Há leves spoilers no texto
Toda a ideia por trás do Rebuild of Evangelion é bastante bonita. Hideaki Anno queria provar um ponto, revolucionar a indústria de animes mais uma vez e usar o sucesso comercial dos filmes para conseguir financiar novos projetos cada vez mais ousados para uma faixa etária mais adulta.
O discurso era esse e ele realmente cumpriu o prometido com a verba gigantesca arrecadada, afinal quem duvidaria do tremendo sucesso que um retorno de Neon Genesis Evangelion faria depois de dez anos sem novos conteúdos?
Mas a verdade é que Anno também queria enterrar alguns dos fantasmas do passado – que, inclusive, ficaram tão presentes que o diretor caiu em depressão novamente logo após a produção de Evangelion: 3.33 Você (não) pode refazer, atrasando substancialmente a conclusão do rebuild (que estreou somente agora em 2021, mais de dez anos depois da estreia de Evangelion: 1.11 Você (não) está sozinho.
Enquanto o primeiro filme se tratava de um remake praticamente frame a frame dos primeiros seis episódios do anime em uma qualidade de animação muito superior e o segundo já apresentava conceitos realmente inéditos à franquia, Evangelion: 3.33 é um filme que beira ao suicídio criativo levando muita gente a se perguntar o que raios se passava na cabeça de Anno.
Você (não) vai entender
Ao contrário dos outros dois longas, Evangelion: 3.33 começa depois de um salto temporal de 14 anos inteiros. Ikari Shinji está em um sarcófago junto com seu EVA 01 na órbita da Terra. Em uma missão de resgate, Asuka e Mari são incumbidas de trazer Shinji e seu EVA novamente à Terra em segurança para dar prosseguimento aos planos de Misato.
Depois de uma enorme porradaria contra um Anjo, Asuka consegue retornar à Terra com Shinji onde ele finalmente desperta de seu coma de quatorze anos. Sem receber quaisquer respostas às suas perguntas, Shinji ainda está obstinado a encontrar Rei e acaba aceitando fugir com uma pessoa que parece com ela para o QG da NERV.
Lá, ele descobre a terrível verdade sobre o que aconteceu depois de sua tentativa de salvar Rei durante o clímax do filme anterior. Confiando na palavra de seu pai, Gendo, Shinji aceita pilotar a nova unidade EVA-13 com o misterioso Kaworu Nagisa na esperança de consertar o que acabou fazendo.
Não há como tirar a culpa das costas de Hideaki Anno com o desastre narrativo que se trata esse filme, afinal ele basicamente descarta 95% do trabalho desenvolvido nos outros dois filmes. É como se o Rebuild sofresse um retcon violento, pouco justificado, afinal o Terceiro Impacto foi prevenido no final do filme anterior, e totalmente confuso para apresentar conceitos que não atingem nem perto de seu potencial.
O roteiro, se é que se pode chamá-lo assim, é ínfimo. O filme realmente só começa depois de quase 25 minutos de ação ininterrupta apresentando agora as novas versões dos personagens que pouco se assemelham com aqueles que você já havia visto nos outros filmes.
Tirando Asuka, a única com uma motivação decente para ter ódio profundo de Shinji, é inexplicável como Ritsuko e Misato se comportam com certo desprezo ao protagonista, o culpando pelo o que aconteceu com o mundo – sim, no fim das contas, o Terceiro Impacto aconteceu, mas não totalmente, então é chamado de Quase Terceiro Impacto. É engraçado que Misato, nos minutos finais de Evangelion: 2.22 literalmente grita encorajando Shinji a finalmente fazer o que ele acha que deve ser feito: salvar Rei Ayanami.
Jogando no lixo as boas ideias do filme anterior, Anno agora adota o militarismo pós-apocalíptico transformando essas personagens carismáticas em verdadeiras geleiras que insistem em não responder absolutamente nada das inúmeras perguntas que Shinji faz (e que o espectador certamente também as faz mentalmente enquanto assiste ao filme).
Em apenas um simples diálogo, muitas das atitudes que se revelam problemáticas para Shinji posteriormente, seriam evitadas. São decisões arbitrárias do roteiro e totalmente injustificadas do ponto de vista narrativo. Os personagens tomam decisões estúpidas sendo que antes elaboravam planos geniais para derrotar os anjos.
Por que Misato não explica ao protagonista o que aconteceu durante os 14 anos? Por que ela não explica o motivo da cisão da NERV que agora é a vilã da humanidade enquanto a resistência da WILLE é a última esperança dos que restaram? Por que tanta hostilidade com Shinji e não usá-lo para ajudar na luta contra a NERV sendo que todo mundo sabe que no próximo filme ele voltará a pilotar o EVA 01 para salvar a humanidade? São conflitos realmente muito rasos e não espere que eles sejam muito bem resolvidos no filme subsequente porque não são.
