Contém SPOILERS!
No primeiro capítulo de Introdução à Teoria do Cinema, de Robert Stam, várias questões são levantadas a respeito da natureza estética da Sétima Arte, que, além de permitir um grau de fantasia e estilização, conta com seus próprios meios – e estes não necessariamente se encontram em outras formas de expressão artística. Nem tudo que funciona na Literatura deve levado ao pé da letra para o Cinema, já que uma linguagem é completamente diferente da outra. Do ponto de vista estilístico, cruzar duas mídias distintas é uma decisão que exige ousadia e sempre representa um perigo, pois muitos podem enxergar o resultado final da obra como algo anacrônico.
E isto foi o que infelizmente ocorreu com Speed Racer, que me veio à mente enquanto lia o texto de Robert Stam estudando para uma prova: lançado há dez anos, o primeiro filme dirigido por Lana e Lilly Wachowski depois da trilogia Matrix é um exercício estético dos mais ambiciosos e admiráveis, impressionando em sua tentativa – muito bem-sucedida – de combinar aspectos clássicos do anime com a linguagem do Cinema. Em outras palavas: este longa é, à sua maneira, um “desenho animado live-action“; o que, na época, levou grande parte do público e da Crítica a reprovar o resultado, transformando-o num dos maiores fracassos de bilheteria da História. Quando descobriram o que as irmãs Wachowski haviam feito aqui, muitos acusaram Speed Racer de ser “esquisito”, “visualmente cansativo” e “bobão demais”, deixando de observar os muitos méritos deste que é, talvez, um dos filmes de ação mais inventivos que Hollywood produziu na última década.
Criado nos mangás de Tastuo Yoshida em 1966, Mach GoGoGo se popularizou mesmo no ano seguinte, quando ganhou um anime e chegou ao Ocidente rebatizado de Speed Racer. Embora limitado por um orçamento que não permitia o grau de experimentação desejado, este era um desenho animado verdadeiramente… maluco (não há termo mais apropriado): as corridas disputadas envolviam cenários dos mais inusitados, os personagens eram caricatos, os pais do protagonista se chamavam Pops e Mom (pois é), a paleta de cores era incrivelmente vibrante e os carros pulavam, se empilhavam, rodopiavam no meio da pista e se batiam até que explodissem. É possível que muitos se lembrem de Speed Racer como uma animação relativamente comum, mas basta rever alguns trechos de certos episódios para perceber que a insanidade era um conceito bem presente nesta história – e ainda que as autoestradas tentassem simular alguma normalidade, a perspectiva dos desenhos era curvada a ponto de deformá-las.
Daí vem as irmãs Wachowski e resolvem transformar isto num filme. A mesma dupla que, no final da década de 1990, contagiou o mundo com a estética cool de Matrix (aquela a fotografia esverdeada, aquelas roupas de couro, aqueles óculos escuros, aquela trilha sonora agitada, aquele slow motion estiloso, etc). Aliás, até o próprio V de Vingança – que, mesmo sem ser dirigido pelas Wachowski, foi produzido e roteirizado pelas irmãs – contava com uma identidade visual bastante similar àquela exibida na trilogia de Neo, Trinity e Morpheus. O que as mentes criativas por trás disto teriam a fazer numa adaptação de Speed Racer? Antes de tudo, este é um ponto de transição na carreira das Wachowski, que praticamente se reinventaram aqui – e só o fato de terem tomado uma iniciativa dessas (recusar a inércia estilística e renovar sua assinatura) já é digno de nota. Independente do espectador amar ou odiar a obra das duas cineastas, nunca se pode afirmar que elas são preguiçosas ou conformistas.
