É muito possível que a sombra de Os Sete Samurais tenha ficado maior que o valor intrínseco ao filme. A história simplesmente o engrandeceu. E com razão, visto que o Cinema ocidental capturou tanto da receita de bolo que Akira Kurosawa criou em seu épico excêntrico apontado como a obra de sua vida.
O projeto já havia nascido para ser histórico tanto que a Toho quase faliu ao investir dois milhões de dólares na produção do filme, o tornando o verdadeiro primeiro blockbuster japonês da História. Devido ao sucesso de Viver, a Toho confiou no guião de Akira Kurosawa para entregar outro enorme sucesso tanto que respeitaram o desejo corajoso de produzir o filme em sua duração total absurda de três horas e meia – nos cinemas, uma versão de 150 minutos foi disponibilizada.F
Apesar de tão longo, curiosamente o filme segue o preceito de “fatos e conceitos” como o diretor já havia feito com Rashomon, O Idiota e Viver anteriormente. Ou seja, apesar de linear, a narrativa de Sete Samurais não é nada convencional, possuindo uma identidade verdadeiramente única, funcionando como a inauguração de um molde que permitiria o desenvolvimento de outros épicos de aventura inesquecíveis no futuro.
O Caminho do Samurai
Flertando com experimentações e dramas melodramáticos, Kurosawa finalmente encontraria sua vocação com os filmes chambara, mas conhecido como filmes samurais – o western japonês. Através de uma história relativamente simples – que custou muito tempo para que ele e seus roteiristas criassem, o diretor conseguiu contar uma das maiores histórias de todos os tempos evocando os valores morais da pureza do sacrifício, da união dos povos e principalmente pelo amor ao próximo.
Em pleno século XVI, tudo começa com um aldeão descobrindo que uma trupe de quarenta bandidos pretendem saquear novamente sua pobre aldeia quando a colheita tiver terminado. Temendo morrer de fome ou massacrados durante o assalto, o grupo de camponeses decide partir para a ofensiva e confrontar os ladrões opressores. Só há um grande problema: eles são fracos e não sabem lutar.
Para resolver a situação, a aldeia envia três habitantes para a cidade a fim de contratar quatro samurais para liquidarem seus inimigos. Somente oferecendo a alimentação como pagamento, os camponeses acabam conseguindo recrutar seis samurais e um mercenário maltrapilho. Sob a liderança do samurai estrategista Kambei Shimada (Takashi Shimura), os camponeses terão que se preparar para a maior batalha de suas vidas.
Esbanjando tempo de exibição, Kurosawa decide seguir com bastante tranquilidade ao longo da narrativa, enraizando fortemente os problemas sociais da aldeia e da personalidade histérica dos aldeões somente controlados pela força intelectual do sábio ancião, líder do lugar. Depois de apresentar o incidente incitante, o roteirista então pautará o filme na seguinte ordem: a Busca, a Preparação e o Conflito.
De todos os atos, creio que o segmento da busca seja o mais interessante por Kurosawa conseguir experimentar mais. Isso logo é feito com a apresentação épica de Kambei como um grande mestre samurai imbuído por grande senso de justiça ao resolver um sequestro de uma criança por um ladrão esfomeado e, aparentemente, insano. Kurosawa assume um tom de genialidade para traduzir a cena com perfeito silêncio do personagem que, ao descobrir a situação, rapidamente elabora um plano para enganar o ladrão, raspando todo seu cabelo para se disfarçar de monge caridoso.
Através de um embate invisível – Kurosawa nunca mostrará Kambei batalhando de modo explícito, o herói salva a criança ao retalhar o bandido. Nessa cena simplesmente inesquecível, o diretor usa um slow motion para frisar a queda do homem morto, enaltecendo o ato heroico testemunhado pelo espectador. Aliás, é apontado que o primeiro uso do slow motion para fins dramáticos seja de autoria de Kurosawa justamente neste filme. Basicamente, o cineasta inventa linguagem cinematográfica com Os Sete Samurais, outro ponto que enaltece a obra como um pilar da gramática do cinema.
Mesmo que nem todos os samurais tenham apresentações boas – apenas o calmo Kyz ganha uma entrada equiparável a de Kambei ao vencer um duelo com apenas a precisão de um golpe, Kurosawa tenta trazer algumas características visuais e comportamentais que os destaque. Isso certamente funciona para Kambei, Kyuzo, Katsuhiro e Kikuchiyo (Toshirô Mifune completamente caricato) que marcam presença pela vivacidade das interpretações, mas para o restante do grupo, nem tanto a ponto do diretor falhar em gerar emoção quando outros samurais ronins fora desse quarteto são mortos em batalha.