Sempre há o argumento que se “passaram muitos anos e todos eles foram perdendo a humanidade”, mas, francamente, é uma das defesas mais fracas para uma preguiça monumental de Anno em trabalhar direito essa nova proposta que ele força ao espectador. Para encher linguiça, há diversos diálogos vazios com baboseiras militares sempre presentes na franquia, mas que simplesmente se tornam pastiche aqui.
Chega a ser cômico que Anno queira evitar tanto a exposição para definir as regras desse novo mundo dizimado, mas ainda adote os piores vícios possíveis dos animes: o hábito dos personagens frequentemente explicarem a ação ou descreverem o que se passa na tela.
O desenvolvimento destes personagens que, quem acompanhou o anime e conhece a história sabe o quão ricos são, é totalmente inexistente. Shinji está confuso em praticamente 60% do filme e depois se culpa exaustivamente pelo Quase Terceiro Impacto sendo que a culpa não é dele, pelo menos não de modo intencional.
Rei Ayanami, aquela de Evangelion 1.11 e Evangelion 2.22, é inexistente. A personagem reaparece no filme através de outra clone criada por Gendo. Suas interações com Shinji não despertam qualquer mudança e as situações dos encontros dos dois se tornam cada vez mais repetitivas.
Embora isso enriqueça Shinji, que não quer aceitar a realidade do fracasso de seu resgate e de ter dizimado meio mundo no processo, também prejudica e muito o ritmo de um filme curto, mas extremamente arrastado – os problemas vão muito além da narrativa.
Outras ideias são simplesmente jogadas e também nunca mais retomadas dentro do filme. A questão do tapa-olho de Asuka é uma problemática, assim como a “maldição do EVA” que faz com que todos os pilotos nunca mais cresçam. As novas formas de vida que surgiram na Terra depois do Quase Terceiro Impacto também são vistas como ameaça, mas também nunca há uma explicação certa do que aconteceu direito. É tudo realmente sem capricho.
Essa falta de zelo simplesmente beira o cômico e o mau gosto no clímax quando Gendo literalmente se torna um vilão de quadrinhos da Era de Ouro se limitando a dizer que “tudo seguiu exatamente como o planejado” quando na verdade seu plano foi frustrado completamente. Coisas que ele não tem controle algum, como as atitudes de Kaworu ou de um Shinji surtado, correm “exatamente como o planejado”. É ridículo.
Mas tem algo que se salva na história do filme? Sim, acredite, tem. Uma das reclamações clássicas dos fãs do anime é a falta de interação entre Kaworu e Shinji que se limita a praticamente apenas um episódio. Aqui, Anno finalmente aborda isso e trabalha de modo belo a crescente amizade entre os dois.
Os diálogos são bons o suficiente para crer no amor de Kaworu por Shinji que, finalmente, passa a aceitar um pouco de agrado, afinal ele é chutado por todos os que estimava e conhecia. Ainda há as nuances sutis homossexuais, o que deixa Kaworu um personagem ainda mais interessante do que o esperado.
Kaworu é a personificação da realidade que Shinji precisa enfrentar para crescer, já que seu personagem sempre toma atitudes guiadas pelo idealismo e pelo escapismo. Todo o arco de Kaworu é para ensinar essa lição de encarar a realidade e encontrar a esperança para mudar o futuro, embora a conclusão disso seja bem rudimentar como veremos mais abaixo.
Inegável que existe tanto beleza quanto tensão sexual entre Shinji e Kaworu durante as diversas sessões que os dois fazem ao tocar piano nas ruínas do QG da NERV – a gente perdoa a absoluta bizarrice que é ter um piano de cauda impecável da Yamaha, afinado e lustrado, no meio de um cenário desses, afinal a metáfora visual é boa, apesar de óbvia: existe beleza, esperança e amor até mesmo em um lugar tão destruído e desolado.
Enquanto realmente cria com louvor a amizade entre os dois e torna Kaworu um personagem inesquecível, Anno joga boa parte disso no lixo durante o clímax do filme. Em determinada situação, Kaworu implora para que Shinji não faça algo pois ele percebeu que aquilo seria extremamente perigoso.
Shinji, obviamente, não escuta o amigo e faz novamente uma “shinjisse” – uma montanha colossal de lixo. As consequências disso são drásticas e definem boa parte do drama de Shinji no próximo filme, mas é muito cruel com o roteiro dessa obra aqui, além de jogar o protagonista novamente no mesmo ciclo narrativo de sempre.
Shinji, que aprende a confiar em Kaworu e percebe que o menino não tem intenções ruins com ele, simplesmente não escuta o amigo e não cresce. Ele literalmente regride narrativamente do que já havia sido desenvolvido em Evangelion 2.22. É surreal, é porco e é de uma arrogância gigantesca demonstrada por Anno.
Importante mencionar que Mari também recebe algum tratamento adicional aqui e até mesmo fica sugerido um passado diretamente conectado aos pais de Shinji, mas tudo se limita a uma promessa que não será cumprida no filme seguinte.
