Uma das mais icônicas obras de Ingmar Bergman, que marca sua sexta colaboração com o diretor de fotografia Sven Nykvist, Persona é um objeto de interpretação até hoje por críticos e cinéfilos. Com uma narrativa que foca na psiquê de duas personagens, temos aqui uma obra extremamente intimista, cuja temática lida com as diversas máscaras que o Homem utiliza ao longo de sua vida, enterrando sua individualidade para que possa viver em sociedade, não se importando com os danos psicológicos que isso pode causar para si. Um longa-metragem que traz uma imediata reflexão e que nos faz mergulhar em nossas próprias mentes.
A trama gira em torno de Alma (Bibi Andersson), uma enfermeira sueca, cuja paciente, Elisabet (Liv Ullmann), simplesmente se recusa a falar ou até mesmo levantar de sua cama. Demonstrando uma relutância inicial ao lidar com ela, a protagonista acaba decidindo levá-la para uma casa no litoral. Ali, Elisabet passa a interagir mais, ainda que não diga uma palavra sequer. Não demora para que a enfermeira se aproxime da paciente e crie uma relação de dependência em relação a ela, ao passo que enxerga a mulher como uma forma de desabafar seus problemas e simplesmente ser ela mesma.
Na obra de Bergman, Alma e Elisabet representam claramente dois aspectos do ser humano. Enquanto a protagonista, que se abre, fala o tempo todo e demonstra uma maior alegria, simboliza nosso interior, a verdadeira face que gostaríamos de mostrar ao mundo, a paciente representa a nossa máscara. Ela é a forma que aprendemos a lidar com as adversidades da vida, é a frieza, as barreiras que criamos entre nossos semelhantes, seja motivada pela dor, seja pelo medo. É a figura ilusória do forte e silencioso, que, de fato, não passa de uma figura frágil se escondendo por trás de uma criação de sua própria mente.
O roteiro de Bergman, contudo, vai além disso e põe toda a questão de nossa individualidade em xeque. Vemos na mulher que não fala alguém que simplesmente abandonou a vontade de se relacionar, uma figura traumatizada em virtude dos diversos papéis que fora forçada a viver. Sua profissão de atriz não vem por mero acaso e dialoga com o que nós próprios desempenhamos ao longo dos anos – seja a posição de filho, pai, mãe, chefe, empregado, etc. Elisabet é o breakdown que nos aguarda em um momento ou outro de nossa trajetória, é um alerta para vivermos e não somente sobrevivermos.
A química construída entre as duas personagens vai mais a fundo nessa questão. É um clima de flerte, romance, como se nosso interior se esforçasse para quebrar essas barreiras construídas por nós próprios. A falta de êxito em desconstruir essas nossas máscaras inevitavelmente gera a frustração que culmina na luta entre as duas na segunda metade do longa – reparem como a emoção é exibida somente por Alma, cujo nome, aliás, obviamente também não é por acaso, remetendo ao latim anima, diretamente relacionado à vitalidade do ser e que também funciona como uma tradução do grego Psychē – a personagem pode ser interpretada, portanto, como a alma constantemente reprimida pelo corpo.
O foco no ser humano de Bergman é tornado ainda mais claro pela sua colaboração com Nykvist. Ambos constroem quadros que se destacam pelo minimalismo – inúmeras vezes enxergamos o personagem com um fundo branco refletindo a importância dessas personalidades na obra. A direção sustenta isso através de movimentos de câmera que sempre acompanham as duas mulheres, independente do movimento que realizam e a importância dos diálogos – a expressão da alma – é ressaltada pelos closes nos rostos de ambas, deixando claro o que se passa no psicológico de cada uma delas.
Com apenas duas personagens (na maior parte da projeção), presentes em quadros que sempre as priorizam, contrastando suas existências com o vazio à volta, Ingmar Bergman consegue nos trazer um profundo estudo sobre o ser humano. Um filme que pode ser interpretado de infinitas maneiras, todas atingindo o espectador de uma forma diferente. Trata-se de um longa-metragem feito para mergulharmos dentro de sua narrativa, nos despindo de nossas barreiras de maneira que possamos absorvê-lo por completo. É uma obra para sentir e refletir a tal ponto que dificilmente sairemos os mesmos após o seu desfecho.
Quando Duas Mulheres Pecam (Persona – Suécia, 1966)
Direção: Ingmar Bergman
Roteiro: Ingmar Bergman
Elenco: Bibi Andersson, Liv Ullmann, Margaretha Krook, Gunnar Björnstrand
Gênero: Drama
Duração: 85 min.