Roteirizado também por Lana e Lilly Wachowski, logo após produzirem o ótimo V de Vingança, esta adaptação de Speed Racer começa nos apresentando ao personagem-título, que, enquanto percorre os espirais da pista “Thunderhead”, relembra o principal motivo pelo qual ingressou no mundo das corridas: seu irmão Rex Racer, que morreu há anos e deixou um legado polêmico. Speed sempre correu de forma independente, mantendo a tradição de representar a autônoma Racer Motors criada por sua família, mas isto quase muda depois que o empresário E.P. Arnold Royalton, atraído pelos talentos do jovem piloto, lhe oferece a oportunidade de entrar para o modelo industrial da Royalton Industries. Quando Speed recusa a proposta, porém, o poderoso CEO revela suas verdadeiras (e inescrupulosas) intenções, manipulando o desempenho dos demais corredores e sabotando o protagonista – o que leva o piloto/detetive Corredor X a se aproximar de Speed e pedindo sua ajuda para desvendar a corrupção sistemática que se esquematizou na Royalton Industries e intoxicou todo o cenário automobilístico, envolvendo várias outras companhias de grande porte e até mesmo a Máfia.
Pois não se enganem: por mais que algumas pessoas insistam em dizer que Speed Racer é apenas um festival de pirotecnia sem um roteiro que seja dos melhores, a verdade é que, do ponto de vista temático, as irmãs Wachowski fizeram um trabalho bastante admirável aqui. Ora, para começo de conversa, basta voltar ao parágrafo anterior para perceber que este é mais um blockbuster que reflete a mentalidade que Hollywood abraçou ao longo dos anos 2000, quando os vilões de boa parte das histórias passaram a ser os grandes empresários e suas corporações – não é à toa que as atitudes tomadas por Royalton constantemente remetem àquelas tomadas pelo detestável Daniel Plainview em Sangue Negro (sem o mesmo grau de crueldade, é claro): ambos se aproximam gentilmente de uma família que administra seu patrimônio de maneira autônoma e cinicamente oferecem uma série de privilégios, fazendo questão de retirá-los assim que descobrem que as coisas não ocorrerão do jeito que gostariam. O clímax de Speed Racer, por sinal, é bem simbólico neste sentido, já que traz um herói que independente de grandes patrocínios vencendo honestamente os representantes das megacorporações e derrubando, com isso, os antagonistas corruptos.
Mas não é só nisso que o roteiro das irmãs Wachowski se destaca: outro tema que torna Speed Racer especial é seu jeito sensível de enxergar o apego familiar, que está presente desde os primeiros minutos. Antes do rosto de Emile Hirsch surgir em cena, acompanhamos brevemente a relação entre Speed e Rex, que, em uma única cena, se consolida como a bússola que guiará o protagonista ao longo de toda a sua jornada. Quando ambos pilotam o Mach 4 numa “Thunderhead” vazia, o irmão mais velho diz que Speed deve “parar de dirigir e começar a pilotar“, declarando que um carro não é um item inanimado, mas algo que vive, respira e deve ser escutado. Se o herói é bem-sucedido em suas disputas, é porque Rex lhe ensinou a fechar os olhos e sentir o veículo – e prestem atenção neste trecho específico, pois voltará a ser importante mais à frente. O fato de presenciarmos isto antes de saltarmos para uma sequência de ação é fundamental, já que todas as corridas que vêm a partir daí contam com este peso emocional gerado pelo irmão de Speed. Aliás, quando o personagem-título está prestes a vencer a primeira corrida mostrada no filme e bater o recorde estabelecido por Rex no passado, as Wachowski tomam uma decisão brilhante: apresentar um “espírito” esfumaçado que acompanha os movimentos executados por Speed em seu Mach 5, indicando o quanto este se inspira nas corridas feitas por seu irmão – e que o protagonista desacelere pouco antes de superar o recorde batido por Rex, deixando seu legado intocado, é um gesto de reverência particularmente tocante e revelador.
