Os irmãos Grimm são considerados os pais dos contos de fadas – também é incorreto classificar seus textos como meros contos de fadas. Apesar da aura sombria de muitas de suas histórias, os Grimm foram os pioneiros em almejar as crianças como seu público-alvo. Provas disso são as releituras de alguns contos extremamente perturbadores de Charles Perrault – autor de uma das versões mais famosas de “Cinderella” e “A Bela Adormecida”. Seus inúmeros contos ganharam reconhecimento mundial e até hoje são heranças e lições de vida que muitos pais passam a seus filhos e que certamente passarão para a próxima geração. Entre “João e Maria”, “Os Músicos de Bremen” e “Rapunzel”, um dos contos dos Grimm ganhou muito destaque no séc. XX. Culpa de um certo rapaz chamado Walt Disney ao adaptar o conto em uma das animações mais marcantes de toda a História do Cinema.
Hoje, 75 anos depois de “Branca de Neve e os Sete Anões” estrear em 1937, o conto ganha duas releituras – “Espelho, Espelho Meu” e “Branca de Neve e o Caçador”. Por ora, vamos nos contentar com a adaptação que traz Julia Roberts como a Rainha.
Branca de Neve vivia em um reino mágico e alegre governado pelo Rei, seu pai. Este, terrivelmente abalado pela perda de sua amada esposa, reencontraria a sorte e o amor em tempos. Ou não. Encantado pela inebriante beleza de uma jovem ruiva, o Rei não hesita em chamá-la para governar ao seu lado. A jovem, astuta e traiçoeira, aceita o convite e se casa com o pai de Branca de Neve. Assim, tem início o pior pesadelo da jovem princesa. Almejando a totalidade do poder do reino, a Rainha Má enfeitiça seu marido e lhe ordena que vá para a Floresta Negra – esta, habitada por um terrível monstro. Foi a última vez que se ouviu falar do Rei. E o reino caiu em desgraça.
Muitos anos depois, Branca completa seus dezoito anos e fica ainda mais bela que sua cruel madrasta que começa a sentir o preço da velhice. Doente e completamente obcecada pela própria beleza, a Rainha dobrará seus esforços para destruir Branca de Neve de uma vez por todas. Entretanto, ela não contava que um jovem príncipe rico fosse bater a porta de seu castelo. A Rainha encontra a oportunidade de salvar o reino da iminente falência, mas o príncipe não está interessado em se casar com ela, mas sim em conhecer Branca de Neve.
Ensandecida pela vaidade e orgulho, a Rainha comanda que matem a princesa na Floresta Negra, mas novamente nada acontece como planejado. Branca escapa e encontra sete corajosos anões que oferecem abrigo para a mais bela jovem de todas. Com isso, uma nova e forte amizade será formada culminando o pior pesadelo da Rainha.
Texto, texto meu…
O roteiro escrito por Melissa Wallack e Jason Keller nada tem a ver com o livro homônimo de Gregory Maguire lançado em 2003 em que, em sua narrativa, Branca de Neve acaba se encontrando com a doentia família Borgia. A releitura toma como inspiração o conto dos irmãos Grimm.
Em um filme como este não se deve esperar muitos aspectos bons, porém, para a minha surpresa, elas chegam logo nos segundos iniciais de projeção. O diretor Tarsem Singh encontra uma das mais interessantes homenagens as origens do Cinema ao utilizar o zootrópio – um instrumento estroboscópico datado de 1834 que cria a ilusão de movimento a partir de imagens paradas (principal característica do cinema, não?) – para dar início a uma animação extremamente estilizada e bela a fim de introduzir o público à diegese – “realidade” da ficção de um determinado espaço fílmico, do filme. O mais inteligente desta sacada é imaginar que os próprios irmãos Grimm devem ter utilizado o zootrópio para difundir suas histórias na Alemanha de 1800.
Claro que nesta introdução os roteiristas não resolveram quebrar a cabeça e encaixaram a clássica narração em off para a alegria dos saudosistas dos filmes que começam com as mesmas palavras dos livros de contos de fadas fazem uso – “Once upon a time…”. Bom, a sensação de acolhimento para com a história do filme é eficiente – remete aos tempos de infância. Mais uma vez o diretor acerta, mas não ganha pontos de originalidade, já que esse recurso está mais do que ultrapassado.
