Muitos spoilers.
É incrível como muitas vezes, aquilo que pode não fazer o menor sentido de início acaba revelando-se, na verdade, a melhor decisão possível no final. Digam que Heath Ledger será o novo Coringa dos cinemas em Batman – O Cavaleiro das Trevas, passe pela inevitável sombra de desconfiança pela performance de Jack Nicholson, e temos um dos melhores vilões da História do Cinema. Diga que Quentin Tarantino dirigirá um filme ambientado na Segunda Guerra Mundial, e temos o neo clássico Bastardos Inglórios. Diga que David Fincher, mestre dos filmes de suspense e serial killers dirigirá um filme sobre a história e fundação do Facebook… E temos uma das melhores obras de arte do Século XXI com A Rede Social.
O roteirista Aaron Sorkin dramatiza aqui os eventos que levaram Mark Zuckerberg (vivido por Jesse Eisenberg) a criar aquela que atualmente é a maior rede social do planeta, e talvez o site mais acessado da internet depois do Google. Somos jogados em 2004, na faculdade de Harvard, onde Zuckerberg acaba de tomar um pé na bunda de sua namorada, Erica (Rooney Mara), que simplesmente não aguenta mais sua arrogâncai e temperamento difícil. O término leva Zuckerberg a encher a cara e se distrair com algum experimento de internet, onde hackeia todos os servidores da faculdade para criar um jogo de classificação dos alunos, algo que em poucas horas derruba o sistema e coloca Mark na diretoria. Isso também atrai a a atenção dos gêmeos Tyler e Cameron Winklevoss (ambos vividos por Armie Hammer) e de seu sócio Divya Narendra (Max Minghella) que o convidam para ajudar a criar uma rede social exclusiva para a faculdade de Harvard.
Porém, Mark acaba pegando o conceito e desenvolvendo-o para algo mais complexo, saindo na frente com o lançamento de seu The Facebook, que rapidamente torna-se a grande sensação no campus e vai expandindo-se para demais universidades, escolas e até países. Com a ajuda de seu melhor amigo, Eduardo Saverin (Andrew Garfield) Mark segue monetizando o site e iniciando sua própria empresa, o que provoca a ira dos gêmeos Winklevoss, que partem para confrontá-lo nos tribunais, e também do olho gordo do ambicioso empreendedor Sean Parker (Justin Timberlake). Todos esses acontecimentos colocarão Mark em um turbilhão de negócios, conflitos e inimizades, ao mesmo tempo em que vamos tentando entender o que é mais importante para ele.
Pela sinopse, já fica claro que é uma premissa um tanto mais complexa do que a mera criação de um site, então isso definitivamente nos livra da errônea primeira impressão de este ser “Facebook: O Filme”. O que temos no lugar é uma obra inteligente que é muito eficiente em sua proposta de analisar as relações humanas no século XXI, marcadas pela interatividade virtual, as táticas agressivas do business empreendedor e o desejo de ser aceito que assola o protagonista da história. São temas importantes que facilmente se perderiam em um roteiro desconcentrado, mas felizmente o genial Aaron Sorkin acabou responsável pelo texto, partindo do livro Bilionários por Acaso, de Ben Mezriech.
O Gênio de Aaron Sorkin
Conhecedores do roteirista sabem que a verborragia é sua marca absoluta, e que dizer algo de maneira direta e objetiva está longe de suas ambições artísticas, que estão mais interessadas no comentário, no sarcasmo e na ironia; características que tornam seus diálogos tão deliciosos de se ouvir e tão ricos em detalhes – algo que infelizmente é perdido até mesmo na tradução em português. Logo na cena que abre o filme, vemos uma conversa entre Mark e sua namorada Erica (pode-se dizer que é a primeira vez em que Mara realmente chamou nossas atenções), e é um diálogo longo e robusto que dura uns bons 6 minutos com apenas o básico plano/contraplano de Fincher para retratar a ação.
É praticamente contra a premissa do próprio Cinema, que clama para que “mostre ao invés de contar”, mas as imagens facilmente se formam graças à escrita impecável de Sorkin e as performances espetaculares de Jesse Eisenberg e Mara na cena em questão – cena que foi rodada nada menos do que 99 vezes, dado o perfeccionismo absurdo de Fincher. É também a cena que perfeitamente nos introduz a TUDO o que viria a seguir, desde a personalidade difícil de Mark e sua mania de manter diálogos paralelos (que veríamos na montagem simultânea de passado e presente), nos apresenta de nome à Eduardo Saverin, ao universo do remo acadêmico, o desejo de ser parte de uma fraternidade da universidade e à neura que assombrará o protagonista até o segundo final de projeção: se é, ou não, um cuzão.