O Hóspede Samurai
Porém, embora tenhamos tantos personagens que a história dispõe, Kurosawa não tem interesse em desenvolvê-los individualmente no restante do filme. Isso, por si, não é um aspecto negativo de Os Sete Samurais apesar de eu, pessoalmente, desgostar desse método de abordagem. Mas qualquer espectador aproximado a filmografia do diretor, logo entenderá o que ele propõe aqui: um novo conceito.
O segundo ato inteiro, apesar de ter a desculpa narrativa de ser sobre a “preparação” ou “treinamento” do grupo de samurais e dos camponeses, é focado inteiramente na integração dos povos. Por histeria em primeiro momento – e depois justificado, os camponeses temem a presença dos samurais crendo que irão estuprar todas as mulheres da vila. É aqui que, basicamente, o único personagem passa a ser desenvolvido: Kikuchiyo.
Por si, ele merece um bom detalhamento no texto, pois é um personagem interessante. Kurosawa o torna a perfeita subversão do samurai: não é virtuoso, é egoísta, orgulhoso e fanfarrão, além de ser um guerreiro medíocre que age antes de pensar. Porém, seu desejo em fazer parte do grupo é curioso demais por conta dos roteiristas darem pistas suficientes para mostrar que o explosivo homem é também um camponês.
Isso se faz presente na compreensão rápida do modo que os camponeses pensam, do método de vida, do compartilhar dos alimentos exclusivos dos samurais, por resolver uma complexa reviravolta envolvendo a descoberta de um cadáver escondido na vila e, principalmente, por se debulhar em lágrimas quando salva um garotinho órfão de um incêndio. É um personagem intrigante que faz de tudo para provar seu valor ao longo do filme todo resultando em uma catarse poderosa no final que atinge em cheio o espectador.
A importância de Kikuchiyo é tremenda por conta dele ser o elemento aglutinador dos dois povos. Kurosawa quer trabalhar o grupo vs. indivíduo em Sete Samurais, tanto que a gramática visual do filme pode ser até mesmo repetitiva, pois sempre o diretor enquadrará os samurais unidos em planos conjuntos e os camponeses em planos mais próximos ou juntos evidenciando alguma discordância e desordem. Isso é mantido na maioria do filme até que os camponeses enfim se tornam um povo unido.
Essa identidade visual também faz parte das direções que Kurosawa oferece para os atores. Enquanto os samurais, com exceção de Mifune, são delicados, felizes e altivos, sempre andando de modo gracioso, os camponeses são encurvados, barulhentos, chorões, covardes, sujos e repletos de paixões imediatas. O contraste é absolutamente gritante.
Apesar de limitar o visual do longa com esses mesmos enquadramentos, Kurosawa se mantem fiel à proposta no filme todo, algo realmente digno de nota. A particularidade curiosa do segundo ato certamente é a inundação de humor que recebemos, algo bastante compreensível já que se tratava de um filme popular antes de alcançar o status cult. Através de muitas bobagens cômicas de Mifune que usa seu corpo inteiro para realizar as mais exageradas das expressões, se portando como um animal selvagem, os camponeses se entretém e esquecem do enorme perigo que ronda suas vidas. O resultado visual certamente é brega, com Kurosawa exibindo galhofas toscas e grandes sorrisos desdentados para a câmera, mas o significado para o filme é tremendo.
Guerreiros
Enfim inicia o tão aguardado terceiro ato. É bastante nítido que Kurosawa exagera com a duração do filme que certamente poderia ter algumas arestas aparadas ou núcleos narrativos inteiros como um envolvendo a paixão proibida irrelevante entre Shino, uma camponesa disfarçada de camponês (novamente, experimentação narrativa brilhante, mas subdesenvolvida), e Katsushiro, o aspirante a mestre samurai. Mesmo que negue a intenção do conceito do realizador, não há muito material que sustente esse núcleo amoroso descartável – ao menos há imagens espetaculares na floresta tão delicada que os dois apaixonados se encontram.