Entretanto, com um começo tão repentinamente legal, não demora a aparecer os primeiros defeitos hediondos do longa. O roteiro constantemente oscila entre altos e baixos, drasticamente baixos. Logo na apresentação do Príncipe Alcott ao público – interpretado competentemente por Armie Hammer, é conhecida a primeira inconsistência do texto de Wallack e Keller. Na cena, Alcott e seu parceiro, Charles Renbock, estão explorando a Floresta Negra. Charles insiste para que os dois saiam daquele lugar perigoso afirmando que há um monstro por perto. O príncipe sempre rebate dizendo que não acredita em tal asneiras. Depois de alguns eventos e misteriosos barulhos, o príncipe avista uns seres e logo os chama de gigantes. Para quem não acredita em monstros, acreditar em gigantes faz todo o sentido, não é?
Mas espere! Os problemas desta mesma cena estão longe de acabar. Nela, inicia-se a primeira batalha importante do filme. Ali, tive o desprazer de conhecer a pior montagem que já tinha visto em apenas uma sequência. Completamente amadora e despreparada, a escolha das imagens e o tempo de exibição em tela revelam uma péssima abordagem do diretor. Boa parte do tempo, o espectador encontra planos sujos e poluídos totalmente desprovidos de significado já que nem a porcaria da ação eles conseguem mostrar. Fora isso, o ritmo do intercâmbio entre uma imagem para outra é irregular chegando até a superar o frenesi epilético de imagens pipoca de Mr. Michael Bay – por exemplo, qualquer cena dos filmes de autoria de Michael Bay. Em um período de apenas 1 minuto, o diretor faz 62 cortes na mesma cena. Isso dá uma média de um plano por segundo, mas lembrem-se do que escrevi logo acima. A distribuição dessas imagens é completamente irregular. A cena só consegue ser salva do desprezo total graças ao departamento de arte e de sua criatividade com as famosas pernas de pau circenses. Felizmente, o diretor consegue corrigir essas falhas de montagem nas outras cenas de ação.
Na verdade, boa parte do filme é salva pelo departamento de arte. Esses sim merecem total reconhecimento, pois em nenhum momento cometem um deslize que beira o ridículo. O filme conta com cenários bem trabalhados que metaforizam, junto da fotografia competente de Brendan Galvin, o psicológico de alguns personagens. Não digo que são metáforas inteligentíssimas, mas já ganham pontos apenas por existirem. Não são todos os diretores que se preocupam em estimular o espectador.
Repare que os cenários que constroem o palácio da Rainha são, em sua maioria, majestosos e extravagantes, tecendo um paralelo com a vaidade doentia da personagem. A modificação da arquitetura dos cenários, de sua decoração e das cores da iluminação quando a inteligente função do Espelho Mágico é revelada dão uma amplitude maior para o perfil da persona da Rainha. Fora isso, Galvin não economiza em sua paleta a cor branca por motivos óbvios.
O figurino de Eiko Ishioka – o filme é dedicado a ela, também faz metáforas visuais no baile a fantasia que acontece em determinado momento do filme. Citando os exemplos mais óbvios, a Rainha veste uma fantasia que remete ao pavão, um animal pomposo, extravagante e violento quando se sente ameaçado. Já Branca de Neve se fantasia de cisne branco representando a pureza virginal, a delicadeza e a bondade da moça. O príncipe Alcott está fantasiado de lebre – animal veloz que age por impulsos, certamente uma metáfora mais complexa. Claro que nesse caso, o figurino beira o ridículo e o roteiro não perde a oportunidade de fazer uma piada. Aliás, uma virtude rara é a de fazer piadas dentro da diegese do próprio filme. Concluindo o pensamento sobre o figurino, Ishioka geralmente trabalha com cores muito vivas e formas exageradas. Além disso, cria uma concepção interessante sobre o vestido clássico de Branca de Neve. Sim, aquele apresentado na animação de 1937.
Nessa parte do texto, me sinto obrigado em comentar novamente sobre o roteiro. Ele tem as três virtudes do fracasso de qualquer filme: é raso, previsível e clichê. Os roteiristas tentam ser originais a todo o momento, porém nunca a sensação de “já vi isso antes” abandona a cabeça do espectador. Encare isto como quiser. Depois de ter visto inúmeros filmes, quase nunca saio surpreendido do cinema e não me incomodo mais com isso.
Keller e Wallack conseguem criar algumas interpretações interessantes e atuais, mas como eu escrevi antes, nada disto é inédito. Arrisco-me a dizer que a originalidade vem com a interpretação da função do Espelho e da entidade mágica que vive nele. O conflito de repugnância do Espelho em relação a Rainha é muito interessante e com certeza deveria ter sido mais explorado. As atualidades concentram-se em críticas e alguns conflitos bem pífios. Os preconceitos contra os anões, que depois acabam, consequentemente marginalizados é o melhor exemplo disto. Mas como se trata de um filme que é destinado quase que integralmente as crianças, não vejo problemas em encaixar algumas lições de moral que realmente valem a pena serem mostradas pela enésima vez.