É essa jornada de Mark onde reside o grande núcleo do filme, e a maestria na forma com que é narrada é um dos motivos pelo qual o longa foi comparado a Cidadão Kane na época de seu lançamento – uma comparação temática longe de ser exagero, se me perguntarem. Ainda na fantástica primeira cena, não só Sorkin apresenta todos os temas e elementos da história, mas também deixa claro nos primeiros segundos de diálogo as intenções de Mark: como se destacar em uma sociedade repleta de gênios e pessoas talentosas, como Mark precisa “fazer algo substancial” para receber a atenção dos Final Clubs, que ele considera como a porta para uma vida melhor onde ele talvez encontre essa forma de se destacar – chegando até a usar a eleição de Teddy Roosevelt como um argumento positivo às fraternidades. Isso praticamente nos justifica tudo o que o protagonista quer: ser especial. Mesmo sendo uma figura difícil e que muitas vezes tomará ações hediondas, é facilmente compreensível entender o que move Zuckerberg ao longo de sua história.
Isso fica ainda mais complexo quando Eduardo vai chegando cada vez mais próximo de se tornar parte de um dos Final Clubs, o que claramente provoca um sentimento de inveja por parte de Mark – não só por ver o amigo alcançando justamente aquilo que ele queria desde a abertura do filme, mas também pelo ciúmes pela ideia de perder seu grande companheiro para algo maior; as sutilezas na performance de Eisenberg são eficientes em indicar isso. A subsequente traição que o personagem sofre após a entrada de Sean Parker no jogo é até descrita pelo próprio Saverin como uma forma de Mark “se vingar” pelo fato de ele ter conseguido a tão sonhada participação na fraternidade, que somada ao fato de Mark ter tornado-se ambicioso demais em busca de seu próprio sonho e aliado-se a Parker, denotaram em sua expulsão da empresa. Só mesmo na vida real para termos a gigantesca ironia do fundador da maior rede social no planeta perder sua única amizade real no processo.
Mas, ainda falando sobre o arco de Mark, nenhum deles é mais importante e crucial do que o de Erica Albright. Se mencionei Cidadão Kane ali em cima, Erica é o Rosebud de Mark, o elemento por trás da história que acaba definindo a grande motivação emocional do protagonista. É Erica quem provoca todos os eventos do primeiro ato, ao terminar com o protagonista, lhe jogar na crise emocional que provoca a ideia do Facemash e o resto é História. Quando temos o segundo encontro entre os personagens no filme, Mark já lançou o Facebook e começa a ficar notório pelo sucesso do site, sendo essa a primeira pergunta que lhe dirige quando se esbarram em um restaurante. Mesmo com o sucesso do site e o fato de ter começado a sair com garotas graças a ele, quando Erica simplesmente não faz ideia do que é o site (“Boa sorte com o seu videogame”) e o repreende por te-la xingado virtualmente em seu blog após o incidente do Facemash, Erica o destrói por completo e acaba despertando ali mais uma motivação ao personagem: expandir.
A motivação inicial de Mark no início era claramente tornar-se especial, mas aos poucos vamos tomando nota de que sua motivação realmente é ganhar a atenção de Erica, algo que fica mais nítido quando se interessa na história (falsa) de Sean Parker sobre como ele tentara impressionar uma ex-namorada do colegial ou na reveladora cena final, encontra Erica no Facebook e a adiciona. E percebam a elegante rima entre a primeira cena e a última, onde Mark e Erica estão juntos de frente para o outro num bar lotado de pessoas, enquanto o final nos mostra Mark sozinho a observando pela tela de um computador.
Nunca poderia imaginar que adicionar alguém no Face seria algo tão simbólico.
