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Critica | Stranger Things 4 compensa repetição com nova ameaça em seu primeiro volume

Eu sempre tive uma relação de amor e ódio com Stranger Things. Sendo indubitavelmente a produção mais bem sucedida da plataforma de streaming que, mesmo com todos os percalços recentes, ainda é uma das referências máximas na indústria do entretenimento atual, a série sempre me soou como um artifício muito bem marketado: uma obra totalmente capitalizada em cima do sentimento de nostalgia e estética da década de 1980, com sua primeira temporada sendo uma mistura nada sutil entre Os Goonies e E.T. – O Extraterrestre – ainda que, no fim, suficientemente agradável e simpática.

A cada nova temporada dessa história que sempre foi planejada como uma só, os irmãos Matt e Ross Duffer se esforçavam para expandir a mitologia, resultando em um jogo peculiar para alguns cinéfilos (ao menos o meu caso): quais obras e filmes os Duffer estão copian…, digo usando como inspiração. Nenhuma das subsequentes temporadas foi capaz de capturar o brilho da primeira, se contentando na avalanche de referências e a inevitável repetição estrutural de uma criatura extradimensional atacando crianças e adolescentes da cidade de Hawkins.

Depois de um hiato de três anos potencializado pela pandemia do COVID-19, eis que a Netflix enfim traz a gigantesca (primeira parte da) quarta temporada de Stranger Things, apostando em episódios com duração de longa-metragem, múltiplas narrativas e um grupo ainda maior de personagens que já não têm muito mais o que oferecer. Uma receita perfeita para o desastre… Não fosse a ótima ideia que os Duffer têm para seu novo antagonista.

Apesar de todos parecerem adultos em roupas de criança, a nova temporada se passa apenas alguns meses após os eventos explosivos da anterior, que se fechou em uma batalha épica no shopping de Hawkins. Todos os personagens estão separados, com Onze (Millie Bobby Brown) sofrendo sem seus poderes em uma nova escola na Califórnia e se distanciando de seu irmão Will (Noah Schnapp), enquanto sua mãe adotiva Joyce (Winona Ryder) ainda nutre esperanças de encontrar o desaparecido Hopper (David Harbour), que misteriosamente foi parar em uma prisão na Rússia. 

Já na fatídica cidadezinha de Hawkins, o grupo de Mike (Finn Wolfhard), Dustin (Gaten Matarazzo) e Lucas (Caleb McLaughlin) enfrentam novos desafios de adaptação e interesses pessoais, mas todos logos se convergem quando uma série de brutais assassinatos novamente toma conta da cidade, abrindo mais uma vez a porta do enigmático Mundo Invertido.

Lá Vamos nós de Novo

Na superfície, é realmente a mesma coisa de sempre. De cara, já no interminável primeiro episódio, senti o desgaste criativo dos irmãos Duffer a novamente insistir nos mesmos beats e tropes de narrativa das temporadas anteriores, apenas com alguns elementos adicionados: como a maturidade, a questão de bullying e o afastamento que assola parte da adolescência. Essa proposta até começa bem com a inserção de Onze em uma nova escola, onde Brown explora bem a inabilidade social da garota e sua ingenuidade em um campo adolescente mais agressivo, mas a trama é logo convertida em um radical retcon para tentar recuperar seus poderes e, ao longo de várias horas quebradas ao longo de diversos episódios, servir como o dispositivo de trama que explica a origem da grande ameaça da temporada.

Nesse miolo, somente a personagem de Max foi capaz de gerar algum interesse, já que os Duffer realmente desenvolvem um arco complexo e convincente com a mais nova integrante do grupo, já que ela tragicamente perdeu seu irmão Billy na temporada anterior – o que garante um arco sobre luto e ressentimento que é mais forte do que a maioria da tapeçaria dramática da série; e a talentosa Sadie Sink definitivamente se mostra como o grande destaque no campo de atuação da temporada. Vale dizer também que a revelação Maya Hawke, da temporada passada, segue como um dos grandes destaques no campo cômico, especialmente em sua interação com o ótimo Joe Keery.

Já o grupo de crianças principal infelizmente está bem mais deslocado. A decisão narrativa de separá-los e “combiná-los” com personagens diferentes é admirável pela tentativa de inovação, mas acaba removendo boa parte do interesse inicial, já que constantemente me peguei lembrando dos “bons tempos” da primeira temporada em que era possível observar a boa dinâmica do elenco principal. Não ajuda também que a puberdade tenha tomado todos eles pelos cabelos, e a imagem de atores e atrizes claramente mais velhos do que os personagens que estão representando gera um desconfortável efeito Chaves, sendo bem danoso para a naturalidade e dinâmica da série. Mas, ironicamente, não deixa de ser uma homenagem acidental aos anos 80 de forma raiz, onde marmanjos de 30 anos interpretavam adolescentes de 17.

