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Crítica | Sombras da Vida – Um drama existencial baseado no sobrenatural

Histórias de fantasmas e assombrações estão quase sempre ligadas ao gênero do terror. Um dos tipos de narrativa mas primordiais, daquelas que eram contadas ao redor da fogueira em noites frias, contos sobre a vida após a morte e o contato entre ambos os mundos já renderam obras apavorantes, mas poucas já foram capazes de provocar o afeto, ou nos envolver pelo drama. Eis que David Lowery e a sempre certeira produtora A24 oferecem um experimento original e fascinante com o apropriadamente entitulado A Ghost Story, que ignora qualquer convenção de gênero em um filme sem igual, que opta pelo estudo existencial da alma humana, ao mesmo tempo em que não esquece as raízes de seu tipo de história.

A trama nos apresenta ao casal formado por C e M (Casey Affleck e Rooney Mara), que vivem um período conturbado pelo desejo dela de sair da casa onde moram, mas ele recusa por seus motivos pessoais que o ligam àquele lugar. Quando C subitamente morre em um acidente de carro, seu espírito, representado por ele mesmo sob um lençol branco com dois buracos, volta à casa e M, e dessa forma acompanhamos sua estranha jornada e estadia no pós-vida.

David Lowery tem uma carreira interessante. Ao mesmo tempo em que oferece dramas pesados como Amor Fora da Lei  (também com Affleck e Mara), ele ainda figura na Disney com as novas adaptações de Meu Amigo, o Dragão e o vindouro reboot de Peter Pan. Como a Walt Disney confia tanto dinheiro a um cineasta tão autoral e com um olhar muito peculiar, é um pequeno milagre, e basta o espectador pegar meros segundos deste A Ghost Story para compreender isso: é um filme com ritmo lento, quase sem diálogos e com planos longuíssimos que não parecem dizer muito à primeira vista. Não é um filme para aqueles que não aguentam uma boa contemplação, e que, abraçando a natureza de seu protagonista, pode tornar-se sem vida em diversos momentos. E confesso, ainda que estes sejam belos, e a fotografia em 16mm com razão de aspecto quadrada reforça essa característica “caseira”, tais momentos podem vir a se arrastar sem muita necessidade aqui e ali (Mara come uma torta por 4 minutos ininterruptos em uma cena), mas ajudam a construir a atmosfera fria e fantasmagórica da narrativa; o próprio exemplo da torta é um eficiente retrato do luto e o vazio da perda.

O que torna o filme ainda mais fascinante, é quando vai além. Para minha surpresa, tudo o que envolve a personagem de Rooney Mara acaba se desenrolando rápido, e é aí que o filme revela sua brilhante estrutura: a alma de C está presa àquela casa, e Lowery então nos faz acompanhar todos aqueles que habitam aquela terra. É uma ideia ousada e que Lowery executa de forma espetacular, e a montagem (também assinada pelo diretor) praticamente invisível é excepcional em sua função de avançar anos de acontecimentos em meros segundos, trazendo algumas das elipses mais sutis e bem elaboradas do ano (o plano em que vemos M entrar e sair da mesma porta, com roupas diferentes, é um bom exemplo). Lowery consegue explorar pequenas fatias de vida nessa jogada inesperada, tudo do ponto de vista de um C sempre por baixo do lençol e sem a capacidade de falar, e é incrível como Lowery consegue pegar uma situação que estamos acostumados a ver como algo assustador – um fantasma levantando objetos e agressivamente destruindo a louça de uma família durante o jantar – e transformar em algo de partir o coração, já que agora é a noção confusa de C em ver estranhos naquela que um dia foi sua casa.

A viagem se prolonga por caminhos ainda mais surpreendentes, e que prefiro não estragar aqui, mas que conseguem até mesmo brincar com a ideia do infinito e paradoxos temporais. Claro, tudo na base imagética e de mínimos diálogos (com exceção do longo monólogo de um sujeito durante uma festa), muitas vezes envolvendo legendas quando C encontra outros “fantasminhas” a seu redor. E quanto mais audacioso Lowery fica, a trilha sonora de Daniel Hart ganha uma força descomunal, e uma sequência específica que envolve arranha-céus é certamente uma das cenas mais inebriantes de 2017. É uma jornada de proporções cósmicas, mas sem nunca deixar a visão intimista e humana de sua proposta, que revela-se no final como uma metáfora incrivelmente simples, mas eficaz.

A Ghost Story é um belíssimo filme. Lento e às vezes um tanto monótono, mas traz uma experiência diferente das outras, além de uma abordagem original a um tipo de história primordial, jogando uma luz sentimental em um assunto tão ligado ao terror e o medo. Uma pequena grande conquista.

Sombras da Vida (A Ghost Story, EUA – 2017)

Direção: David Lowery
Roteiro: David Lowery
Elenco: Casey Affleck, Rooney Mara, Will Oldham, Sonia Acevedo, Liz Frankie, Grover Coulson, Kenneisha Thompson, Barlow Jacobs, McColm Sephas Jr., Kesha Sebert
Gênero: Drama
Duração: 93 min

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Publicado por Lucas Nascimento

Estudante de audiovisual e apaixonado por cinema, usa este como grande professor e sonha em tornar seus sonhos realidade ou pelo menos se divertir na longa estrada da vida. De blockbusters a filmes de arte, aprecia o estilo e o trabalho de cineastas, atores e roteiristas, dos quais Stanley Kubrick e Alfred Hitchcock servem como maiores inspirações. Testemunhem, e nos encontramos em Valhalla.

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