Assim, a persona de Speed Racer é ilustrada com clareza, já que passamos a compreender perfeitamente o porquê dele ser quem é – e quem o construiu como ser humano não foi o autodidatismo, mas suas influências familiares. Num filme que fala tanto sobre afeto e carinho, é claro que as atuações precisariam expor isso com eficácia – e nisso Speed Racer está bem servido: Susan Sarandon interpreta Mom com uma delicadeza convincente, expressando a vontade de ver o filho seguir seu próprio caminho sem deixar de preservar sua autoestima (e o monólogo em que diz que vai às corridas para ver Speed fazer Arte, como um pintor ou um músico, é comovente); John Goodman mais uma vez encarna um personagem popularizado num desenho animado (o anterior foi Fred em Os Flintstones) e transforma Pops numa figura que consegue ser intimidadora aqui e calorosa ali, equilibrando-se muito bem entre a virilidade exibida pelo sujeito e o medo de permitir que aconteça com Speed aquilo que comprometeu Rex; e Christina Ricci, como a namorada Trixie, não se restringe à mera função de par romântico do protagonista, mostrando-se inesperadamente ativa em alguns momentos e se importando o tempo todo com o herói (e não há como negar que Ricci parece ter saído diretamente do anime). O único que não tem a mesma sorte é Paulie Litt, que, mesmo contando com uma ou outra tirada mais inspirada, torna-se meio irritante ao viver o caçula Sprittle, sendo eclipsado pelo carisma um pouco maior do macaquinho Chim Chim.
O que nos traz ao próprio Speed Racer, que surge na pele de um Emile Hirsch recém-saído do elogiado Na Natureza Selvagem: dono de um rosto que naturalmente tem tudo a ver com as caras e bocas que o personagem-título fazia no anime, o ator transmite com precisão o espírito jovial e inocente que caracteriza Speed, mas lembrando de injetar também charme e sisudez quando necessário. E se Roger Allam se diverte ao retratar Royalton como um vilão teatral que grita encoberto em sombras – sem nunca tornar-se tolo ou ridículo demais –, Matthew Fox (que muitos conhecem como o Jack de Lost) confere uma aura misteriosa e enigmática ao Corredor X, um indivíduo intimidador que sempre deixa o espectador incerto quanto às suas verdadeiras intenções – e é louvável que, nos minutos finais do longa, Fox surpreenda ao ressaltar a tragédia que o personagem é obrigado a carregar continuamente nas costas.
E este é o tipo de momento que faz de Speed Racer uma experiência emocionalmente poderosa, pois as irmãs Wachowski são hábeis ao estabelecer o apego que une os personagens – e mesmo sendo extravagantes como o universo em que habitam, cada um deles soa humano o suficiente para conquistar a simpatia do espectador. Desta forma, as cineastas novamente demonstram inteligência no terceiro ato, que amarra apropriadamente todos os arcos dramáticos e encerra a história com chave de ouro: quando o motor do Mach 5 é desativado e Speed consegue religá-lo usando somente sua força de vontade e concentração, é possível encarar isto como um deus ex machina; no entanto, esta solução faz todo o sentido quando lembramos do que Rex Racer disse no início da projeção (sobre a importância de enxergar o carro como um ser vivo e saber senti-lo). Além disso, quando Speed começa a vencer a corrida e várias de suas memórias vêm à tona, o potencial dramático da cena passa a ser enfatizado – e ainda que as sequências de ação funcionem muitíssimo bem, o que torna aquele clímax memorável é o centro emocional que acompanha a narrativa e atinge seu ápice ali.
Mas é claro que, num filme como Speed Racer, a qualidade da ação é imprescindível – e depois de revolucionarem o gênero com as técnicas empregadas em Matrix, as irmãs Wachowski se sobressaem de novo neste sentido: o anime original, como já foi dito no terceiro parágrafo, era notavelmente propenso à insanidade, mas o orçamento limitado impedia que algo mais dinâmico fosse produzido e, por isso, a animação era pontualmente lenta – e as Wachowski, por outro lado, contaram com uma verba folgada de US$ 120 milhões, o que permitiu que a abordagem rítmica daquela obra fosse corretamente atualizada. Assim, o espírito “fora da casinha” que existia no desenho animado se mantém presente neste longa live-action, porém turbinado (com o perdão do trocadilho) pelos benefícios orçamentários e pela direção ainda mais frenética. Os carros continuam pulando, se batendo, ativando lâminas rotatórias e rodopiando na pista, mas… numa velocidade infinitamente maior.