Também temos a questão monetária e o perigo da falência do reino que é apenas citada, mas nunca de fato comprovada. As soluções são simples. Imaginem: temos um reino pobre? Ótimo, então mostre alguns camponeses passando frio e mendigando comida para algum personagem da nobreza que resolve visitar o vilarejo local. Bom, muito bom… Agora adicione uma fotografia com tons sombrios, frios e sujos. Peça ao departamento de arte para criar alguns trapos para cobrir esses camponeses (aliás, os figurinos dos camponeses são inspirados em alguns quadros do Van Gogh, como este aqui) e deixar o cenário da forma mais horripilante que conseguir. Perfeito! Perfeito? Não! Nada disto adianta quando seus roteiristas decidem cortar um dos pilares que sustentam um conflito primordial da narrativa. Isso acontece quando a Rainha resolve cobrar uns impostos aos personagens pobres que até então não possuíam um vintém para comer – o pior de tudo é que ela de fato consegue um saco repleto de moedas de ouro.
Entretanto, esta enorme contradição criada pelos roteiristas tem uma função vital para a evolução do enredo. Mas este foi um preço alto demais. Não custava quebrar um pouco mais a cabeça e imaginar uma solução mais plausível e inteligente. Mesmo com essas falhas um tanto estratosféricas do roteiro, ele tem uma história divertida. Muito disto vem das inúmeras gags muito bem encaixadas nas cenas do filme. O mais interessante e que essas piadinhas contém certo apelo sexual – claramente para divertir os pais dos pequenos também.
Para fechar de vez a análise do roteiro, comento sobre os sete anões. Assim como na animação, os anões tem grande importância na história. São eles os responsáveis pela catarse definitiva da Branca de Neve, além da transformação psicológica e física que a personagem sofre ao decorrer do filme. Os roteiristas tiveram o bom senso de mudar as características marcantes dos anões. Em vez de Zangado, Feliz, Dunga, Soneca, Atchim, Mestre e Dengoso, temos Napoleão, Half Pint, Açougueiro, Grubb, Grimm, Risada e Lobo. Todo o trabalho de caracterização se deve muito a atuação interessante de seus respectivos atores, além do trabalho primoroso do figurino – muitas vezes o carisma e a comicidade de Jordan Prentice, Mark Povinelli, Joe Gnoffo, Danny Woodburn, Sebastian Saraceno, Martin Klebba e Ronald Lee Clark que salvam a cena.
Aliás, a verdadeira diversão do filme se encontra nas boas atuações e na fantástica Julia Roberts – ela simplesmente rouba a cena todas as vezes. Roberts reformulou totalmente a Rainha Má. Diga adeus àquela vilã pálida, de mau gosto, enfadonha, chata e monótona da animação da Disney. A antagonista de Julia Roberts ficou simplesmente genial. A atriz cria uma vilã que possui um semblante que remete a Rainha de Copas de Helena Boham Carter em “Alice no País das Maravilhas”. Roberts não está caricata em excesso, consegue ser detestável na medida certa e diverte o espectador boa parte das vezes. Ela faz emanar vida de uma personagem que sempre herdou os ares melancólicos de incontáveis adaptações. As feições da atriz transmitem com clareza do que se trata o perfil psicológico de sua personagem. Dessa vez a Rainha Má é um misto de criança adulta completamente obcecada por sua beleza. Fora isso, é possível retirar uma interpretação interessante sobre a relação da personagem com a entidade do Espelho. Ali, é possível depreender que há sim um complexo de inferioridade da Rainha graças as réplicas ríspidas do Espelho. Enfim, em suma, posso afirmar que Roberts faz valer o preço do ingresso com sua atuação ácida, sarcástica e irônica.
Também não dá para reclamar de Lily Collins — ela foi selecionada para o papel por ser parecida com a diva Audrey Hepburn. A moça entrega uma concepção não muito diferente no início, mas após a metade do filme, Collins torna sua Branca de Neve uma personagem cheia de carisma. No início, a atriz usa movimentos suaves e leves portando-se como uma verdadeira princesa de contos de fadas. Com sua transformação psicológica, Collins cria uma Branca de Neve menos passiva sobre o seu destino. Dessa vez a princesa não precisa de príncipes para se virar. Claro que o conceito também não é novidade e já está no senso comum de vários roteiristas que adaptam esses contos. “Branca de Neve e o Caçador” trará o melhor exemplo desta nova princesa do séc. XXI. Kristen Stewart fará Branca de Neve ser a princesa mais Maria Macho de todas. É interessante explicar também o porquê desta revolução conceitual da mulher em obras ficcionais. Com o feminismo explodindo e tomando mais força ao redor do mundo, a clássica situação da damsel in distress será cada vez menos comum em filmes, games, livros, séries, novelas etc. Também merece destaque o ótimo Nathan Lane que interpreta Brighton, o “escravo” da Rainha. Sean Bean, o eterno Eddard Stark de “Game of Thrones”, completa o elenco.
