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Crítica | Ferrari – Uma Corrida contra a Morte e o custo do Legado

A essa altura uma carreira reconhecida por contar histórias de profissionais obcecados por seu trabalho, como único meio de fuga, salvo-conduto e valor existencial. De gângsteres à policiais e grandes figuras históricas, o homem-protagonista de Michael Mann permanece praticamente intacto, assim como suas formas pouco ortodoxas de explorar bases clássicas de filmes de gênero, dando pouca importância à convenções ou fórmulas de agrado mainstream.

Talvez tenha sido isso que o impediu de conquistar qualquer sucesso reconhecível no final dos anos 2000 pós Miami-Vice, até seus únicos títulos lançados na última década Hacker na década passada e agora (esperemos que por enquanto) nos 2020 com Ferrari. Que após um longo hiato criativo, seja por prováveis problemas de financiamento e sabe-se Deus quantos contratempos de produção e distribuição que vieram a amaldiçoar um dos projetos pessoais mais antigos do diretor que era trazer sua visão sobre Enzo Ferrari. O resultado final definitivamente não é o filme que eu esperava, mas também… o único possível que poderíamos ter conseguido!

Desviando do Convencional

Tomando a forma que quase todo filme tardio de um diretor de idade já avançada geralmente toma. Só que ao invés de pisar fundo no melancólico, coisa que já havia em abundância em filmes passados de Mann; Ferrari se forma como um filme fúnebre. Explorando a estréia relação de seu protagonista título com a morte e como ela entra em contato direto com seu trabalho na ameaça da falência; os fantasmas que rondam sua vida na forma de um filho falecido e uma esposa amarga; e tudo o que impregnará em seu legado daqui para frente, vitória ou derrota, um herdeiro reconhecido ou uma mancha em seu ser pecaminoso.

O tom inicial é sombrio e um tanto amargo, o que pode ter menos a ver com o estado de espírito atual de Mann e mais com as origens do roteiro. Escrito por um cara das antigas, Troy Kennedy Martin (Um Golpe à Italiana e Os Guerreiros Pilantras), de um projeto envisionado junto a Mann mesmo antes dos anos 2000, e antes da morte de Martin em 2009. Há uma carga verborrágica quase econômica em sua estruturação; de palavreado quase econômica em sua estruturação; deixando espaço livre para contemplação enquanto mantém a franqueza do enredo, guardando toda a entrega para momentos-chave de confronto catártico.

Carregando um traço quase que antiquado, como se fosse o tipo de material que acabaria sendo dirigido por diretores-autores rendidos ao ostracismo como Samuel Fuller, Richard Fleischer ou Robert Aldrich durante seus dias definitivos no final dos anos 70 e meados dos anos 80. E bem… Mann há tempos já se tornou um deles, então é apenas o passo natural para sua carreira; só conseguindo fazer esse filme depois de décadas de esforços intensos.

Agora afastados de todo o prestígio que uma vez tiveram, esses tipos de filmes eram dirigidos por caras que simplesmente não se importavam mais. Isso ou era expressado em experimentais radicais; em trabalhos contratuais sem inspiração nenhuma, ou em algo sereno, revelando um estado de melancolia. Os materiais explorados poderiam variar entre meros ecos de seus sucessos passados ou dramas tradicionais. O Ferrari de Mann pode soar como um melodrama doméstico, já que o foco predominante do texto pende fortemente da batalha de egos entre Ferrari e sua esposa Laura, equilibrando a vida pessoal com seu trabalho entrando em confronto direto e contrastante.

Poderia ter se mantido a isso e o resultado teria sido o suco do convencional e sem inspiração, mas Mann é um diretor de mão cheia que ainda possuí a habilidade de apimentar a narrativa convencional com talento, trazendo uma vivacidade vista nas poucas, mas memoráveis, sequências de corrida; enquanto o resto do filme adota uma abordagem uniformemente elegante, e para todos os efeitos de falta de nomenclatura adequada: clássica.

À primeira vista, é formal e tradicionalista, mas nem por isso é um filme que se prende a tradições formulaicas de roteiro e evita o engessamento e o convencionalismo de uma cinebiografiapois constantemente subverte os lugares mais comuns da “cinebiografia” tradicional. Não só pela forma que escolhe montar o retrato desse homem em volta de um recorte especifico da sua vida – que por si só não é nada original visto outras biografias seguirem o mesmo método (Lincoln de Spielberg, Steve Jobs de Danny Boyle), mas na forma em como revela as partes mais íntimas da representação do “grande homem”.

O Enzo Ferrari de Mann não é um símbolo idealizado onde o papel ator central é trazer tracejos famosos da sua persona; é alguém vívido, vivendo, seus traços comportamentais e psicológicos que se refletem em sua personalidade, sendo observados de maneira próxima e cotidiana. Nela podemos sim ver o sujeito inspirador e carismaticamente natural que Mann tanto claramente admira, mas também pinta o ser humano e trágico entre os quartos, salas e escritórios de seu intimo

Onde a maior parte da ‘ação’ do filme se passa, além de abertamente pular a cerca no casamento fracassado, é frio e calculista em seu egoísmo quase estóico, enquanto tenta convencer o quão insensível é para aqueles que ele nunca conseguiu de fato enganar próximos a ele. A constante contradição é o que forma a alma do personagem: um pai amoroso e atencioso, e um homem frio profundamente indiferente que habitam o mesmo personagem.