Então somos apresentados à sofisticada estrutura narrativa do filme, que constantemente intercalará as ações de Mark dando início ao Facebook com os dois processos legais que se seguiram após o lançamento e popularização do site. Tal decisão exige muita atenção do espectador, já que uma pequena informação pode ser entregue com um corte rápido; se flashbacks geralmente rendem sequências mais longas, a técnica de Sorkin – aliada ao perfeito trabalho de montagem de Kirk Baxter e Angus Wall – muitas vezes nos leva de volta no tempo apenas para que possamos ouvir um único comentário de algum dos personagens. É um estilo radical e que garante uma linguagem ainda mais frenética e dinâmica ao texto fluido de Sorkin, jamais deixando o espectador cansado e nos dando a experiência virtual de como é se estar dentro da cabeça de Mark Zuckerberg, que desde a primeira cena inferniza sua namorada por estar sempre mantendo assuntos paralelos dentro do mesmo diálogo. E ainda que não goste totalmente da ideia, não nego que os saltos temporais representem uma eficiente versão do efeito zapping que realizamos ao surfar por diferentes sites na internet e absorver diversos conteúdos ao mesmo tempo, mas mergulharemos nisso mais à frente.
A maestria de Sorkin estende-se também à criação dos personagens que, mesmo tratando-se de figuras reais, ganham uma dramatização necessária para torná-los figuras mais caativantes; então uma necessidade de ser fiel à vida real não é exatamente uma necessidade, o próprio Sean Parker real afirmou que não era nada bad boy como o filme o retrata, por exemplo. Veracidade à parte, todos os personagens de Sorkin ganham um tratamento impecável e diálogos fervorosos que são capazes de nos diferenciar suas personalidades: a arrogância de Mark, a fala mansa de Sean e a lealdade de Eduardo são características fortes ali, e Sorkin é bem sucedido em escrever diálogos que reforçam a amizade dos protagonistas de forma natural, levando para o momento da destruição algo muito poderoso e triste. A forma como apresenta o empreendedor vivido por Justin Timberlake também é uma aula de roteiro e introdução, já que – assim como o diálogo inicial entre Mark e Erica – nos diz tudo o que precisamos saber sobre o personagem: acorda sem roupa na cama de uma universitária (vivida pela Dakota Johnson pré-Cinquenta Tons de Cinza) sem lembrar-se de seu nome ou contexto da situação, apenas para em questão de minutos reverter a situação através de sua fala e inteligência.
Parker é quase como o lado sombrio do filme, da maneira como convence Mark a abrir os olhos para o mercado empreendedor e deixar a visão ingênua e amadora de Eduardo para trás. Os exemplos perfeitos dessa sedução encontram-se no diálogo entre Sean, Mark, Eduardo e a namorada, Christy (Brenda Song), onde Mark enfim é apresentado à Parker, e tanto o texto de Sorkin quanto a direção de Fincher são cirúrgicos em captar as diferentes ideias que circulam a mesa de jantar, fazendo isso até na distribuição dos personagens: na ponta direita da mesa, Eduardo e seu terno esporte preto está irritado pelo atraso de Parker – já reforçando sua descrença no sujeito – enquanto no outro extremo, Mark e suas roupas coloridas e suaves mal conseguem conter sua empolgação pelo encontro, enquanto Christy apropriadamente senta-se entre os dois, de forma a manter o meio-termo. Do outro lado da mesa, Parker facilmente ganha o “confronto”, e começa justamente ao ganhar a afeição do “meio-termo Christy” ao lhe perguntar qual bebida gostaria de tomar e imediatamente pedir ao garçom a mesma bebida para todos ali – e é genial o pequeno jesto de Eduardo logo depois do pedido, quando rapidamente coloca seu braço ao redor de Christy, já temendo que Parker roube até mesmo sua namorada.
Essa antítese entre Sean e Eduardo é algo muito interessante de se analisar, até porque Sean surge quase como uma versão espelhada melhorada do jovem brasileiro. Ainda na cena do jantar, repare como o figurino de Eduardo e Sean são muito parecidos, com a gritante diferença de que o terno esporte de Sean parece muito mais justo e à vontade, além de trazer uma camiseta por baixo; ao passo em que o de Eduardo é um terno consideravelmente mais largo e com uma indiscreta gravata branca. Em outro momento, vemos Eduardo com o mesmíssmo terno enquanto Sean usa uma peça parecida, mas com um paletó que traz um hoodie acoplado: Sean é o lado cool, moderno e descolado do jovem empreendedorismo, enquanto Eduardo representa o lado mais retrógrado, que veste ternos grandes demais para suas próprias ambições. Detalhe sutil e genial da figurinista Jacqueline West.
