Com Spoilers
Neon Genesis Evangelion, a seminal série de animes teve seu fim em 1995. Mas o final ambíguo e introspectivo deixou muitas pessoas coçando a cabeça, com a impressão de que o trabalho estava incompleto e que Anno tinha abandonado sua obra.
É nesse contexto que 2 anos depois estreou o primeiro longa-metragem da série, O Fim do Evangelho. Dito isso, é necessário ter um conhecimento prévio considerável da franquia para assistir a esse filme e ter a melhor experiência possível, já que trata-se de um filme que faz ponte entre os episódios.
A alma do autor
Para começar, é importante falar um pouco sobre o criador desse anime, Hideaki Anno. Acredito que a chave para compreender as obras esteja em grande parte no entendimento da personalidade do próprio autor que a realizou. Buscando sua obra anterior (se houver), seus interesses, sua história de vida, seu estilo autoral e assim por diante. Isso é particularmente verdade quando aplicado ao Anno.
Hideaki Anno utiliza o seu trabalho como uma válvula de escape. O considera como a maneira que tem de se manter útil perante a sociedade e ainda mais importante, uma espécie de terapia que ele aplica em si mesmo, extravasando as coisas que mais o incomodam, o que explica muito bem o porquê de Evangelion ser da maneira que é.
Na superfície, Evangelion é uma série que lida com os gêneros de Tokusatsu e Mecha, em que adolescentes são “agraciados” com a incumbência de salvar o mundo de forças misteriosas além de sua compreensão.
Evangelion faz um comentário acerca do gênero enquanto adiciona camadas ainda mais profundas. Enquanto trabalhava em sua produção, Anno passava por uma fase difícil da sua vida, lutando contra a depressão, nesse meio tempo seu interesse por psicologia cresceu. Muito do seu conhecimento recém adquirido acerca do assunto se incorporou em seus personagens, culminando nos últimos episódios.
Nos episódios 25 e 26 de Evangelion, os protagonistas passam por uma espécie de terapia mental em que Anno disseca cada um deles psicologicamente. Os conflitos deles tem basicamente a mesma raiz, buscam ser aceitos, reconhecidos devidamente como seres humanos, com anseios de ser úteis a alguém, querem uma pessoa que passe a gostar verdadeiramente deles.
A solução mágica encontrada para isso é a instrumentalização humana, que conectaria todas as almas e ninguém precisaria mais ficar sozinho. Entretanto tudo isso ocorreria em um mundo de faz de conta.
Ao final do último episódio, Shinji rejeita esse mundo onírico, proclamando as suas icônicas falas: “Eu me odeio, mas talvez possa aprender a me amar. Talvez não tenha problema ficar aqui. Eu sou apenas eu. Eu sou eu. Quero ser eu. E quero ficar aqui! E tudo bem ficar aqui!”, sendo parabenizado pelos outros personagens logo em seguida.
A cena é tecnicamente o Anno escancarando sua mensagem, sobre aceitar a si mesmo e encarar a vida como ela é. Mas, infelizmente, a maneira em que se deu a execução desses momentos finais não foi bem aceita.
O problema se somou ainda a uma restrição no orçamento que forçou os animadores a usarem artes rudimentares diretamente dos storyboards. Pessoalmente, eu acredito que essa foi uma solução satisfatória, que deixa a série ainda mais única em sua abordagem da animação, até aqui permanecendo irretocável. Mas infelizmente não foi assim que muitos fãs viram.
Reorganizando as peças
Insatisfeito com a recepção do anime, Anno agora nos mostra um pouco mais do que ocorre na história. O filme começa logo após o fim do episódio 24 da série original, onde o protagonista, Shinji Ikari sofre a maior crise de sua vida após matar seu amigo Kaworu, que se revela como um anjo, uma das criaturas que tentam causar o terceiro impacto, uma nova extinção em massa que daria fim em toda a humanidade.
O início é interessante, pois mostra Shinji pedindo ajuda a outra “criança do destino”, Asuka, que está em coma, numa situação crítica, mas ainda assim, Shinji pede socorro a ela desesperadamente e podemos ver o quanto ele desceu. O que o garoto realmente faz, mais uma vez, é um clamor desesperado por conexão.
