Pioneirismos sempre são arriscados. Em uma época de vasta abertura para o cinema estrangeiro em mercados exteriores, o Japão encontrou glória financeira com o sucesso estrondoso de Godzilla com espectadores de outros países, rendendo uma verdadeira torrente de lucro para a Toho. Com o desempenho artístico louvável vindo de Masaki Kobayashi em Harakiri, a Toho pensou que teria mais uma oportunidade de um sucesso comercial estrangeiro novamente com Kwaidan ou, como traduzido por aqui, As 4 Faces do Medo.
Ao mesmo tempo que História era feita e Kobayashi emplacaria outro primor estético, além de encarar a proposta inusitada de realizar uma antologia reunindo quatro filmes em um, a Toho veria uma recepção bastante abaixo do esperado em cópias enviadas para o estrangeiro, enquanto no Japão, o longa rendeu o esperado e ainda conquistou uma inusitada indicação ao Oscar como Melhor Filme Estrangeiro – algo bastante raro para uma obra de terror.
É justamente essa característica curiosa que torna Kwaidan em algo peculiar, já que raramente temos a presença de diretores tão autorais presentes no gênero do terror. Kobayashi retrata quatro contos do folclore tenebroso japonês em um grande primor cinematográfico, mas narrativamente, bastante decepcionantes. Em suas três horas de duração, a experiência de assistir ao longa gradativamente se torna um verdadeiro tédio.
Quatro Versões do Medo
Yôko Mizui praticamente transcreve o trabalho do livro-coletânea de Lafcadio Hearn que se dedicou em colecionar dezessete histórias. Nessas adaptações, Mizui escolhe apenas quatro: Cabelo Preto, A Mulher de Gelo, Hoichi – O Sem Orelhas e Xícara de Chá. As histórias, infelizmente, variam muito de duração e também de qualidade. As que mais atraem a atenção certamente são as duas primeiras.
Em Cabelo Preto, o espectador é imerso em uma narrativa curiosa, mas muito adequada ao de uma casa-assombrada. Isso é feito através de um conto moral sobre egoísmo e soberba envolvendo um samurai casado com uma mulher pobre em um palácio decrépito. Cansado dessa vida miserável, o samurai decide abandonar a humilde esposa e casar com outra, ricaça, em uma cidade distante dali. Mas como não encontra a felicidade no novo casamento repleto de mordomia, acaba decidindo voltar para a primeira esposa até ter uma terrível surpresa.
De modo geral, os contos são sempre sustentados pelo talento estético de Kobayashi. No primeiro segmento, o diretor foca em sua marca registrada da simetria visual tão bem empregada em Harakiri, mas já indica que explorará a forma do filme em níveis bastante distintos, principalmente na montagem. Kobayashi segue de modo muito elegante para traduzir visualmente as motivações do samurai em retornar para sua primeira esposa.
Ora intercala imagens dele imaginando como ela reagiria ao seu regresso, ora mostra a vida pacata da antipática nova mulher que destrata todos que estão ao seu redor. Logo, o contraste entre desejo e realidade oferecem um estofo estruturalmente bem pertinente a um conto curto de história de horror, além de reforçar a mensagem final do perigo da hipocrisia.
Aproveitando a encenação em todos os níveis, Kobayashi atinge um ápice criativo no clímax da primeira história que nunca mais é retomado posteriormente. Compensando a completa previsibilidade da narrativa, o diretor trabalha formidavelmente com a trilha sonora, design de produção e montagem ao tatear o surrealismo exibindo o protagonista se desesperar enquanto observa tudo ao seu redor se deteriorar ou comportar bizarramente. Nesse grande espetáculo, há também o espaço para a dilatação do suspense do trabalho em cima do cenário dilapidado – algo na linha da atmosfera americana.
Coração de Gelo
O segundo filmete é também o mais interessante apresentando uma história que cruza diversos anos, além de contar com grande capricho da direção de arte para criar horizontes pintados estilizados evidenciando a filmagem em estúdio. Aqui acompanhamos dois lenhadores tentando sobreviver a uma forte nevasca. Invadindo um abrigo para tentar sobreviver a tempestade durante a noite, ambos recebem a visita inusitada de um espírito guardião da floresta na figura de uma mulher sedutora.
A mulher procede e mata um deles, mas deixa o outro sobreviver por o achar belo, mas avisa que se contar sobre o que aconteceu na cabana naquela noite, retornará para mata-lo. A vida do homem continua e ele acaba encontrando o amor, até que passa a perceber que sua esposa se parece muito com o espírito maligno que o havia ameaçado anos antes.
A transformação visual é realmente o recurso mais impactante na direção de Kobayashi que agora explora, além da simetria e do posicionamento cirúrgico dos atores no enquadramento, a importância da paleta de cores para inferir uma mudança completa de atmosfera durante as cenas mais tensas da história.