Esse diálogo no jantar fora apenas o início da sedução de Mark por Sean, e é algo que concretizado de forma memorável durante a conversa entre os dois em uma balada de San Francisco. Com uma música altíssima de fundo, vemos um clássico exemplo de Aaron Sorkin: Mark comenta que as duas acompanhantes de Sean lhe parecem familiares, pois descobrimos depois que são modelos da Victoria’s Secret, mas Sean não limita-se a dizer “são modelos da Victoria’s Secret”, embalando aí um longo monólogo onde conta a história do fundador da marca de lingerie, assim como sua ascensão e queda do poder. Não só é uma estratégia de escrita muito elegante, como também nos mostra como Sean vai sutilmente puxando as cordinhas em Mark, contando a história da Victoria’s Secret para fazer o jovem enxergar o potencial de sua empresa e confiar em sua visão. É nesse ponto em que Mark se perde totalmente à Sean, em uma maravilhosa aula de roteiro.
É facilmente um dos melhores roteiros já escritos.
500 Milhões de Amigos
A começar com Jesse Eisenberg, que parece ter nascido para interpretar esse tipo de pessoa socialmente defeituosa e neurótica, algo que o texto de Sorkin e a direção de Fincher exploram muito bem. A fala acelarada do jovem ator dá fôlego às palavras de Sorkin, assim como a proposital sensação de confusão pela velocidade de seu discurso, transformando esse retrato de Zuckerberg em algo calculista e que parece estar quilômetros à frente de qualquer outra pessoa na sala. A raiva e a tristeza de Mark facilmente se misturam na ótima performance de Eisenberg, como na cena em que discute com Eduardo por telefone quando a conta da empresa é congelada; e facilmente vemos o medo do jovem de retornar à sua vida solitária por trás de seu discurso raivoso. É belo também ver os pequenos momentos de vulnerabilidade de Mark, seja em sua “oração” após finalmente publicar o Facebook ou sua completa confusão mental ao ser despejado por Erica, assim como os lampejos de felicidade, geralmente provocados pelo discurso persuasivo de Sean.
Certamente a especialidade de Eisenberg, o sarcasmo é uma dos traços mais fortes e divertidos do personagem, que é capaz de tornar-se malicioso e o líder da situação com facilidade. Reparem durante uma das cenas de depoimentos, onde Mark repentinamente vira-se para a janela a fim de observar a chuva – completamente ignorando as perguntas do advogado dos Winklevoss -, retornando para o diálogo com a expressão e a voz cansadas, como se simplesmente não aguentasse mais ouvir tudo isso, até o momento em que sua persona vai crescendo e crescendo e Eisenberg entrega um monólogo ameaçador e genioso sobre como seu tempo poderia estar sendo melhor gasto; em um contraste impressionante com como havia iniciado o diálogo. Ainda que o Mark real possa não ser assim, acho indiscutível que o Zuckerberg criado por Eisenberg é um dos personagens mais icônicos e únicos que o Cinema recente foi capaz de oferecer até agora.
O calculismo e dicção robótica de Zuckerberg são balanceados pela performance mais emotiva de Andrew Garfield como Eduardo, eficiente em construir uma relação de amizade verdadeira e que funciona ao longo da narrativa. Através de pequenas nuances, como sorrisos de canto ou olhares baixos, percebemos que Eduardo aceita todas as imperfeições e até a grosseria de Mark, como quando ele responde secamente que “não deveria ficar triste se não conseguir passar” quando este euforicamente lhe informa sobre seu processo de aceitação no final club da Phoenix; e o olhar de Garfield durante essa cena é capaz não só de resistir ao insulto discreto, mas enxergar a nítida camada de inveja do amigo. A destruição da amizade garante os melhores momentos do ator, especialmente na excruciante cena em que Eduardo descobre sua remoção como CFO do Facebook e confronta Mark cara a cara, espatifando seu notebook no processo. Os olhos de Garfield ficam vermelhos enquanto este segura as lágrimas durante seu discurso raivoso, e temos aí uma das cenas mais poderosas e impactantes do filme.