Vivendo também em relações contrastantes: um filho falecido que lhe lembra dos seus erros e a mortalidade, e o jovem filho vivo que é a esperança para o seu futuro; a esposa que o lembra de todas as misérias que ele suportou e a amante que lhe traz esperança e conforto. Não existe um todo porque ele está constantemente em movimento, dividido, exigido; criando a máquina frio que opera o homem e o seu império.

“Nossa Paixão Mortal; Nossa Alegria Terrível”

Alguém já citou isso antes de mim, então já adianto que não posso tomar todo o crédito, mas é muito real que, em muitos aspectos, o filme de Mann segue uma linha bastante semelhante ao que Nolan fez em Oppenheimer este ano: ambos contando a história de homens presos ao fardo que seu trabalho, sua paixão, criam na vida de tantos e como este toma forma de um legado de ‘destruição’ que deixaram para trás. Onde seus diretores idolatram e se identificam com essas figuras, mas ao mesmo tempo não escondem seus podres.

É fácil apontar o quanto Mann se vê no estado similar ao de Ferrari, de um homem absolutamente implacável, competitivo, movido por uma paixão descontrolada e obsessão por seu ofício; mas também reconhecendo o que esse caminho exige de um homem à longo tempo. Novamente, é apenas o percurso natural para onde Mann eventualmente levaria sua assinatura, já que esse é praticamente o próximo capítulo do protagonista tradicional de Mann: personagensmovido por obsessões, confrontando a possibilidade de perder o controle de suas próprias vidas, tendo tempo e recursos esgotados.

O homem de Profissão: Ladrão é o mesmo visto em Ferrari, apenas em diferentes escalas de poder e controle. O que separa o Frank de James Caan da Ferrari do Enzo de Driver é, onde Frank via os laços familiares como elementos essenciais do homem para criar status e uma vida para chamar de sua ao lado da profissão que lhe dá sustento; Enzo encara isso como nada além de encargos colaterais. Onde um procurou separar os dois lados até não poder mais e teve que largar tudo, o outro diante da colisão do pessoal com o profissional, inevitavelmente se fundem em um só e não dá mais para perceber a diferença.

E como já era de se esperar, e outro ponto bem semelhante ao que Nolan fez em Oppenheimer, é como Mann implica o cinema e a arte junto ao ofício de sua figura explorada: um espelho reflexivo de seu próprio ofício e arte. E no filme de Mann anda em maior linha conectiva, pois o trabalho e paixão de Enzo por corridas não é diferente do cinema em si: uma busca incessante pela forma de espetáculo e o retorno financeiro desta, um fator de importância claro, mas para seu protagonista, apenas meios para manter o sonho a se concretizar. E tal como o esporte é como a arte, ambos mecanismos da criação humana tão admiráveis em sua mitificação cultural, que tornam toleráveis o lado mais cruel dos seres humanos por trás destes.

A criação de imagens de respeito e influência servem como uma fachada que ficam no caminho dos casos extraconjugais e pequenos acidentes mortais que isentam responsabilidade. Onde a ganância, herança pessoal e legado se misturam em uma continuidade de negócios. Onde até mesmo ter um herdeiro é uma necessidade capital. Perdeu um? Tem um sobressalente! O fato de sequer haver essa noção presente nas entrelinhas do filme torna tudo ainda mais repugnante até mesmo para os personagens que o vivenciam. É por isso que Enzo simplesmente se desliga da mecânica complexa do mundo: pessoas, sentimentos, empatia; focando apenas no objetivo: números, estatísticas, confiando apenas na máquina.

Para continuar produzindo essas obras de arte da era tecnológica em metal esculpido: os carros; onde cada segundo conta para se preparar para a próxima corrida. Seu foco e lema é construí-los mais rápidos, mais fortes, mais modernos, sempre evoluindo, pois Ferrari, o homem/a máquina deve ser mantido em fluxo. O carro, o ferramental de produção, a marca são sagrados, os motoristas são meramente substituíveis!

É por isso que, pouco antes da grande corrida climática do Mille Miglia, você vê os pilotos escrevendo cartas para suas esposas e entes queridos, relembrando um ritual pré-batalha, como se estivessem prestes a partir para possivelmente morrer no campo de batalha em uma guerra. As suas vidas nada mais são do que parte da receita de capital para tornar esses sonhos realidade. Seus veículos são o trabalho dos sonhos, o coração inspirador de adrenalina estimulante e também seus caixões de metal.

O sucesso tem um preço elevado, um esforço que consome almas, cujo único retorno de rendimento é uma vida inteira de arrependimentos e feridas abertas; enquanto a morte é uma certeza sempre próxima e acessível. Essa é a mentalidade que conduz Enzo Ferrari, e no ritmo contínuo em que vai acumulando infortúnios atrás dos outros, surgem problemas, tragédias acontecem e o cara continua operando como um mecânico manejando as partes e peças de sua vida, porque, novamente, a máquina deve continuar bombeando!

