Havia uma estranha sina para os realizadores hollywoodianos da fantástica década de 1950 para o Cinema: assim que os anos 1960 chegavam, os mesmos não conseguiam espaço na indústria. Enfim acontecia a sepultura completa da Era de Ouro do cinema americano. Entretanto, antes de Douglas Sirk ganhar sua aposentadoria, um dos melhores projetos da vida acabou caindo em seu colo: a nova adaptação do livro Imitação da Vida.
Como o livro trata de um problema muito pertinente aos Estados Unidos da época, tratando do enorme conflito na vida de pessoas comuns que sofriam diretamente as consequências da política desumana da segregação racial, o filme lançado em 1959 resultou em um grande furor em diversos estados, principalmente nos do sul do país.
Sirk já estava em guerra contra a hipocrisia da sociedade idealizada americana há um bom tempo, conquistando um lugar de muito prestígio com a crítica feita em Tudo o Que o Céu Permite, mas nada se equiparava ao enorme e difícil drama que estava por vir em Imitação da Vida, retratando uma realidade atual na época de modo bastante cru e humano.
Vidas Partidas
Eleanore Griffin e Allan Scott realizam um trabalha de adaptação que é, ao mesmo tempo, estupendo e repleto de falhas. A história é concentrada em duas linhas narrativas distintas e bem contrastadas, apesar das personagens viverem sob o mesmo teto. Acompanhamos a luta diária de duas mulheres e suas duas filhas. Lora Meredith (Lana Turner) é uma atriz fracassada que corre contra o tempo para conseguir o estrelato no teatro que tanto deseja. Ao visitar a praia em um dia ensolarado, Lora vê Susie, sua filha, fazer amizade com outra garotinha chamada Sarah Jane.
Porém, Lora logo entra em choque ao descobrir que Sarah Jane, uma menina branca, é filha de Annie (Juanita Moore), uma mulher negra. Mas como Lora não é racista, logo faz amizade com a simpática mulher e descobre sua situação de desemprego e da falta de moradia. Com compaixão pelas duas, ela convida Annie para morar no anexo de seu pequeno apartamento, mas logo se estabelece uma relação servil voluntária.
Ao mesmo tempo que as duas caminham com suas vidas em busca de sonhos condizentes com a realidade de cada uma, Lora conhece Steve (John Gavin), um fotógrafo simples, resultando em um inusitado relacionamento. Entretanto, a vida da mulher logo sofre uma reviravolta ao conquistar a oportunidade de estrelar um papel secundário em uma peça de um importante dramaturgo. Porém isso rapidamente vira um empecilho em seu novo relacionamento amoroso.
Apesar da vasta sinopse, acredite, apenas arranhei a superfície do primeiro ato de Imitação da Vida. O longa é realmente muito completo em suas críticas que atingem diversas camadas. Rapidamente é possível perceber que uma das maiores fraquezas do roteiro, é se concentrar em diversas situações delicadas para emplacar o pertinente comentário social enquanto diminui consideravelmente cenas importantes para desenvolver as quatro personagens principais: Lora, Annie, Susie e Sarah Jane.
Também é um fato concretíssimo que há nítido desequilíbrio na qualidade dos dois dramas representados aqui, já que o núcleo sobre o racismo com Annie e Sarah Jane ser extremamente mais interessante que o de Lora. Isso ocorre por conta da situação pouco comum de Annie ser negra e ter uma filha branca e como isso acaba afetando a relação entre elas, já que Sarah, gradualmente, se torna uma racista a ponto de odiar a condição bizarra de sua própria existência.
Enquanto esse cerne é discutido de modo mais supérfluo no primeiro ato, apenas demonstrando o desconforto da garota e da natureza simples de Annie, o foco fica na figura independente de Lora em busca da realização de seu sonho. Novamente, enquanto vemos certa fragilidade emocional e uma forte bússola moral para a personagem, muitas das situações apenas servem para emplacar críticas contra o machismo da indústria do show business e também dentro de relacionamentos amorosos – aqui causa bastante estranheza já que Steve acredita ser o mestre da vida de Lora em questão de segundos depois do primeiro beijo.
Tudo aqui cerceia a questão da independência feminina e da também da relação de troca que Lora tem com Annie já que se não fosse pela posição servil da amiga, Lora não teria tempo de ir atrás de emprego, pois teria que cuidar da filha. A problemática entre oportunidades limitadas pela realidade ressoa ao longo do filme todo a partir do segundo ato.