A grande surpresa fica por conta de Justin Timberlake, que jamais havia se mostrado como um ator promissor até então. Pra começar que é muito irônico o casting de um artista do meio musical para interpretar um sujeito que acabou encrencado justamente por burlar direitos autorais de cantores e artistas do meio – o próprio Timberlake já tendo contato com Parker antes mesmo de se aventurar no cinema. Dito isso, Timberlake está excelente na pele de Parker, sendo capaz de capturar a persona moderna e visionária do empreendedor, assim como é intensamente sedutor e sensato na forma como convence os demais personagens; sempre carismático e sorridente. Justamente por isso, a cena em que ele e Eduardo têm o único diálogo sozinhos revela um Sean muito mais aberto: sem gracinhas ou máscaras para esconder suas intenções, Timberlake diminui o volume de sua dicção e entrega uma performance fria e quase ameaçadora, ainda que mantenha seu sarcasmo tradicional: “Sabe o que eu li sobre você? Nada.”
Se o elenco sofreu nas mãos de Fincher com suas múltiplas tomadas, eu nem consigo imaginar a dor de cabeça que Armie Hammer deve ter passado, já que acabou com a difícil responsabilidade de interpretar dois personagens. Não só isso, dois personagens geneticamente idênticos e com personalidades distintas, aumentando ainda mais o desafio de criar figuras opostas…. Tendo a mesma aparência. Os Gêmeos Winklevoss foram criados a partir de um elaborado jogo de câmera e montagem que nos permite ter uma tela dividida – gravando a mesma cena duas vezes, mas com o ator “duplicado” atuando como um diferente personagem a cada tomada – e também através de um sofisticado efeito visual de substituição de cabeça, onde o dublê de corpo Josh Pence tinha sua cabeça digitalmente substituída pela de Hammer, que atuava em uma câmara de captura de performance. Fincher dirigindo uma captura de performance, imaginem só o trabalho…
Mas felizmente Hammer é um ator fantástico e se sai muito bem na criação de Tyler e Cameron, e fico triste que o ator ainda não tenha conquistado um nome de destaque em Hollywood. É uma performance muito funcional, com Cameron sendo o gêmeo mais racional e calmo, até propondo a seu irmão e Divya que uma abordagem pacífica e sem holofotes à situação de Mark seria a melhor escolha – mesmo que a voz do ator seja grave, é possível notar a linha suave na dicção do ator. Já Tyler é o mais explosivo e imediato, algo que Hammer consegue transmitir muito bem através da postura do irmão – também é esperto que Tyler muitas vezes use um protetor de orelha ou óculos de natação, já mostrando a preocupação do personagem com sua segurança, justificando também seu anseio em proteger sua propriedade intelectual.
Então temos duas personagens femininas que, apesar de terem pouco tempo de cena, são de extrema importância para a trama. A primeira, obviamente, é a que vemos interagir com Mark na cena de abertura, a Erica Albright de Rooney Mara. Lembro-me de, no mesmo ano, ter visto a atriz protagonizando o remake de A Hora do Pesadelo, e mesmo sofrendo com uma direção ruim e um material podre, ficou nítido ali um talento notável na moça, que realmente mostra a que veio em sua performance estelar durante o primeiro diálogo. Vemos como o interesse de Erica na primeira informação de Mark vai lentamente se convergindo a tédio e confusão, e Mara tem ótimas nuances na expressão quando – por exemplo – tenta fugir de um assunto no qual Mark está claramente obsessivo ao sorrir e tentar retomar a conversa, mantendo a educação e segurando a explosão do pavio já aceso. Quando ela enfim resolve acabar o relacionamento, Mara é determinada e nervosa, e acaba marcando uma forte presença durante seu monólogo final, quando pela primeira vez no filme, vemos alguém chamar Mark de cuzão.
A outra personagem é a advogada Marilyn Delpy, vivida por Rashida Jones em um papel limitado. É a última pessoa com quem Mark interage no filme, quando resume para Mark – e o espectador – o que acontecerá ao final de ambos os julgamentos, e mais importante, talvez seja a única pessoa de todo o filme que consegue penetrar a bolha protetora de Mark sem intenções maliciosas. Pontualmente vemos Jones reagindo de diferentes formas à algumas informações da história, na medida em que a narrativa avança nas duas linhas temporais, mas é só no final que realmente vemos sua importância. Não só servindo como o coro grego da história, Delpy diz a coisa mais importante de todo filme para Mark: “Você não é um cuzão, mas se esforça demais pra ser um”, o que culmina na catarse mais significativa do personagem, além de imeditamente o levar a procurar Erica no Facebook. Mesmo que seja uma curta participação, Jones está ótima.