Um Esteta Invicto

O que de início se faz dar a impressão de ser um filme focado em planos de acessórios, engrenagens, mãos, ferramentas, marchas, relógios, etc; os utensílios do trabalho contínuo e interminável da maquinação Ferrari, o homem e seu império; acabou sendo muito mais um filme de rostos e como ele enquadra esses rostos na tela, delineando-os na posição certa onde a luz e as sombras se contrastando neles revelam toda a carga emocional que eles despertam em suas pequenas minúcias, justapostos à música e suas visões de tempos mais felizes formulando a ópera trágica de sua existência muito presente. Visto principalmente na brilhante cena da ópera onde todo o elenco de personagens parecem ter um momento de melancolia compartilhada, com os fantasmas que ainda assombram suas mentes.

O diretor de fotografia, Erik Messerschmidt, ilumina as tomadas com uma textura barroca pincelada digna de um Caravaggio, escondida entre sua palpabilidade fílmica. Possuindo a sensibilidade íntima que transmuta naturalmente para o táctil feroz presente nas sequências de corrida. Ajustando o uso de câmera portátil tradicional de Mann com a câmera acoplada por cima das cabines de motorista, trazendo um nível puro de imersão através do frenesi, visceral, desespero, selvageria. O nível adrenalina visual e sonoro de fazer você se sentir entre o arranque dos motores!

Junto ao trabalho do montador Pietro Scalia fazendo um trabalho igualmente formidável, adotando um ritmo clássico e meditativo, mas arrebentando o pedal nos movimentos cinéticos nas sequências da pista de corrida, mas brilhando especialmente ao intercalar o ranger dos motores da Ferrari intercalado com uma missa católico e na já mencionada cena de visões e dias mais felizes brilhando em rostos tristes / e pesarosos com a ópera ao fundo. Eisenstein ficaria orgulhoso!

O clímax na corrida Mille Miglia se cria um levante contínuo no terço final do filme entregando toda a esperada proeza técnica de Mann. Se tornando especialmente memorável quando ao que à primeira vista parece estar invocando um gosto antiquado de glória para a Ferrari em seu conflito empresarial prestes a obter uma vitória simbólica; só para brutal e secamente culminar na tragédia de Guidizzolo que é possível te fazer ter uma reação física de choque – ainda mais aos Brasileiros por envolver o bendito papel que acabou no colo de Gabriel Leone (pelo menos é um papel de inegável destaque). E a partir daí, o tom fúnebre deixado pela narrativa não vai embora tão cedo até que os créditos rolarem.

Talvez no geral o filme deixe um pouco a desejar, especialmente se você é um fanático por Mann como aquele que escreve estas palavras. O material talvez pareça sim ainda bem tradicional e seguro para suas habilidades mais anárquicas que parecem pouco presente. Mas ainda assim, não deixa de ser impressionante em como Mann ainda consegue contar toda sua narrativa bem compactada dentro de duas horas, e ainda fazê-la ser carregada de inflexões e reflexões sombrias que sua apresentação formal aparentam não ameaçar sequer ser uma possibilidade aqui, mas elas certamente não saem de você pós sessão.

Seja o rosto petrificado de Penélope Cruz carregado de mágoas que faz tremer a espinha e esmagar a alma te lembrando a atriz assombrosa  que ela consegue ser; outra performance de presença magnética digna de um grande astro vinda de Driver se provando cada vez mais; ou a incapacidade do seu Enzo ser incapaz de parar por qualquer que seja o obstáculo ou peso carregado: seus erros, maldições, até mesmo sua prole, tudo que ele ama ou acredita, ele vai carrega de mãos dadas rumo à sua morte, seu palácio funerário que se tornará o legado de seu nome.

Não é nada gratificante, porque a vida geralmente não é, mas se pode resultar em alto tão belo e assustadoramente instigante, então a escultura de metal, a arte, enfim teve seu impacto, pois apesar de seus custos, e a obsessão do homem, Mann ou Ferrari, aceitaram o peso desse fardo com inspiradora austeridade!

Ferrari (Ferrari, EUA, 2023)

Direção: Michael Mann
Roteiro: Troy Kennedy Martin (baseado no livro Enzo Ferrari: The Man, the Cars, the Races, the Machine)
Elenco: Adam Driver, Penélope Cruz, Shailene Woodley, Sarah Gadon, Gabriel Leone, Jack O’Connell, Patrick Dempsey
Gênero: Drama, Biografia, Esporte
Duração: 130 min

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Publicado por Raphael Klopper

Estudante de Jornalismo e amante de filmes desde o berço, que evoluiu ao longo dos anos para ser também um possível nerd amante de quadrinhos, games, livros, de todos os gêneros e tipos possíveis. E devido a isso, não tem um gosto particular, apenas busca apreciar todas as grandes qualidades que as obras que tanto admira.

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