Enfim, para concluir o estudo sobre o filme, nada mais conveniente do que argumentar mais a fundo sobre a direção de Tarsem Singh. Ele já dirigiu outro grande filme que chamou a atenção do mundo pelo seu visual único construído com a melhor computação gráfica existente. “Imortais” marcou a volta de Singh após um intervalo de cinco anos longe da poltrona de diretor. Reconheço que não foi um retorno perfeito, já que o filme sofre com seu roteiro insosso e suas atuações medíocres.
SIngh deixa sua identidade no filme e algo a mais. Mais uma vez, o espectador encontrará um visual belíssimo auxiliado pela montagem criativa em algumas mudanças de cenas.
Tarsem parece ser um diretor de extremos. A violência em “Imortais” era algo extremamente brutal. Já em “Mirror, Mirror”, o diretor infantiliza a trama sempre que possível. Isso acontece muitas vezes na sonoplastia. O uso de barulhinhos toscos, onomatopéias, grunhidos abobados é freqüente. Pode-se dizer que temos um trabalho sonoro circense – o que é muito raro de acontecer no cinema contemporâneo. Se me recordo bem, os filmes clássicos dos Trapalhões utilizavam abusivamente o recurso.
O diretor também usa os efeitos visuais para infantilizar a cena duas vezes durante o filme. A primeira acontece quando ele insere um rosto em um capanga sem face da Rainha – detalhe que esses bichos já emitiam sons que beiram o ridículo. A outra se da na concepção visual interessante do monstro que assombra a Floresta. Ele também sabe criar piadas boas para os adultos, mas não consegue se livrar do carma da comédia escatológica mesmo que esta tenha sido usada de maneira criativa em uma das cenas mais divertidas do filme. Também há uma relação psicológica importante no posicionamento do palácio em relação com o vilarejo. Repare que o castelo no topo de uma encosta distante em que é possível observar todo o vilarejo. Isso deixa subentendido a opressão, a vigilância e intolerância que a Rainha tem para com os aldeões.
Tarsem acerta ao fazer uma Branca de Neve que não é uma completa imbecil como aquela imortalizada por Disney em 1937. Isso é evidente no fim do longa quando a lendária maçã aparece. Percebendo o tom extremamente sombrio da cena, o diretor não faz cerimônias para deixar a atmosfera mais leve em questão de segundos. É ai que se dá a segunda característica marcante de sua direção. A primeira pista está na arquitetura externa do palácio. Repare como ela remete as formas arquitetônicas asiáticas, principalmente a indiana se tomar como referência o Taj Mahal. As torres do palácio emanam arte asiática, seja nos finiais, nos amruds ou nos tambores.
Outras influências asiáticas aparecem ocasionalmente nos figurinos. Toda essa influência oriental vem a tona com a cena final. O filme acaba com uma dancinha a estilo “Jai-Ho” de “Quem quer ser um Milionário?”. A canção da cena é igualmente viciante e claramente inspirada nas músicas indianas. Claro que foi o gênio Alan Menken que a compôs – ele é um compositor extremamente famoso da Disney. Já ganhou oito Oscars. Mas por que inserir tantas referências orientais, principalmente indianas, em diversos aspectos do filme e ainda terminar a obra com a influência mais do que gritante do cinema de Bollywood? Ora, isso é simples de responder. Tarsem Singh é indiano.
A história ainda não acabou…
Se, por algum motivo, você está explodindo de ansiedade para assistir mais filmes sobre o conto da Branca de Neve, basta aguardar até junho. A estréia de “Branca de Neve e o Caçador” terá uma crítica confirmada aqui no site.
“Espelho, Espelho Meu” é um filme divertido. Conta com inúmeros pecados, falhas gritantes de roteiro, sonoplastia demasiadamente idiota, montagem mal realizada em algumas cenas e um diretor que ainda está aprendendo a reger sua orquestra. Entretanto, as atuações de qualidade, o departamento de arte competente, a estética fílmica única de Tarsem Singh e, talvez, a musiquinha alegre no final do filme fazem valer o ingresso.