Nada Fincher, mas totalmente Fincher
Finalmente, sobre a direção de David Fincher. Depois de tantos suspenses e filmes de serial killers, é muito improvável que este filme tão verborrágico e que dependesse de um diretor contido ganharia a assinatura de Fincher. Ironicamente, este é um daqueles casos em que roteirista e diretor completam-se em uma perfeita simbiose onde cada um eleva o trabalho do outro simultaneamente: é o filme mais contido de Fincher, e também o melhor de sua carreira, mas não é por não termos alguns de seus maneirismos habituais que este filme torna-se “menos Fincher”. Sua presença é sentida na fluidez perfeita das cenas, que atingem um nível de perfeição estético e dramatúrgico sem precedentes, em parte às repetidas vezes que o diretor grava uma tomada, o que resulta no aprimoramento cirúrgico de cada ação, toque ou fala.
Em nenhum momento temos um embate entre Fincher e Sorkin, algo que nitidamente ocorreu em Steve Jobs; e o fato de Danny Boyle constantemente procurar formas de traduzir visualmente o texto detalhista de Sorkin é o principal motivo para que o biopic do fundador da Apple não tenha sido uma nova obra-prima. Aqui, Fincher mantém sua condução discreta e elegante sem ofuscar o roteiro, optando por algo mais requintado no visual obscuro, contendo luzes amareladas e sombras dignas de um noir que a fotografia de Jeff Cronenweth ilustra tão bem, e acaba fornecendo um toque de thriller para A Rede Social; como na ótima sequência em que vemos Mark hackeando o sistema de Harvard com a mesma tensão e determinação de um assalto a banco ou no aterrador diálogo entre Mark e Sean em uma balada com música eletrônica altíssima, marcada pela mistura de luzes roxas e vermelhas que piscam sobre o rosto dos personagens e conferem um caráter ainda mais ameaçador ao fundador do Napster.
As sutilezas do diretor também se manifestam através de planos e movimentos de câmera elaborados. Por exemplo, o tilt onde vemos os chinelos de Mark em meio aos sapatos dos engravatados, o discreto plano sequência que acompanha Mark conversando no carro com Sean, saindo para a continuação dessa conversa e então subindo as escadas de pijama para uma reunião de investidores ou como mantém a câmera estática, sem cortes, durante a primeira discussão tensa entre Mark e Eduardo – apropriadamente encurralando-os no canto de uma parede chapada e amarelada. Há ainda um jogo mais complexo e que pode passar completamente batido pelo espectador durante uma das cenas finais, quando Mark e Sean conversam ao telefone após a prisão deste: na delegacia, Sean encontra-se no canto esquerdo do quadro, enquanto Mark está sentado no QG do Facebook no canto direito do quadro. Quando Sean move-se para o canto direito, o corte volta para Mark e o vemos deslizando com a cadeira para o canto esquerdo, quase como se – através desse jogo dessa mise em scène – o personagem estivesse evitando a todo custo ficar “ao lado” de seu sócio, repudiando suas ações.
A lógica dos enquadramentos é outro quesito sutil e poderoso aqui, especialmente na forma em que Fincher lida com os conflitos. Por exemplo, a conversa de telefone entre Mark e Eduardo já é um momento esquentado por natureza (dado o contexto de que Eduardo acabara de congelar a conta bancária da empresa) e o diretor usa novamente a estética de deixar cada personagem em um canto da tela durante os planos – reforçando o antagonismo – mas o interessante é que Eduardo claramente tenta apagar o fogo que é o nervosismo de Mark e sua posição no Facebook, até o momento em que sua namorada enciumada ateia fogo em um de seus presentes, e Fincher habilidosamente coloca o ato ocorrendo fora de foco, atrás de Eduardo; a perfeita síntese da situação pela qual o personagem se encontra no momento, agora tendo que apagar um fogo não só figurativamente, mas literalmente. E seguindo a mesma lógica, o que ocorre no plano detrás de Mark também é uma perfeita representação não só de seu estado, mas de seu personagem como um todo: Sean e um grupo de adolescentes farreando e comemorando dentro de uma sala, enquanto ele resolve problemas da empresa. Quando Mark enfim vira-se para observar a festa, uma rajada de champanhe é despejada pela janela de vidro, com o plano de Fincher lindamente representando a barreira invisível entre Mark e as outras pessoas, mostrando uma vida que ele parece ser incapaz de ter.