No ato anterior, fica evidente o cuidado de Kurosawa e dos roteiristas em fazerem de Kambei um verdadeiro estrategista militar. A armação do plano para prevenir a infiltração dos bandidos em três frentes da vila é simplesmente genial – coisa que carece em muitos dos filmes de ação descerebrados de hoje em dia. Mostrando a eficácia do preparo, o diretor não subestima sua obra e justifica a duração do miolo do filme focado no treinamento e prevenção.
A abordagem do diretor para essa enorme batalha também é excêntrica, pois tudo é tratado com um grau de realismo absoluto. Ou seja, a luta não dura apenas uma tarde, mas sim três dias inteiros intercalando momentos explosivos e outros de falsa paz. É aqui que o diretor precisa tocar os acordes certos para que a plateia se excite com a ação e chore com as mortes dos heróis – mesmo que esse detalhe não funcione com alguns personagens.
Os confrontos por si revelam o mestre cinematográfico que Kurosawa é ao criar cenas de ação realmente sem precedentes na época. Para conseguir o feito de capturar o grau de realismo que as batalhas com tiros, flechas, lanças, espadas e cavalos requisitavam, o diretor usou um esquema de múltiplas câmeras – novamente, algo audacioso e histórico para o cinema japonês. Podem filmar a ação simultaneamente, ele só precisaria resolver os cortes de modo orgânico na montagem que também é muito eficiente em deixar a coreografia acontecer de modo sublime.
Tudo é simplesmente compreensível e poético ao extremo. Também há de se levar em conta que a abordagem para filmar a ação é sempre feita a partir de planos abertos estáticos, mas repletos de movimento pela encenação. Apaixonado pela arte do movimento, o diretor torna muitas cenas de Os Sete Samurais em um festim de danças naturais. O movimento do homem é valorizado, mas certamente Kurosawa é mais apaixonado pelas características do vento, do fogo, das folhas e da água.
Tanto que todo o clímax ocorre debaixo de uma pesada chuva como elemento catártico, mas também incluída como diferencial para a ação sofrer drásticas alterações, afinal o próprio terreno é alterado pela degradação da chuva que torna a terra em lama. São imagens que movem e oferecem elementos novos para o espectador apreciar a todo instante.
Com base nesse enorme realismo que Kurosawa desejou para o filme, também é digno mencionar os esforços hercúleos em recriar fielmente o figurino e os cenários para ficarem de acordo com a época. Como tudo é real, a ilusão se torna ainda maior para envolver o olhar do espectador. Aliás, para imprimir esse feito, o diretor também raramente utiliza a trilha musical, deixando o filme em estado silencioso repleto de contemplação.
O Tempo do Samurai
Obra-prima ou não, é inegável que Os Sete Samurais tenha um peso imenso na História do Cinema servindo de apoio ou inspiração para diversas obras que se valorizam da estrutura simples, mas tão eficiente que Kurosawa ordenou no maior filme de sua carreira. Pecando, talvez, pela duração exagerada do corte final, com diversas barrigas irritantes, digo que não se trata de um filme fácil para qualquer espectador cair de cabeça, esperando ver a melhor história de suas vidas.
Simplesmente não irá encontrar isso aqui. Principalmente com a mentalidade de hoje que valoriza muito mais o conteúdo do que uma abordagem mais excêntrica de conceitos em união a uma proposta estética muito firme como a de Kurosawa aqui. Mesmo sendo um dos maiores filmes da História, isso não reflete que seja o melhor para diversas pessoas.
Mas, caso esteja pronto para enfrentar essa enorme jornada samurai, é um fato que Kurosawa recompensará com uma encenação inteligente, coreografias de ação espetaculares, um discurso temático fascinante, além de introduzir novas linguagens cinematográficas ao longo do tempo. Prazeroso na maior parte do tempo por conta principalmente de personagens interessantes, simplesmente é uma dádiva testemunhar um feito único na carreira desse diretor tão intrigante.
Por meio deste épico, Kurosawa revela que o tempo dos samurais acabou. Porém, ironicamente, ele só estava começando a florescer em sua filmografia.
Os Sete Samurais (Shichinin no samurai, Japão – 1954)
Direção: Akira Kurosawa
Roteiro: Akira Kurosawa, Shinobu Hashimoto, Hideo Oguni
Elenco: Toshirô Mifune, Takashi Shimura, Keiko Tsushima, Kamatari Fujiwara, Daisuke Katô, Isao Kimura, Minoru Chiaki, Seiji Miyaguchi, Yoshio Inaba
Gênero: Aventura, Samurai, Drama
Duração: 207 minutos