Em primeiro lugar, as Wachowski fazem algo que pode parecer básico, mas que muitos diretores esquecem na hora de conceber a ação: esclarecer as regras que compõem aquele universo fantasioso. Obviamente ambientado num mundo que não tem absolutamente nada a ver com o real, Speed Racer abraça o absurdo com uma vontade impressionante e digna de aplausos, o que automaticamente me impede de criticar a maneira ilógica com que os veículos deslizam pelas pistas, desafiam a gravidade e estendem os impulsos de seus pilotos (em certo instante, Speed dá um “cavalo de pau” com o Mach 5 e usa o carro para prensar seu inimigo na beirada de um precipício, numa tentativa bem-sucedida de intimidar o adversário). Não há motivo algum para reclamar da falta de comprometimento com a física do mundo em que vivemos, já que Speed Racer faz questão de deixar claro – através de sua identidade estética – que o objetivo é passar longe de qualquer pretenso realismo (não há sequer uma Nova York que remeta à realidade; tudo aqui é multicolorido, artificial e impossível). E afinal, qual o problema de curtir dois carros que, no meio de um deserto visivelmente digital, resolvem cair na porrada (sim, essa é a palavra certa)?
Explicando com cuidado e paciência quais as habilidades específicas que os Mach 5 têm a oferecer (qual o botão que o faz pular; qual o botão que liga as lâminas rotatórias; qual o botão que ativa, nos pneus, uns espetos que levam o carro a andar pelas paredes; etc), as irmãs Wachowski concebem sequências de ação que permitem que cada um destes recursos seja posto em prática, o que torna as perseguições ainda mais divertidas e criativas. Há quem possa achar as corridas/lutas visualmente confusas, já que o modo como as diretoras enfocam a ação é intensamente enérgico – em contrapartida, se analisarmos com calma a proporção dos quadros adotados, a continuidade entre um plano e outro, o ponto em que a câmera está posicionada e a forma como a mise-en-scène é organizada, logo constatamos que todas as sequências de ação foram estruturadas de maneira exemplar; o que complica um pouco mais é a velocidade destas cenas, que obrigam o espectador a manter-se antenado ao que está na tela em cada milissegundo (o que, convenhamos, é uma estratégia inteligente, pois prende a atenção do público a fim de levá-lo a compreender a ação). Em outras palavras: as corridas presentes aqui são impecáveis no jeito como são construídas; basta se concentrar no que está sendo mostrado para apreciá-las.
A psicodelia é algo praticamente inevitável em Speed Racer, que desde sua origem sempre foi uma obra disposta a endoidar – e se a ideia das irmãs Wachowski era criar um “desenho animado live-action“, não havia a menor chance de cumprir esse objetivo sem surtar um pouquinho. E assim é a lógica do filme como um todo: uma experiência que parece ter sido produzida sob efeito de alucinógenos; o que, no fim das contas, acaba representando uma viagem divertidíssima. A forma como as Wachowski conduzem essa piração, diga-se de passagem, é outro acerto curioso: se a natureza lisérgica do longa já é sugerida nos segundos iniciais, quando as logomarcas das empresas responsáveis pelo projeto são apresentadas entre vários quadrados coloridos que se contorcem, essa característica vai crescendo progressivamente ao longo da projeção, culminando num clímax que envolve imagens alucinantes.
No meio dessa loucura toda, dá para entender o porquê dos efeitos visuais serem tão explosivos e artificiais: quando assistimos a uma animação bidimensional, automaticamente percebemos que aquilo não é próximo à nossa realidade; são desenhos tracejados desenvolvidos do zero por uma equipe criativa – o que impede que reclamemos disso, portanto, é o fato de que tudo presente na tela é igualmente desenhado, mantendo uma uniformidade estilística que nos imerge naquela natureza estética. Pois o que as irmãs Wachowski fazem em Speed Racer é buscar um efeito parecido, porém mais próximo do live-action sem perder as características de uma animação – e a resposta está na computação gráfica. Assim, não há motivo para reclamar que os carros e cenários vistos aqui são postiços e falsos demais, já que o filme inteiro segue a mesma lógica visual. Não é como num longa estrelado por super-heróis, onde vemos uma cidade real ser povoada por personagens que pontualmente se transformam em bonecões digitais e destoam do que está entorno deles.