Felizmente, Fincher só deixa seu lado mais megalomaníaco ressurgir nos momentos certos, onde o texto realmente não é o elemento mais importante – algo muito raro nos roteiros de Aaron Sorkin. O grande exemplo aqui obviamente é a sequência da Henley Royal Regatta, onde a equipe de remo dos gêmeos Winklevoss sofre uma derrota apertada de seus concorrentes em uma corrida. Aqui, Fincher realmente conta tudo com apenas imagens, tomando como grande parceiro o fantástico eletrônico cover que Trent Reznor e Atticus Ross oferecem para “In the Hall of the Mountain King”, criando uma sequência eletrizante e que funciona sem qualquer tipo de som, tanto pela beleza estética da profundidade de campo reduzida ou pela alegoria de que os Winklevoss perdem a corrida – assim como perderam o Facebook – por muito, muito pouco. A sequência quase robótica é magistralmente montada de forma a sincronizar os movimentos de ambas as equipes de remo com as batidas da música, e é o tipo de cena que ao assistirmos já sabemos que se tornará clássica.
Sol Pintado em Abstrato
Constantemente vemos esse Fincher mais elegante, com extrema ajuda da trilha de Reznor e Ross, uma das mais originais e empolgantes daquele ano; se hoje ouvimos tanta eletrônica e “ambiência” em trilhas sonoras, pode apostar que tudo se deu à investida da dupla aqui, que saiu com a merecida estatueta do Oscar pelo excelente trabalho. O tema principal do filme, “Hand Covers Bruise”, é uma síntese perfeita do personagem de Mark Zuckerberg: solitárias notas de piano que repetem-se eternamente, tendo em fundo o efeito sonoro característico de um computador (similar àquele arcaico barulho da internet discada) e um aparelho conhecido como swarmatron, que emite um som contínuo similar a uma vibração/distorção, fornecendo o clima de suspense e inquietação essencial à história – até mesmo o nome, “mão cobre machucado”, é assustadoramente relevante aos temas do filme. É uma música icônica e que inteligentemente é usada apenas três vezes no filme: a cena de abertura com Mark correndo no campus (apresentação da história e do universo, pontuando a solidão de Mark), durante o insulto de Mark no depoimento (o lado sombrio do personagem emergindo) e no confronto verbal entre Mark e Eduardo no clímax (o efeito mais dramático e que marca o fim da amizade dos dois).
É uma trilha atmosférica e que funciona perfeitamente bem durante todos os momentos, seja para pontuar a dramaticidade, vide o uso do piano na faixa “Penetration” para as reuniões tediosas de Mark e Eduardo com anunciantes ou para salientar sentimentos abstratos, como o som distorcido de “The Gentle Hum of Anxiety” durante a prisão de Sean ou as batidas animalescas de “Magnetic” para a cena do jantar com o mesmo. Aliás, é genial como Reznor e Ross reaproveitam uma de suas faixas durante a fase do Nine Inch Nails para a cena em que Eduardo escreve o algoritmo na janela e a sequência do Facemash se espalhando, com “A Familiar Taste”. Não só a guitarra pontua bem o aspecto “radical” da ação de Mark, mas traz um efeito sonoro que se assemelha muito com a ponta de uma caneta esferográfica sendo deslizada por uma superfície plana, e podemos facilmente fazer a conexão com a caneta de Eduardo na janela. De certa forma, a música pontua como essa caneta na janela se ramificou assustadoramente.
E já que falamos sobre efeitos sonoros, uma das áreas mais subestimadas do filme – e que provocou muitas dúvidas durante sua indicação ao Oscar – é a mixagem de som chefiada por Ren Klyce, um dos leais parceiros de Fincher. Sendo um filme que traz uma quantidade enorme de diálogos, e muitos deles acontecendo simultaneamente, é necessário um tratamento de som com muito cuidado e sutileza, setor no qual Klyce é excepcional. A primeira cena, por exemplo, é um perfeito exemplo de como se construir uma boa ambiência, com o diálogo de Mark e Erica quase sendo ofuscado pelas conversas paralelas no bar, além da música “Ball & Biscuit” do White Stripes estar perfeitamente reverberizada ao fundo. Um exemplo mais dramático é a cena da balada, onde as caixas de som explodem com a música eletrônica “Sound of Violence”, de Dennis De Laat, fazendo com que Timberlake e Eisenberg praticamente gritem suas falas enquanto a música literalmente nos coloca no lugar. O melhor é ver como a faixa original foi editada e remixada para pontuar melhor trechos específicos do discurso de Sean, como a explosão do refrão da música quando o empreendedor grita “This is a once in a generation holy shit idea!” ou a diminuída no volume da música quando enuncia “I’m CEO, bitch”.