Esse é o primeiro filme colorido da carreira de Kobayashi e assim que o segundo segmento é iniciado, percebemos como o diretor pretende abandonar os tons monocromáticos do começo do longa para apresentar essa transição. Em momentos pontuais, o cineasta e seu fotógrafo aplicam filtros azulados na iluminação para representar a chegada do espírito. As mudanças, por vezes, são feitas em tempo real, alterando a temperatura da luz amarelada e também da intensidade dos focos de iluminação, apenas concentrando os feixes na personagem sobrenatural.
Aliás, justamente por ser uma história de fantasma, há a primeira experimentação com efeitos especiais de translucidez conquistados de modo analógico através da manipulação direta do filme cinematográfico através de colagens e sobreposições. Geralmente o efeito é brega e antiquado, mas aqui tudo é realizado com perfeccionismo.
Sendo o ápice de todo Kwaidan, a história de A Mulher de Gelo é atraente por apresentar um conflito curioso que traz humanidade para certos demônios, além de trabalhar sentimentos humanos em espíritos antigos amargurados. É apenas uma infelicidade que o desfecho seja muito previsível e insatisfatório de modo geral.
Ópera para Mortos
O terceiro segmento é bastante divisivo entre o público de Kwaidan. É nítido que Kobayashi tenha se dedicado ao máximo para essa história em particular dada a quantidade exuberante de efeitos especiais e pinturas de fundo, além dos ornamentos cênicos custosos para narrar, primeiro momento, a história inteira de um clã que foi totalmente eliminado em uma batalha naval.
Concentrado no personagem cego Hoichi, vemos como o músico acaba se envolvendo com os fantasmas que protagonizam suas canções favoritas enquanto descansa no templo que trabalha. Sem saber que está se metendo em uma grande enrascada, Hoichi é aconselhado por anciões a tomar cuidado com suas companhias sobrenaturais.
De modo geral, Kobayashi comete erros consideráveis com o timing de todas as cenas que se alongam infinitamente, além de apresentar diversos personagens pouco carismáticos ou interessantes. Depois do espectador aguentar uma cantoria desafinada bastante chata enquanto a guerra entre os clãs é encenada de modo artisticamente bonito, mas exaustivo, é praticamente impossível ficar conectado com o destino do desafortunado músico cego.
Como o ritmo dessa história consegue ser ainda mais lento do que todas as outras, há um exagero enorme em barrigas narrativas desnecessárias que revelam a fragilidade da direção de Kobayashi neste caso. Como não há empatia, o suspense não funciona, apesar deste ser bem falho já que o cineasta sempre opta por mostrar os fantasmas em questão de poucos segundos. Aliás, somente em uma troca intrigante de ponto de vista em um plano-sequência criativo que vemos um truque novo na estética do diretor que já demonstrava certa exaustão.
O Medo Incompleto
Na última história, A Xícara de Chá, Kobayashi apresenta um pequeno exercício de narrativa dentro de uma narrativa, acompanhando o dia de um escritor de obras ficcionais com dificuldade de encontrar uma boa conclusão para a história de terror medíocre que havia escrito. De fato, a história bizarra da vingança de um fantasma que se feriu estranhamente é a mais ineficaz de todas, falhando em praticamente todos os níveis.
Novamente, com uma narrativa tão insossa, Kobayashi passa a apostar em cenas de ação repletas de cortes secos para mostrar transformações elegantes ao longo do duelo que termina abruptamente no ponto que o escritor deixou de escrever. A partir de um epílogo que visa concluir Kwaidan a critério da imaginação do próprio espectador. A imagem final, criada com tanto apreço pela técnica de manipulação de efeitos visuais complicados, é basicamente ineficaz, não atingindo nem mesmo a boa atmosfera amedrontadora dos primeiros segmentos e tampouco da qualidade narrativa.
Nesse cenário um pouco desanimador, depois de três horas investidas para conhecer um pouco mais do folclore japonês, há uma incômoda sensação de não-retribuição pelo tempo dedicado, já que o melhor do filme se encerra praticamente antes da metade da exibição. Kobayashi é sim um artista ímpar e todos segmentos são visualmente interessantes e inovadores, até mesmo flertando com temas ligados às quatro estações do ano, partindo do outono até o verão, mas muito pouco realmente é interessante incluindo no nível do fenômeno cinematográfico. No fim, a tradução desse clássico certamente foi generosa demais, pois há aqui somente duas faces do medo.
As 4 Faces do Medo (Kwaidan, Japão – 1964)
Direção: Masaki Kobayashi
Roteiro: Yôko Mizuki, Lafcadio Hearn
Elenco: Michiyo Aratama, Misako Watanabe, Rentarô Mikune, Tatsuya Nakadai, Keiko Kishi, Katsuo Nakamura
Gênero: Terror
Duração: 183 minutos