É complexo, mas assim funciona a mente das Wachowski. Aliás, se o objetivo do filme é abraçar suas origens animadas, é natural que as diretoras façam uma série de homenagens ao anime: há o macaquinho Chim Chim; há um instante onde Pops revela-se um exímio lutador; há a mesma trama envolvendo o misterioso Corredor X; e há até mesmo um plano que traz Speed saltando do Mach 5 na frente de um fundo amarelo e vermelho quadriculado. E se a edição acerta ao resgatar o icônico som que o veículo emitia ao saltar, a trilha sonora de Michael Giacchino – que compõe, aqui, um dos melhores trabalhos de sua já brilhante carreira – faz questão de reutilizar e modernizar o tema clássico (“Go, Speed Racer / Go, Speed Racer / Go, Speed Racer, Go!“), além de evocar o espírito dos anos 1960, com acordes ocasionais de guitarra, e equilibrar-se entre a adrenalina das sequências de ação e a delicadeza das passagens mais dramáticas.
Mas não é necessariamente o anime de 1967 que é homenageado aqui; a linguagem dos desenhos animados em geral está presente em Speed Racer: quando um vilão contempla uma maleta cheia de dinheiro, seus olhos são substituídos por cifrões; quando um adversário avista o protagonista, ele tenta arremessar uma colmeia em direção ao Mach 5; quando Sprittle e Chim Chim tentam se passar por um adulto, eles se montam um encima do outro e vestem um sobretudo; quando Snake Oiler percebe que Speed está se aproximando, ele aperta um botão que dispara graxa a partir da traseira de seu carro; e quando um veículo está prestes a explodir, seu piloto é jogado para fora e protegido por uma bolha – o que, por sinal, permite que o espectador possa curtir as destruições que acontecem nas corridas sem qualquer tipo de culpa, pois sabemos que, embora os carros estejam sendo completamente obliterados, nada grave ocorrerá com quem os dirige.
O design de produção, assinado por Owen Paterson, é outro espetáculo à parte: investindo pesadamente no aspecto absurdo e lisérgico da obra, o universo multicolorido de Speed Racer eleva a insanidade do anime à enésima potência e evita – mais uma vez – qualquer tipo de realismo em sua concepção, sendo particularmente admirável que o céu seja muito azul, que o deserto seja muito laranja e que os gramados sejam muito verdes. Além disso, se as autoestradas que apareciam do desenho animado buscavam simular alguma normalidade, mas acabavam soando absurdas e desproporcionais por causa da perspectiva esquisita, Paterson faz questão de transpô-las literalmente aqui, criando pistas de corrida inacreditáveis e que desafiam frequentemente a gravidade. Enriquecendo o world building iniciado na cabeça das irmãs Wachowski, o designer de produção dá uma personalidade específica para cada um dos corredores que surge nas perseguições: existem pilotos e veículos inspirados em vikings, militares, super-heróis, mercenárias rosadas e burgueses representantes da elite que gerencia as grandes corporações – e todos eles vivem desta forma em suas horas vagas. Para completar, cada pista percorrida pelos personagens tem uma identidade própria (impedindo o filme de se tornar repetitivo neste sentido): “Thunderhead” é um amontoado de espirais roxos e iluminados com neons; “Fuji” é ensolarada e cercada de flamingos; “Casa Cristo” vai de um castelo indiano até uma montanha congelada, passando por um deserto e por uma estrada coberta de grama; e “Grand Prix” ostenta luzes azuis piscantes, ladeiras incalculáveis, espinhos fatais e uma parede que traz uma zebra desenhada na frente de um fundo que alterna entre preto e branco (criando uma imagem em movimento enquanto os pilotos correm).
