativar a NERV francesa e recuperar novas partes para montar novamente o EVA 02. 

Todos correm contra o tempo, pois Gendo segue seu trabalho ininterrupto para conseguir desencadear o Quarto Impacto e finalmente ativar o projeto da Instrumentalidade Humana. 

Passados quase nove anos desde a estreia de Evangelion 3.33, Anno teve a oportunidade de ler e escutar a opinião dos espectadores do filme. Com uma recepção nada amistosa em geral, o defeito mais marcante da obra foi percebido por todos: a completa falta de desenvolvimento dos personagens. Felizmente, deixando um pouco a arrogância e birra com os fãs de lado, o cineasta e roteirista parece ter reconhecido que as críticas estavam com a razão e se dedicou a corrigir esse erro tão pungente no capítulo final. 

Durante todo o primeiro ato da obra que praticamente compreende metade do filme, Anno se dedica a dar mais atenção a alguns dos personagens. Infelizmente, não se trata de Shinji ou de Asuka, mas sim de Rei-Q, a nova clone de Rei apresentada no filme anterior. 

Em uma jornada intimista e de escala reduzida, Anno usa toda a sua experiência adquirida no Studio Ghibli para fazer uma narrativa lenta e bonita tão característica dessa produtora. Através das interações entre Rei e os habitantes da Vila 3, a personagem passa a aprender a viver e ver a beleza na existência. Se antes ela não tinha quaisquer vontades e só seguia ordens, agora ela encontra maior propósito em sua existência, se tornando um verdadeiro ser, uma verdadeira personagem. 

O trabalho é simples e meio clichê, mas bastante eficaz. Anno também aproveita esse arco bonito para dar continuidade a eventos presentes no filme anterior, como as tentativas de Shinji em despertar novamente o gosto pela leitura nessa nova Rei. 

Começando a compreender mais sobre quem ela é e entendendo emoções humanas primordiais, Rei desenvolve um afeto por Shinji e passa a tentar interagir com ele buscando resgatá-lo do lugar sombrio onde se encontra. Anno basicamente faz o mesmo paralelo de busca por amor, afeto e altruísmo entre os personagens apenas trocando Shinji por Rei. 

Enquanto o arco envolvendo Rei é satisfatório, seu desfecho é agridoce. Anno traça novamente outro paralelo envolvendo a relação de Shinji com Kaworu no filme anterior, repetindo alguns acontecimentos traumáticos, mas oferecendo resoluções diferentes para evidenciar um crescimento psicológico no protagonista. Infelizmente, por mais coerente que seja dentro dessa história, é inegável que o autor está se repetindo – e isso não acontece somente nesta vez. 

Já Shinji e Asuka ficam estagnados por boa parte do tempo. Traumatizado e profundamente deprimido, Shinji decide vegetar e sofrer por nunca conseguir salvar o mundo, mas só piorá-lo. O personagem não reage a bondade demonstrada pelos seus antigos amigos como Toji, Kensuke e Hikari. Anno desperdiça chances de criar elementos interessantes aqui com base nessa repetição exaustiva do “Shinji em crise” que está presente desde o primeiro filme dos Rebuilds

O novo “despertar” de Shinji funciona, mas ainda assim, o personagem não avança além do esperado, do básico. Nota-se uma certa estafa criativa em Anno para contar essa história que já, querendo ou não, havia sido contada anteriormente (e melhor). Com Asuka, também há o mesmíssimo problema, da repetição de características já marteladas antes. 

Ela é hostil com Shinji e sofre através desses conflitos. A personagem gosta do rapaz, mas ao mesmo tempo o despreza por não optar seguir em frente e batalhar contra os demônios tão presentes na rotina de todos. Então as interações entre os dois ficam na base da repetição por um bom tempo. 

