Perito em trazer as reações mais extremadas de amor e ódio de um espectador, Jean-Luc Godard talvez atinja o ápice dessa polarização com Week-End à Francesa, um road movie que poderia ser tão promissor quanto O Demônio das Onze Horas não fosse o radicalismo estético do diretor. É bastante evidente que ao longo de toda sua filmografia, Godard não dá a mínima para a narrativa, a fragmentando e diluindo sempre que possível.
Enquanto o gênero do road movie é convidativo para esse estilo caótico de Godard criar uma boa história, o diretor simplesmente consegue quebrar até mesmo a nossa percepção sobre o gênero. Week-End é apenas caos, anarquia e radicalismo. E Godard nos engana muito bem com os primeiros minutos de exibição.
Uma Viagem Alucinante
A desculpa narrativa para Godard conseguir vender uma sinopse é bastante simples e interessante sendo capaz de render uma boa história, caso ele estivesse com vontade de conta-la. Acompanhamos a jornada do casal Durand, Corinne (Mireille Darc) e Rolan (Jean Yanne), interessados em matar o pai de Corinne para conseguirem uma bolada milionária do seguro de vida. Sabendo que o velho cairá em uma armadilha armada há um tempo, o casal parte para Oinville na esperança de conquistar o dinheiro. O problema é que essa jornada será um verdadeiro terror já que a civilização parece ruir conforme viajam.
Com a aproximação das ideias de Bertolt Brecht sobre arte e cultura como muito explicitado em A Chinesa, Godard finalmente tem a desculpa perfeita para fazer seu filme manifesto totalmente desgarrado da narrativa. Se antes o intuito era subverte-la com a fragmentação, Godard agora quer destruí-la por completo em prol de mandar recados políticos e ideológicos para sua audiência.
Mas destruir uma farsa em questão de poucos minutos é burrice e o diretor sabe muito bem disso. Primeiro, oferece o plano criminoso, o objetivo. Depois, traz um conto erótico repleto de canastrice para suprir as demandas sobre sexo que as narrativas convencionais sempre flertam. Então temos a jornada, inicialmente cômica e fascinante, estabelecendo os protagonistas como dois fanfarrões detestáveis ignorantes que buscam a riqueza fugaz da burguesia.
Como são aproveitadores dispostos a tudo, atravessam o maior engarrafamento da História do Cinema na contramão. Em um travelling lateral que dura praticamente quatro minutos intermináveis, repletos de efeitos sonoros de buzinas irritantes, Godard mostra toda a indiferença dos motoristas e passageiros com a causa do engarrafamento, xingando à exaustão os aproveitadores que cortam o trânsito. É aqui que Godard passa a trabalhar com o caos mostrando diversos acidentes de veículos ao longo de 2/3 da obra.
Depois, praticamente não há mais narrativa, mas sim diversos encontros aleatórios que o casal tem com figuras históricas, divindades e um pianista (sendo esse o melhor trecho dessas bizarrices). Godard utiliza diversos intertítulos que ele julga engraçados para brincar e irritar o espectador, além de já se repetir com as quebras de quarta parede evidenciando que tudo aquilo retratado é um filme e que os personagens têm consciência de serem fictícios. Assim como muita coisa na filmografia dele, é um conceito rico e interessante, mas apenas alfinetado e nunca explorado com mais interesse.
Godard simplesmente é um refém de suas próprias ideias das quais geralmente muitas são ruins e que sempre retiram o espaço para as boas respirarem e agradarem o espectador. Na invenção da linguagem, Godard chega até mesmo a brincar com a progressão dos fotogramas físicos do filme, os descarrilando para ilustrar um acidente automobilístico. Novamente, uma boa ideia e, talvez, uma das últimas que prestem apresentadas em Week-End.
A partir do segundo ato, Godard simplesmente decide desmontar a farsa do restante da narrativa que restava. Através de dois lixeiros, um negro e um árabe, que o casal pega carona, o diretor finalmente traz o seu discurso ideológico à tona com monólogos filosóficos que problematizam a história, a escravidão e as guerras da Argélia e do Vietnã (como de costume), além de outras ideias expostas ao longo de vinte minutos nos quais os personagens ficam comendo um sanduíche olhando diretamente à câmera enquanto o parceiro faz o discurso que ele mesmo daria se não estivesse tão ocupado para tal.
Apesar de ser um truque interessante e da subversão de papéis ao colocar dois lixeiros oprimidos como verdadeiros intelectuais sedentos por vingança contra os imperialistas burgueses brancos, é simplesmente um exercício vaidoso de Godard que novamente esquece que há uma plateia cada vez menos interessada sobre suas divagações ideológicas insuportáveis. Pelo menos para mim, mas isso não quer dizer que você não vá encontrar algo fascinante nos pensamentos do diretor.
Depois disso, a sociedade aparentemente é implodida e logo não acompanhamos mais os protagonistas, mas um grupo de guerrilheiros que vivem nas florestas praticando canibalismo misturado com a suculência da carne de outros animais. Para fazer desse ato seu verdadeiro “Magnum opus”, o diretor cruza a linha da estupidez ao filmar animais sendo assassinados com único propósito de “agregar” valor à mensagem surreal do filme. Um porco e uma galinha perdem a vida e são imortalizados pela prepotência de Godard.
Beirando o ridículo e atingindo o condenável repulsivo, é fácil querer desistir de imediato sobre a obra. Essa é a primeira vez que Godard parece lembrar que há um espectador para seu filme e logo trata de encerrar o filme com uma ironia final “genial” de humor negro sobre as relações humanas quando tudo está perdido envolvendo o casal que inicia a narrativa.
Ao menos, durante boa parte do filme, Godard se preocupa em fazer seu ótimo trabalho com as cores vibrantes do longa, conseguindo chocar quando usa um sangue bastante realista para ilustrar seu sonho masturbatório sobre caos, anarquia e sociedade.
Fim de Semana, Fim de Mundo
Tratando seus espectadores como meros burgueses imbecis que merecem o pior dos tratamentos a partir do choque de uma sátira irritante, Godard consegue ser único e original. Ele realmente atravessa todos os limites para mostrar a decadência humana com críticas ao materialismo e à civilização ocidental. O problema é a prepotência de querer que alguém encare suas mensagens políticas à sério quando se esforça tanto para ser irritante, misógino, porco e inútil com diversas passagens repulsivas em Week-End.
Não é questão de moralismo, mas de bom-senso. Um filme caótico medíocre sobre o caos realmente deve ter sido encontrado no lixo, como o próprio Godard satiriza ao apresentar seu cinema marginal repleto de podridão. Como o pianista do próprio filme comenta: “Há dois tipos de música: a que escutamos e a que não escutamos.”. O mesmo deve se aplicar a filmes e temos aqui o exemplo perfeito para o longa que não vemos, apesar das sórdidas tentativas de um diretor histérico e sedento para chamar a nossa atenção.
Week-End à Francesa (Week End, França – 1967)
Direção: Jean-Luc Godard
Roteiro: Jean-Luc Godard
Elenco: Mireille Darc, Jean Yanne, Jean-Pierre Léaud, Paul Gégauff
Gênero: Comédia, Drama
Duração: 105 minutos