50 tons de vermelho
O visual de Evangelion 3.33 definitivamente é algo divisivo. Anno tenta ser novamente revolucionário como conseguiu ao definir o visual icônico de toda a saga e principalmente dos Impactos em End of Evangelion, mas não é o que acontece aqui.
Há sim cenários belíssimos, principalmente os que mostram a desolação do QG destruído da NERV, abandonando todo o sentimento de segurança e resistência que ele detinha quando intacto. Há diversas homenagens com os enquadramentos clássicos que vem desde os mangás. As já citadas cenas com Shinji e Kaworu tocando piano são verdadeiramente brilhantes em todos os aspectos.
A trilha funciona e emociona, a montagem se torna bastante fluida e a direção pega detalhes e pontos de vista inesperados para mostrar essa conexão espiritual que ocorre entre os dois. O ápice disso também vem com a escolha de apresentar alguns desenhos em rotoscopia bastante simples em uma bela homenagem aos sempre polêmicos dois episódios finais da série.
Enquanto esses detalhes funcionam, da NERV destruída e dos encontros musicais dos personagens, o mesmo não pode ser dito para o visual adotado para representar o resto desse novo mundo destruído.
No horizonte, há cenários em 3D com uma miríade de prédios destruídos com tudo pintado em vermelho vivo. Como já estabelecido desde o primeiro filme, o mar também é vermelho então há uma mesmice visual cansativa. A nave da WELLE, Wunder, é vermelha e os seus interiores não trazem qualquer detalhe original. É tudo baseado no clichê visual mais neutro possível de enredos militares.
O filme também sofre com suas intermináveis sequências de ação. A que abre o longa, envolvendo o resgate de Shinji, muito bem animada e coreografada, contrasta logo após com uma das piores envolvendo a franquia: da decolagem da Wunder enquanto ela é atacada por inimigos iguais a ventoinhas gigantes de CPUs. Aliás, o excesso de computação gráfica nas cenas de ação prejudicam e muito a dinâmica e física da movimentação dos robôs gigantes se estapeando.
Todo esse tempo precioso para uma cena de ação genérica é desperdiçado e poderia facilmente resolver os núcleos problemáticos da narrativa. Infelizmente, o clímax também carece de algo mais original, embora seja nitidamente a segunda melhor sequência de ação do filme, já que há menor uso de CG durante os embates entre os EVAs.
Infelizmente, Anno, que enrola o filme inteiro para desenvolver diversos temas, decide acelerar todo o progresso da história enquanto a ação rola solta em tela. Literalmente do nada, o filme se torna uma montanha russa repleta de diálogos ligeiros e conceitos que não haviam sido apresentados até então, deixando até mesmo Einstein confuso.
Você (não) deve refazer
Há uma comparação famosa que ronda as conversas otaku mundo afora. Os rebuilds são comparados à trilogia prequel de Star Wars onde Anno comete os mesmos erros que George Lucas cometeu.
Assombrado por um sucesso gigantesco, tenta recapturar exatamente tudo o que há de bom e original de uma obra já concluída e elogiada pela vasta maioria de quem já consumiu. Mas simplesmente algo não dá certo. Não funciona e, no fim, a perdura a sensação de que não vale a pena o esforço.
Quando tentou alçar voos maiores, trazendo de fato um cenário mais original, Anno deu diversos tiros no pé. Não critico a coragem de levar a saga a novos rumos e situações ainda mais desesperadoras, mas condeno totalmente a falta de zelo em elaborar decentemente essa narrativa.
Evangelion: 3.33, ironicamente e involuntariamente, traça um paralelo entre Shinji e Anno (o diretor sempre admitiu que Shinji é um alter ego seu). Esse paralelo já está no título: Você (não) pode refazer.
Ele conta a história de que Shinji não consegue consertar o que foi feito, mas também mostra que, às vezes, é melhor o criador não refazer uma história que já foi muito bem contada anteriormente. Não é porque você pode, que você deve fazer.
Evangelion 3.33: Você (não) Pode Refazer (ヱヴァンゲリヲン新劇場版:Q, Evangerion Shin Gekijōban: Kyū – Japão, 2012)
Direção: Hideaki Anno, Masayuki, Kazuya Tsurumaki, Mahiro Maeda
Roteiro: Hideaki Anno
Elenco: Megumi Ogata, Kotono Mitsuishi, Megumi Hayashibara, Yūko Miyamura, Fumihiko Tachiki, Yuriko Yamaguchi, Motomu Kiyokawa, Kōichi Yamadera, Hiro Yūki, Miki Nagasawa, Takehito Koyasu, Akira Ishida, Tomokazu Seki, Tetsuya Iwanaga, Junko Iwao, Maaya Sakamoto
Gênero: Ação, Drama, Ficção Científica
Duração: 96 min.