Há apenas uma cena na qual eles conversam e as coisas avançam um pouco. Felizmente Anno traz algumas boas surpresas ao final do filme, revelando algo importantíssimo sobre essa Asuka dos rebuilds que a torna um pouco mais complexa, além de ressignificar o final icônico de End of Evangelion

Há bons elementos envolvendo também Misato e Gendo. Embora somente Gendo receba mais atenção para resolver seu arco de luto, escapismo e idealismo, Misato recebe diálogos importantes e também sofre uma transformação importante se impondo para defender Shinji quando mais necessário – algo que a perturba por conta das suas falhas e ausência com outro garoto na narrativa. 

 Infelizmente, elementos importantes envolvendo Mari que foram apresentados em Evangelion 3.33 são completamente esquecidos. Há até um diálogo misterioso com Fuyutsuki, mas que não esclarece nada. A personagem existe para injetar mais ação e definir um futuro para Shinji. 

Dentro do “metacomentário”, ela é a personificação da esposa de Anno no universo de Evangelion e de tudo o que ela representa e conseguiu realizar para mudar sua vida. Entretanto, narrativamente, a personagem é mesmo bastante rasa e desnecessária. 

Lá e de volta outra vez

Mas e a história? De fato, até agora só comentei sobre os personagens que, felizmente, possuem alguma coerência e contam com bons desfechos. Enquanto Anno segue uma abordagem segura e razoável para eles, a história novamente se apresenta bastante problemática e mais arbitrária do que nunca. 

Os problemas são diversos. Além da narrativa estacionar por uma hora para fazer Shinji retornar exatamente ao ponto que ele estava no final de Evangelion 2.22, nada de relevante acontece até o clímax. 

Há algumas explicações furadas sobre como a Vila 3 existe e dos dispositivos criados por Kaji, possuindo alguma semelhança com o aquário no segundo filme, mas nunca fica claro como tudo foi implementado para salvar a humanidade no meio do Quase Terceiro Impacto. O mesmo ocorre com o tapa-olho de Asuka. 

Um detalhe interessante é que Anno se preocupa em resgatar uma frase meio emblemática de Rei em Evangelion 2.22 também envolvendo o aquário. Isso justifica dentro da narrativa o que acontece com Rei-Q, além de manter maior unidade, coesão, na tetralogia. 

Quando enfim as coisas engatam para a tão aguardada batalha final, Anno apela e muito para diversas arbitrariedades que conseguem tornar esse clímax ainda mais confuso que Evangelion 3.33. Os diálogos envolvem um monte de baboseira de lore pouco explorado até então deixando qualquer um perdido. É tanta exposição e necessidade de deixar Gendo o mais intelectual e “sábio” possível que o personagem se torna uma verdadeira caricatura. Fora os teletransportes surreais que acontecem com Shinji.

Não importa o que aconteça, sempre tudo está de acordo com o planejado por Gendo. Há repetições de situações exatamente iguais ao que foi visto no filme anterior, como a Wunder sofrendo mais um ataque direto pela Seele. Naves começam a surgir do nada para emboscar os heróis e deixar a luta mais “emocionante”, parecendo que não há a menor esperança para deter Gendo. 

E, honestamente, dentro da estrutura do filme, realmente parece não ter como deter o vilão. Tanto que a solução proposta é simplesmente bizarra e também ilógica. Anno começa a criar soluções e problemas como se fosse um mágico tirando coelhos da cartola com uma frequência insana. 

A repetição também da ameaça dos novos impactos que Gendo quer causar também perde a força, afinal nessa tetralogia há tantos Impactos que eles perdem, ironicamente, o seu impacto narrativo. Em meio a uma confusão imensa de acontecimentos e muita verborragia sem sentido, Anno consegue reunir Shinji com Gendo e então o filme melhora. 

