O cinema de Jean-Luc Godard é complicado. Não é fácil de gostar e muito fácil de odiar. Os motivos são inúmeros, mas muita gente se sente incomodada pela arrogância ou pedantismo cinematográfico de suas obras geralmente tão irritantes como fascinantes. Saindo de seu enorme sucesso revolucionário, Acossado, Godard já punha sua mente brilhante para cunhar um novo clássico da Nouvelle Vague, movimento que em 1961 já estava abalando as fundações do cinema convencional.
Seu segundo longa-metragem também marcaria a primeira vez que Godard iria escrever uma história original para sua obra. Já começando pelo mais difícil, o jovem cineasta busca trazer uma comédia romântica com Uma Mulher é Uma Mulher enquanto continua com seus experimentos insanos com recursos cinematográficos na busca de criar nova linguagem cinematográfica ou novos usos para o que já existia.
A Mulher de Vermelho
Godard foca sua comédia em Angela (Anna Karina, uma das musas do diretor), uma artista que trabalha em uma boate de strip-tease. Obcecada em ter um filho com seu namorado Alfred (Jean-Paul Belmondo), Angela tenta fazer de tudo para convencê-lo, apesar dele desgostar da ideia. Em meio a uma briga, Alfred a provoca, sugerindo que ela engravidasse do seu melhor amigo, Émile (Jean-Claude Brialy). O surpreendendo, Angela aceita a ideia para o terror de seu namorado.
Esse é o grosso narrativo de Uma Mulher é Uma Mulher. Godard dilui essa ideia ao longo de todo o filme, fazendo diversos desvios para encaixar seus experimentalismos na direção, afinal, aqui, a narrativa é o que menos importa. É bastante nítido que ele deseja parodiar os cômicos romances americanos formais de diretores como Billy Wilder, já que existem diversos clichês de figurino e atitudes condizentes com as obras consagradas do cinema americano.
Não obstante, Godard subverte tudo que a narrativa clássica pretende entregar: não desenvolve seus personagens e apresenta conflitos de modo desleixado em introduções e desfechos que se aproximam do incompreensível ao tornar caótica a relação de seus dois personagens principais. O mesmo se dá com diálogos, alguns bastante criativos, enquanto outros visam trazer reviravoltas absurdas nos pedidos de Angela para Émile.
O único momento que Godard assume um modo mais “clássico” para contar sua história é concentrado justamente no maior dos clichês de uma comédia romântica: o dilema da traição. O desfecho disso é bastante inteligente, conferindo mais personalidade para os personagens tão excêntricos que se aproximam do surreal. É um momento bastante feliz de subversão narrativa que evoca o espírito irreverente que o cineasta mantém em toda sua carreira, conferindo um toque ainda mais pessoal a Uma Mulher é Uma Mulher do que em Acossado, cujo roteiro é de Truffaut.
Para iludir o espectador sobre a enorme enrolação de diversas cenas redundantes, Godard se comporta como um histérico com a montagem e uso da trilha musical em seu filme. A abordagem do diretor agora é muito mais relaxada do que a vista em Acossado. A câmera continua tão móvel quanto, se valorizando, por vezes, de algumas panorâmicas intensas para construir uma tensão enorme pelo uso absurdo das objetivas grandes angulares que oferecem certa ilusão de maior espaço físico no quarto de Angela – Godard ainda vai além e introduz textos sobre as imagens para contextualizar o sentimento dos personagens.
Aliás, existe muita autoconsciência de que o projeto se trata apenas de mero experimentalismo cinematográfico. Inventor do jump cut, o diretor vai além e passa a usar a montagem criada com elipses ainda mais intensas, deslocando os personagens pelo espaço e pelo tempo, enquanto mantém o diálogo como se nada estivesse acontecendo. Basicamente, é como se o espectador testemunhasse essas pessoas descobrindo os poderes do rápido teleporte.
Há outras diversas brincadeiras envolvendo o cenário e alguns utensílios para reinventar a forma de comunicação com o espectador através puramente do visual. A maioria das piadas do filme se concentram nessa forma de comédia visual, além do surrealismo conferido pela montagem histérica. Mas o mais interessante em Uma Mulher é Uma Mulher, obviamente, se trata do uso da trilha musical.
Godard simplesmente faz o impossível e o possível com a música de Michel Legrand. A trilha é pensada para funcionar em sincronia plena com a encenação evocando uma atmosfera explícita de um filme musical fora dos padrões. Isso ocorre por conta de Godard sempre interromper as composições seja com diferentes planos, com jump cuts sonoros ou através da própria movimentação dos atores. O diretor também brinca intensamente com o Mickey mousing, usando músicas para acompanhar a encenação ou enfatizar algum gesto.
Tanto que muitas vezes temos o uso das composições como fortes ilustrações dos sentimentos e da alteração súbita de estados de espírito que os personagens demonstram a todo momento. No visual desleixado da obra, Godard consegue transmitir também um bom clichê ao usar tão intensamente o vermelho nos figurinos de Angela e nos objetos que cercam a mulher, evocando uma paixão intensa tanto para os personagens, quanto para o espectador.
Filme ou Experimento?
Godard está simplesmente histérico com Uma Mulher é Uma Mulher. O impulso de ego que recebeu com Acossado é sentido em todas as cenas dessa pretensa comédia na qual é difícil dar um riso ou simpatizar pelos personagens, já que tudo é tão exagerado e fora de tom. Porém, é preciso admitir que essa excentricidade do diretor é, de certo modo, benéfica. O cuidado extremo com o uso do som e da música, além da audaciosa montagem, conferem um charme único para Uma Mulher é Uma Mulher.
A invenção absurda de novas gramáticas cinematográficas e da completa falta de medo de Godard em tomar riscos e apresentar suas ideias absurdas em tela ainda é capaz de inspirar diversos artistas até hoje. Justamente por isso, mesmo que seja um filme tão repleto de cacofonias, qualquer cinéfilo tem a obrigação de conferir essa simpática e irritante comédia.
Uma Mulher é Uma Mulher (Une femme est une femme, França – 1961)
Direção: Jean-Luc Godard
Roteiro: Jean-Luc Godard
Elenco: Anna Karina, Jean-Claude Brialy, Jean-Paul Belmondo
Gênero: Comédia, Romance
Duração: 85 minutos