Um vilão dos sonhos

Mas voltando à questão da trama em si… Eu estava pronto para pendurar as chuteiras e arremessar o controle remoto quando era forçado a absurdos narrativos do tipo “personagens encontram traficante de drogas porque descobrem que um cliente de locadora alugava filmes de Cheech & Chong”, até que algo aconteceu! Depois de três temporadas com criaturas digitais genéricas e pouco memoráveis, eis que Stranger Things apresenta sua mais formidável e interessante ameaça na forma de Vecna, uma criatura antropomórfica que atinge os habitantes de Hawkins através de traumas e memórias ruins – manifestando-se como um eficiente retrato da depressão, mas com toques bem claros de Freddy Krueger em seu modus operandi.

E, dessa forma, fiquei encantado em observar que Stranger Things 4 estaria olhando bastante para a franquia A Hora do Pesadelo, mas com um vilão capaz de atacar através de traumas, e não sonhos. Isso permite que os Duffer e toda a equipe técnica criem imagens deslumbrantes e que experimente novos horizontes para a série, bem mais voltada ao terror gráfico e o sobrenatural pesado – até mesmo evocando A Origem em uma sequência musical emocionante envolvendo Max no quarto episódio. Também é ótimo o fato de que Vecna é uma figura mais humanizada em seu físico, tornando-o mais palatável e ameaçador do que os demais antagonistas da série, e à medida em que seu passado é revelado, o interesse na história vai crescendo de forma considerável, trazendo até mesmo o grande Robert Englund (o Freddy Krueger da franquia clássica) em um pequeno papel coadjuvante.

Ainda sobre antagonistas, a situação não é muito empolgante na Rússia, onde residem as maiores e mais descartáveis subtramas de Stranger Things 4. Por mais que David Harbour continue carismático como o sempre divertido Jim Hopper, enchê-lo de núcleos com outros prisioneiros, um guarda vira casaca e inúmeras traições certamente tira o foco da história, que só fica mais absurda quando Joyce e o alívio cômico Murray entram em cena; tem de caratê improvisado até quedas de avião no Alasca. Pelo menos, o núcleo russo culmina em uma brutal batalha gladiatorial envolvendo Hopper, alguns prisioneiros e um Demogorgon desgarrado que garante uma das sequências mais tensas e bem dirigidas da temporada.

Falando em direção e ação, é curioso notar como esta quarta temporada parece bem interessada em combates físicos. Em duas ocasiões diferentes, os experientes diretores Shawn Levy (produtor da série e diretor de Free Guy) e Nimród Antal (do subestimado Predadores) apostam em planos sequência violentos envolvendo um tiroteio dentro de uma casa e outro com um grupo dos jovens espancando brutalmente um enxame de criaturas voadoras. Apesar de nitidamente ser uma criação colada digitalmente através de cortes invisíveis, representa uma amostra considerável de evolução cenográfica da série; que, novamente, garante seu ano mais violento até então.

Sempre amarrado pela trilha sonora vibrante da dupla Kyle Dixon e Michael Stein, este primeiro volume de Stranger Things 4 (o segundo será lançado em julho), é nitidamente embolado e sofre com a abundância de narrativas e personagens espalhados em diferentes cidades e continentes. Felizmente, os Duffer enfim criam um antagonista complexo e original para justificar a existência de uma nova história, e desde já encontro-me inesperadamente curioso para os demais episódios, que concluirão a quarta temporada em julho.

Stranger Things 4 – Vol. 1 (EUA, 2022)

Showrunners: Matt Duffer, Ross Duffer
Direção: Matt Duffer, Ross Duffer, Shawn Levy, Nimród Antal
Roteiro: Matt Duffer, Ross Duffer, Paul Dichter, Curtis Gwinn, Kate Trefry, Caitlin Schneiderhan
Elenco: Millie Bobby Brown, Winona Ryder, Finn Wolfhard, Gaten Matarazzo, Caleb McLaughlin, David Harbour, Maya Hawke, Joe Keery, Natalia Dyer, Sadie Sink, Charlie Heaton, Matthew Modine, Paul Reiser, Eduardo Franco, Robert Englund
Streaming: Netflix
Episódios: 7
Duração: 80 min (aproximadamente)

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Publicado por Lucas Nascimento

Estudante de audiovisual e apaixonado por cinema, usa este como grande professor e sonha em tornar seus sonhos realidade ou pelo menos se divertir na longa estrada da vida. De blockbusters a filmes de arte, aprecia o estilo e o trabalho de cineastas, atores e roteiristas, dos quais Stanley Kubrick e Alfred Hitchcock servem como maiores inspirações. Testemunhem, e nos encontramos em Valhalla.

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