O que nos leva, enfim, ao processo de montagem. Outra categoria vitoriosa do filme no Oscar, a montagem da dupla Kirk Baxter e Angus Wall é uma dos aspectos mais fortes do filme, que majestosamente dão conta da direção minuciosa de Fincher e da narrativa entrecortada de Sorkin. Logo na primeira cena (já perceberam que essa cena é perfeita, certo?), a ordem dos cortes obedece a uma direção certeira para criar efeitos diferentes, como o plano aberto que apresenta a cena, o corte para um plano mais central de Erica quando ela menciona Final Clubs ou a velocidade do vai e vem aumentando à medida em que Mark acelera seu discurso, deixando tanto Erica quanto o espectador num estado confuso.
A sequência do hacking de Harvard é um dos grandes exemplos de como a velocidade melhora uma cena, e Baxter e Wall lidam com diversas ações paralelas ao mesmo tempo: a festa no Final Club de Phoenix, a tela do computador enquanto Mark hackeia, a página do blog e o próprio Mark interagindo com seus amigos – além dos planos de apoio que incluem o teclado e o mouse. Os cortes são eficientes na forma com que organizam a ação de escrever no blog com a de digitar um código, além da maneira como as imagens da festa do Phoenix se inserem sugerirem algo quase onírico, como se Mark estivesse sonhando com aquilo.
Essa organização de linhas temporais e vai e vem de personagens e ações é algo executado com precisão impressionante, e eu realmente não preciso discorrer muito sobre esse incrível trabalho, que é um curso gratuito para muitos editores por aí. Outro aspecto que merece atenção é aquele que passa despercebido, que pode ser realizado com alguns cortes e elipses muito sutis – a dupla se especializou nisso com dois cortes muito específicos em Millennium – Os Homens que Não Amavam as Mulheres e Garota Exemplar. Por exemplo, quando os Winklevoss e Divya discutem sobre o fato de Mark querer expandir o site para a universidade de Stanford, imediatamente somos levados para um quarto em Stanford – algo que só descobrimos quando vemos o nome escrito na calcinha de uma das alunas -, onde o Facebook já é popular. Uma elipse perfeita que se manifesta de forma similar na cena da balada, onde Sean promete a Mark levar o Facebook para outro continente. Alguns segundos depois, um fade to black nos leva diretamente para Henley, Inglaterra, onde temos a sequência da Royal Regatta. E, claro, o Facebook já está popular ali. Dessa forma, mesmo que constantemente voltando no tempo, a narrativa de A Rede Social está sempre avançando.
A Once in a Generation
A Rede Social talvez seja o exemplo perfeito de como um filme pode subverter expectativas. É um estudo de personagem poderoso, movido pelo roteiro absolutamente perfeito de Aaron Sorkin a direção magnífica de David Fincher, que entende suas sutilezas e leva seu talentoso elenco a explorar áreas cheias de nuances e detalhes ocultos. A saga de Mark Zuckerberg e a criação de seu revolucionário Facebook pode desde já ter seu espaço certificado na História, dado o domínio da linguagem cinematográfica e a eficiência com que conta uma história que, à primeira vista, pode parecer banal e sem muito espaço para reflexões. Na verdade, estamos diante (ainda) do melhor filme da década.
Como o próprio Sean Parker atesta em certo momento, é um evento que só aparece uma vez a cada geração.
A Rede Social (The Social Network, EUA – 2010)
Direção: David Fincher
Roteiro: Aaron Sorkin
Elenco: Jesse Eisenberg, Andrew Garfield, Justin Timberlake, Armie Hammer, Max Minghella, Rooney Mara, Rashida Jones, Brenda Song, Joseph Mazzello, John Getz, David Selby, Denise Grayson, Josh Pence
Gênero: Drama
Duração: 120 min
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