Após isso é revelado que o inimigo dessa vez não é um monstro gigantesco e místico como eram os anjos, mas sim a própria humanidade, que passa a ser o “último anjo”. O que resta para o autor contar aqui é o apocalipse anunciado desde os primeiros episódios, que finalmente faria o título Neon Genesis (Novo Genesis) Evangelion (Evangelho / Boa nova) ganhar total sentido, afinal “Todo final é quase igual ao início”, como é dito em um diálogo do filme. Chega a ser poético da parte do Anno fazer com que o fim venha por parte dos humanos.
Os combates são os mais épicos e brutais que a série já entregou até aqui, a animação é praticamente impecável, apresentando o nível de brutalidade já característico da franquia ainda mais acentuado, adicionando-se a isso a novidade que temos no filme, que são os conflitos humanos.
Destaco nesse aspecto principalmente a batalha de Asuka contra os Evas da Seele. As novas criaturas por sua vez apresentam um visual bizarro e icônico, possuindo asas de anjo. Novamente, Anno utiliza referências judaico-cristãs para as composições visuais de Evangelion.
O design de som ajuda enormemente na imersão, os socos e as explosões soam tão bem como as formas em que eles são animados. É feito um trabalho impressionante na dublagem japonesa, é possível sentir o desespero em cada grito. A trilha sonora é mais uma vez fantástica, aqui presentes estão músicas clássicas como algumas compostas por Myra Herz e Johan Sebastian Bach e outras excelentes compostas por Shirō Sagisu para o longa.
Na parte técnica o filme é, absolutamente, um primor. Evangelion sempre foi um destaque no mundo dos animes por seu cuidado especial em torno da composição visual e enquadramentos escolhidos com capricho. O nível de criatividade empregado na arte é absurdo, verdadeiras imagens de encher os olhos se fazem presentes, cito como exemplo a transcendência da Rei Ayanami, tornando-se Lilith e executando o Terceiro Impacto, desencadeando a instrumentalização humana.
Muito é revelado acerca do lore da série, por exemplo, o líquido LCL em que os pilotos são submersos quando entram no Eva nada mais é que o líquido que deu a origem a vida, substância trazida por Lilith em tempos primordiais.
É interessante o fato de que Anno revela que a área em que os pilotos residem quando pilotam o Eva, submergidos nesse líquido, com uma música de fundo atmosférica e relaxante nessas cenas simboliza um útero. A informação é curiosa, pois o espírito da mãe de Shinji habita na unidade 01 e nesse filme é revelado que o da mãe da Asuka também está na unidade 02.
O filme é dividido em duas partes, a primeira é repleta de ação, entregando um dos espetáculos mais brutais e sublimes da animação japonesa. A segunda ressoa bastante os últimos episódios e é onde Anno vai martelar novamente a sua mensagem sobre os malefícios do escapismo para fugir dos problemas do mundo real, aqui elevada à décima potência. Mais uma vez, Anno faz com que Shinji confronte a si mesmo dentro da singularidade criada pela instrumentalidade humana.
O segmento já começa com um teor metalinguístico, mostrando equipamentos característicos do processo de filmagem como câmeras e iluminadores e vemos um pequeno Shinji em um parquinho, construindo uma pirâmide na areia, a imagem coberta de granulado de filme. A pirâmide lembra a base da Nerv, irritado-se, a criança a destrói, caindo de joelhos, chorando, juntando novamente a areia, tentando reconstruir. Essa cena muito provavelmente representa o próprio Anno frustrado com a sua criação.
Novamente, as cenas oníricas que seguem mostram um Shinji passando por uma espécie de terapia mental, em que as coisas que o incomodam são esfregadas na cara dele, tudo para fazer com que ele lide melhor com esses elementos e os supere. Há uma cena bem emblemática em que o garoto, mais uma vez, pede ajuda a Asuka, implorando que ela o aceite e seja gentil com ele. A garota então esfrega as verdades na cara dele: “Nunca ao menos aprendeu a gostar de si mesmo”. Shinji precisa aprender a valorizar-se e não depender tanto dos outros, mas inicialmente a ação que ele toma vai de encontro a essa lição que ele deve compreender. Já que não pode se conectar com a Asuka, é melhor que a mate, ele então a estrangula.