De todo modo, é impossível falar sobre Speed Racer sem discutir a montagem de Roger Barton e Zach Staenberg, que quebra convenções hollywoodianas e poderia perfeitamente ser citada em cursos de Cinema: logo nos primeiros 15 minutos, quando vemos uma corrida disputada por Speed no presente ser intercalada com flashbacks que resumem sua relação pregressa com Rex, já notamos que a estrutura narrativa adotada por este filme – e iniciada no roteiro escrito pelas Wachowski – escapará do lugar-comum, pois consegue saltar organicamente entre dois períodos distintos e inserir pequenas memórias que esclarecem o background do protagonista durante a ação. Mas não é só: mais tarde, quando Royalton decide explicar seu plano malévolo para Speed, o monólogo feito pelo vilão é complementado por breves flashfowards que mostram o desdobramento deste plano, alternando entre presente e futuro com fluidez e conferindo um dinamismo inesperadamente criativo à cena. Para concluir a façanha, o clímax da trama – enfocando a vitória de Speed no “Grand Prix” – volta a adicionar curtos flashbacks que revelam lições de moral dadas por outros personagens ao longo das mais de duas horas que vieram anteriormente, enfatizando ainda mais o quão emocionalmente significativo é aquele evento para o protagonista.
Outra excelente atitude tomada pelas Wachowski e pela dupla de montadores consiste no recurso de empregar itens ou perfis de personagens cruzando a tela recortados e puxando, com isso, uma cortina que transita de uma sequência para outra. Trata-se de uma ideia que ao mesmo tempo remete à bidimensionalidade dos desenhos animados e fortalece o ritmo de certas passagens – além, é claro, de representar um esforço técnico notável, já que o processo de decupagem efetuado pelas cineastas teve que planejar de antemão como alguns desses recortes ligariam uma cena à outra (e, à medida que o filme avança, mais inquieta vai se tornando a sua abordagem estética; quando chegamos ao terceiro ato, portanto, vemos corpos girando de um lado para o outro e arrastando uma série de planos diferentes para lá e para cá). E há, também, a decisão de brincar com o que está no fundo da sequência – ainda nos minutos iniciais, observamos o pequeno Speed Racer distrair-se em sala de aula e fantasiando uma perseguição, o que é visualmente ilustrado através da distorção completa do que está ao redor do garoto.
Não que este seja um recurso inventado pelas Wachowski, por Barton ou por Staenberg: o visionário Orson Welles, por exemplo, já substituía o fundo de algumas cenas de Cidadão Kane por um flashback que apresentava o que estava sendo narrado pelo personagem em primeiro plano. Mas justiça seja feita: isto definitivamente não é comum num blockbuster como Speed Racer – e quando o herói começa a contar algo que ocorreu em seu passado, o fundo da cena é trocado pelo flashback que se mantém na mente do interlocutor, mas sem que Emile Hirsch desapareça. Por fim, as irmãs Wachowski fazem algo inusitado no clímax da história: quando Speed está prestes a bater de frente com seus dois adversários finais, vemos brevíssimos quadros que trazem o personagem em primeiro plano e, no fundo, a imagem da ação que ele protagoniza. De novo: quantos blockbusters se dispõem a brincar com a linguagem desta forma?
Contando ainda com uma fotografia estilizada que, elaborada por David Tattersall, investe em filtros instigantes e imaginativos como aquele que transforma pétalas de rosas em coraçõezinhos (quando Speed e Trixie se vêem pela primeira vez), Speed Racer é o tipo de experiência que dificilmente se repetirá em Hollywood – e se uns entenderão isso como um alívio, eu enxergo essa realidade como uma lástima, pois o que as irmãs Wachowski fizeram aqui é um experimento esteticamente ambicioso e tematicamente competente.
Trata-se, em suma, de uma adaptação genial: levar Speed Racer aos cinemas é uma decisão ousada e a dupla de cineastas resolveu executá-la seguindo caminhos que podem parecer improváveis, mas que acabam sendo incrivelmente inteligentes. Neste caso, a expressão “fora da casinha” é tão adequada quanto “fora da caixinha”.
Depois de Matrix, as irmãs Wachowski novamente merecem todos os aplausos do mundo.
Speed Racer (Idem, EUA – 2008)
Direção: Lana Wachowski, Lilly Wachowski
Roteiro: Lana Wachowski, Lilly Wachowski, baseado na obra de Tatsuo Yoshida
Elenco: Emile Hirsch, Susan Sarandon, John Goodman, Christina Ricci, Matthew Fox, Kick Gurry, Paulie Litt, Roger Allam
Gênero: Aventura
Duração: 135 min