Tragédias Espelhadas
A transição do eficiente primeiro ato para o segundo é, no mínimo, estranha. Mesmo que Sirk elabore uma tradicional sequência em montagem para concretizar uma elipse, temos um salto temporal de dez anos na narrativa que muda significativamente muitas regras do jogo. Agora Lora é uma atriz muito famosa e ricaça enquanto Annie continua na mesma posição de servente de anos atrás. A imobilidade social da negra revela certa hipocrisia involuntária de Lora, afinal mesmo conseguindo oferecer uma vida melhor para sua amiga e filha, ainda a preserva em uma posição de trabalho meramente braçal.
Apesar disso nunca ser tratado de modo mais direto, Sirk realiza imagens de contrastantes para sugerir essa certa injustiça de Lora com a amiga que possibilitou que ela conquistasse o sucesso, pois a mulher basicamente descarta a maternidade integralmente para preservar sua relevância no mercado. É curioso que a protagonista então se comporta ligeiramente como antagonista, por conta de ser tão negligente com os problemas da própria filha e por não ajudar Annie em nada em relação a Sarah Jane que passa a se tornar mais agressiva.
O potencial dramático é tremendo novamente e Sirk entrega cenas fantásticas envolvendo a dor de Annie ao ver sua filha ter tanta dificuldade em aceitar ser negra e omitir suas origens, escondendo a mãe para conseguir melhores oportunidades na vida – ironicamente, isso nunca ocorre. O duelo entre Annie e Sarah Jane consomem totalmente o restante do filme enquanto Lora e Susie gradualmente perdem força, já que temos apenas diversas repetições do mesmo conflito silencioso da insatisfação da filha com a constante ausência da mãe.
Outros elementos envolvendo Lora também são descartados como seu romance longo com um dramaturgo ou sobre o desenvolvimento de sua carreira. É como se os próprios roteiristas perdessem interesse pela personagem. O núcleo só volta a ganhar força quando Susie e Steve se tornam um foco novamente com outro potencial dramático interessante, mas a situação é resolvida em questão de poucos minutos.
É aqui que percebemos que Sirk comete leves equívocos ao tentar condensar o longa inteiro em apenas duas horas quando a história tem estofo para um verdadeiro épico. No terço final, resta apenas um completo exagero melodramático para resolver a questão de Annie com Sarah Jane envolvendo uma bonita sequência que, inesperadamente, encerra o filme. O comentário é bem pertinente em mostrar que os brancos causaram a mazela completa à mulher e que mesmo na qualidade de uma vida luxuosa, não experimentou algum requinte de liberdade. Isso incide diretamente na crítica a segregação que simplesmente não permitia qualquer oportunidade de ascensão social, condenando o indivíduo a uma vida totalmente sem liberdades que também forçava a hipocrisia nos personagens não-racistas.
Sirk Político
A direção de Sirk continuou eficaz em seu último longa, apesar de não ser a melhor de sua vida. O cineasta preservou o que havia de melhor em sua técnica como a movimentação teatral dos atores pelo cenário, além de arrancar performances exemplares de boa parte do elenco a ponto de criar cenas fantásticas baseadas somente no contraste entre a pompa teatral de Lana Turner com a fluidez orgânica de Sandre Dee.
Em termos de imagem, como a produção é bastante restrita a uma incessante sequência de cenas internas, o diretor teve um enorme desafio para deixar as cenas vivas com tonalidades diferentes atingindo o brilhantismo em todas as que envolvem o confronto de mulheres contra homens – isso ocorre três vezes ao longo do filme. Em cada uma delas, há um relativo jogo decadente para exibir o quanto que as mulheres devem lutar por seus direitos e orgulho até chegar no fundo do poço com uma sessão de espancamento bastante chocante acompanhada de uma trilha musical consideravelmente estranha.
O que mais destaca certamente é o fato de Sirk ter conseguido criar essa Imitação da Vida em um longa de ficção provando que a arte sempre estará empenhada em mostrar verdades inconvenientes para plateias desprevenidas em sua própria zona de conforto. É apenas uma cruel ironia que justamente numa produção tão empenhada com os direitos a igualdade e fim da segregação tenha sofrido um desnível salarial absurdo, relegando a protagonista negra ao décimo sétimo lugar em salário em comparação com os lucros gigantescos que Lana Turner obteve com o sucesso do longa.
Imitação da Vida (Imitation of Life, EUA – 1959)
Direção: Douglas Sirk
Roteiro: Eleanore Griffin, Allan Scott, Fannie Hurst
Elenco: Lana Turner, John Gavin, Sandra Dee, Susan Kohner, Robert Alda, Juanita Moore
Gênero: Drama
Duração: 122 minutos