O que se segue é mais um dos espetáculos visuais criativos dos artistas que trabalham em Evangelion. Desenhos infantis perturbadores, seguidos de rotoscopia são mostrados em sucessão. A música Komm, Susser tod, belíssima canção composta por Shiro Sagisu cantada por Arianne com sua letra sobre solidão e suicídio começa a tocar de fundo.
A metalinguagem
Os corpos então voltam a ser LCL, o líquido primordial e as almas então começam a se fundir à consciência coletiva, “tudo volta ao nada”. E então, ocorre o momento mais inusitado da carreira do Anno até então, o filme passa a ter imagens em live-action, isto é, imagens do mundo real, ao som de Bach.
São mostradas as paisagens de Tóquio, entre elas há um balanço muito similar a da cena do Shinji criança que descrevi nos parágrafos anteriores. Ouvimos a voz de Shinji em voice over perguntando “o que é um sonho?” e a cena corta para uma sala de cinema cheia. Mais uma vez um comentário sobre escapismo, cinema é um dos principais dispositivos modernos que podem ser usados para este fim e de fato é utilizado no momento, pois trata-se de uma animação feita para ser exibida no cinema.
Anno prossegue mostrando as ameaças de morte que recebeu na internet e as pichações que fizeram no prédio da Gainax, transformando esses elementos que o deprimem em arte, afinal, até aqui foi o que ele mais fez em Neon Genesis Evangelion.
A série possui um cunho muito pessoal para o seu criador e tal é escancarado aqui. Shinji novamente percebe que sem os outros ele não pode existir e essa busca constante das pessoas de se aceitar e entenderem uns aos outros é o que dá sentido ao mundo, a partir deles é possível tomar consciência de si, se conhecer, detectar falhas e se aprimorar. Não há razão para um mundo sem conflitos e barreiras a serem superadas existir. A criança do destino então decide voltar ao mundo real.
Shinji se encontra com Asuka, nesse mundo vazio e devastado e em uma imitação tosca do seu sonho tenta estrangulá-la. A garota então coloca a mão em seu rosto, mesmo odiando-o, ela ainda demonstra ternura com esse gesto. Shinji então desiste de seu ímpeto homicida e começa a chorar. Asuka profere as palavras “que repugnante” e o filme encerra-se com mais um toque poético. O novo Genesis (Neon Genesis) é finalmente realizado, com Shinji ne Asuka representando os novos Adão e Eva.
Conclusão
O Fim do Evangelho é o mais próximo que Anno chegou de alcançar plena excelência, com visuais excepcionais, melhor exemplo de animação fluida e de qualidade dentro das animações japonesas, apresentando algumas das melhores cenas de batalha de toda a série. Composições visuais soberbas e uma edição que une tudo em um texto visual excepcional são percebidas e ainda por cima o filme carrega uma mensagem muito relevante e que ressoa até hoje com a mesma potência de outrora, senão ainda mais forte.
Recomendo não apenas para os fãs de Evangelion, mas de animação em geral, pois esta é um dos casos raros que transcendem a sua forma e nos mostram o que a animação pode vir a ser. Em suma, é uma obra de arte no sentido mais extremo da palavra, um reflexo da alma de seu autor, algo que é difícil de expressar no audiovisual. Hideaki Anno nos presenteia com parte de seu espírito aqui, não obstante que por essas razões figura entre um dos meus filmes favoritos.
Neon Genesis Evangelion: The End of Evangelion (Shin seiki Evangelion Gekijô-ban, Japão – 1997)
Direção: Hideaki Anno, Kazuya Tsurumaki
Roteiro: Hideaki Anno
Elenco: Megumi Ogata, Megumi Hayashibara, Yûko Miyamura, Kotono Mitsuishi, Yuriko Yamaguchi
Gênero: Animação, Ação, Fantasia, Drama, Ficção Científica
Duração: 197 min