Mas para o espectador chegar até a última meia hora que realmente faz valer a pena conferir o filme, terá que aguentar intermináveis minutos de ação confusa, exagerada, repleta de elementos gráficos em CG horrorosos e datados destruindo ainda mais a fraca concepção visual do filme. Anno tenta replicar o mesmo efeito icônico do visual do final de Evangelion, mas falha espetacularmente ao criar algo simplesmente brega e de mau gosto. 

Importante salientar que, embora tenhamos cenas horrorosas de computação gráfica permeando o filme todo, tirando todo o peso e física dos EVAs durante as batalhas e o design cada vez mais genérico dos novos oponentes, o primeiro ato do longa possui animação tradicional de ponta, trazendo contrastes belos entre o deserto vermelho do final do mundo com o verdejante refúgio idílico da Vila 3.

Como citado, o ponto alto do filme é mesmo seu final. Anno resolve os personagens de um modo inesperado, sem apelar tanto para a ação como todos os outros filmes investiram. Destaque para Gendo que finalmente se torna um bom personagem e complementa bastante o desenvolvimento dele na série original. 

Através de bons diálogos, Anno encerra anos de teorias e os “e se?” que permearam o fandom por tantos anos. Fica claro que ele deseja acabar toda essa loucura que virou o envolvimento dos fãs pela obra e da obsessão insana que a cerca desde sua criação. São finais que permitem que todos se livrem de Evangelion, se tratando literalmente de uma “nova gênese”. As teorias são confirmadas e a beleza de um final bem feito permanece. 

Destaque para a inventividade da direção em desconstruir todo o processo de animação, indo da rotoscopia cada vez mais rudimentar até os rascunhos dos storyboards para tudo explodir em cor e animação fluída quando uma personagem pula no mar. A metáfora visual justifica todo o romance também um tanto bizarro que acontece no filme. Ela simplesmente traz um novo propósito de vida para um certo alguém após ele conseguir encarar a realidade, mas ainda pairando na sedução do escapismo. 

Adeus, Evangelion

É seguro dizer que com Evangelion 3.0+1.01 finalmente termina toda essa loucura que Neon Genesis Evangelion havia se tornado. É um final que, acredito eu, agrade a vasta maioria dessa vez e traga um pouco mais de esperança em tom otimista sobre o que o futuro ainda nos reserva. 

As mensagens e filosofia envolvendo a série e seus personagens continuam presentes e o filme tem seus ótimos momentos. Uma pena que para conseguir criar esse desfecho, Anno traga uma história medíocre e pouco inspirada, pois o que sustenta esse filme certamente são os personagens que já são consagrados de outras épocas. Ou seja, por si só, o longa não funciona e se você desgosta dos personagens, o cenário piora. 

O fato diante disso tudo, depois de quatro filmes inteiros, permanece o mesmo, escancarado: Neon Genesis Evangelion já havia terminado e muitíssimo bem em 1997. 

Evangelion 3.0+1.01: A Esperança (Shin Evangelion Gekijôban Japão, 2021)

Direção: Hideaki Anno, Kazuya Tsurumaki, Mahiro Maeda
Roteiro: Hideaki Anno
Elenco: Megumi Ogata, Kotono Mitsuishi, Megumi Hayashibara, Yūko Miyamura, Fumihiko Tachiki, Yuriko Yamaguchi, Motomu Kiyokawa, Kōichi Yamadera, Hiro Yūki, Miki Nagasawa, Takehito Koyasu, Akira Ishida, Tomokazu Seki, Tetsuya Iwanaga, Junko Iwao, Maaya Sakamoto
Gênero: Ação, Drama, Ficção Científica
Duração: 154 min.

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Publicado por Matheus Fragata

Editor-geral do Bastidores, formado em Cinema seguindo o sonho de me tornar Diretor de Fotografia. Sou apaixonado por filmes desde que nasci, além de ser fã inveterado do cinema silencioso e do grande mestre Hitchcock. Acredito no cinema contemporâneo, tenho fé em remakes e reboots, aposto em David Fincher e me divirto com as bobagens hollywoodianas.

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