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Análise | God of War e a necessidade de ser melhor

Esta análise possui spoilers leves – Texto originalmente publicado em 22 de abril de 2018.

Como Kratos cresceu. Quem diria que a franquia God of War teria marcado tanto da minha vida como marcou. Apesar de eu ter sido iniciado já no hype para o lançamento do espetacular God of War II, não imaginava que acabaria me apaixonando completamente por essa joia que transformou o hack n’ slash em algo tão único que nenhum outro game conseguiu superar.

Sendo um jogo que não só inspirou milhares pela cultura da mitologia grega, além de criar um personagem icônico, apesar de relativamente superficial, acabou transformando a marca Playstation em uma das maiores forças do mercado, afinal em 2005 a Sony não tinha tantos exclusivos de peso como possui hoje. Virando quase uma franquia anual entre diversos lançamentos para portáteis e consoles de mesa, dar adeus a God of War em 2010 praticamente não era um desejo de muitos, mas estava claro que ali devia ser o final da franquia.

Porém, escutando o clamor impensado dos fãs e também visando o lucro estratosférico que a franquia sempre ofereceu a cada iteração, a Sony lançou em 2013 o malquisto e medíocre God of War: Ascension que trazia mais um capítulo da infindável série de prequelas sobre Kratos. O dessabor foi tanto que ali parecia, enfim, o funeral pleno da franquia.

Até que, de surpresa, na história apresentação da Playstation na E3 de 2016, tivemos o anúncio deste tão aguardado retorno. God of War finalmente chegou para mudar o jogo. Literalmente. Em uma geração tão egoístas para jogos lineares single player, a Santa Monica Studio chega com tudo para mostrar que ainda é possível sim ter total comprometimento artístico sem menosprezar o potencial financeiro de jogo. Óbvio que ser um soft reboot de uma das franquias mais famosas da História colabora para isso, mas é nítido que estamos diante de um jogo que resgata e atualiza diversos dos elementos capazes de fazer meninos e meninas se apaixonarem instantaneamente por videogames.

Tragédia Nórdica

Desde o momento da revelação deste jogo, ficou claro que teríamos um foco narrativo muito maior do que já tínhamos visto em toda a franquia. Afinal, temos um salto temporal que traz novidades e muitas perguntas, já que Kratos agora vive sob domínio dos deuses nórdicos, teve outra esposa e, consequentemente, gerou um filho, Atreus. Muito embora Cory Barlog, diretor do game, e seus parceiros roteiristas não se preocupem em responder como e quando Kratos chegou ali e decidiu enterrar seu passado, mas sim sobre toda a dinâmica familiar do trágico anti-herói.

Aliás, esse é um dos alicerces que o jogo pretende trabalhar – e com muita eficiência: como tornar um crápula doentio como Kratos que assassinou milhares em sua busca insana por vingança em um verdadeiro herói? A resposta pesa e existe em God of War desde o primeiro minuto de jogatina. Kratos, já mais velho, sábio e controlado, terá que realizar o último desejo de sua falecida esposa: jogar suas cinzas no cume mais alto dos Reinos. Com Atreus, seu único filho desse relacionamento, o deus da guerra terá que enfrentar desafios muito maiores do que os imaginados para cumprir sua amável promessa. Entretanto, conforme a violência se intensifica, o protagonista terá que encontrar maneiras de continuar escondendo sua verdadeira natureza e seu passado do próprio filho.

Com uma história já poderosa desde o início, além do conceito genial da câmera verdadeiramente cinematográfica que nunca é interrompida do início ao fim do game, fora o desempenho dos atores e na direção de voz, é difícil não acreditar que God of War não seja um filme jogável. Apesar dessa forte ilusão e até mesmo com a inclusão de um modo totalmente imersivo disponível nas configurações, ainda estamos falando de um jogo.

Em geral, a narrativa é facilmente a melhor que a franquia já trouxe até agora, pois temos um mundo totalmente novo no qual Kratos é um peixe fora d’água. Através de Atreus, que tinha muito contato com sua mãe nórdica, o jogador é apresentado para uma infinidade de informações relevantes sobre esta nova mitologia enquanto o lado mais “humano” é trabalhado em uma relação cheia de atritos e ressentimento entre e Kratos.

Tanto que nosso protagonista sempre chama Atreus de “garoto” e nunca de “filho”. Mas apesar dessa personalidade difícil e fria de Kratos, temos momentos cruciais e até mesmo emocionantes que mostram o amor que ele nutre pelo filho tornando todo o conflito interno do personagem bastante crível e até mesmo fácil de se identificar mesmo que haja esse aspecto fantasioso sobre o “ser ou não ser”, afinal ele usa uma máscara que, inevitavelmente, afasta Atreus.

Muitos temiam, inclusive eu, que a adição de um sidekick, ainda mais de um pré-adolescente, tanto na narrativa quanto no gameplay seria um belo tiro no pé. Mas, felizmente, é sempre bom estar errado, pois nunca mais vou conseguir futuros jogos God of War sem esse sistema formidável. Atreus, por si, é um personagem muito bem escrito por ser bastante distinto de Kratos. Verborrágico, pacífico e convidativo, Atreus interage com outros NPCs tão interessantes quanto como a Bruxa da Floresta, Sindri, Brok e o genial Mimir, além de trazer uma boa dose de humor para a narrativa.

Felizmente, apesar da história ser imensa, os roteiristas sabem adicionar ápices dramáticos como se fossem verdadeiros clímaces para os atos, testando os personagens no limite e imediatamente trazendo alterações substanciais que afetam até mesmo o gameplay – repare na evolução gradual de Atreus no combate até se tornar uma parte vital da mecânica.

Enquanto o lado protagonista é extremamente bem realizando contando com um rol de personagens marcantes, o mesmo não pode ser dito para os antagonistas da narrativa. Assim como o jogo inicial da franquia, não temos a presença maciça do rol dos principais deuses na história. Aliás, basicamente, apenas temos a presença do Estranho cujo nome não cabe revelar nesta análise. Apesar da interação superficial e repetitiva ao longo do tempo e também pela personalidade bem superficial, a história deste vilão acaba possuindo similaridades com a própria jornada passada de Kratos, conseguindo gerar um belo significado de vermos o protagonista lutar, simbolicamente, contra o seu eu do passado, repleto de ódio e cego pela vingança.

A presença dos vilões, então, apesar de fraca, ajuda significativamente para explorar nossos protagonistas a fundo – incluindo Atreus. É algo que possibilita uma edificação plena para eles justificando um foco menor nessa relação de pai e filho e seus dramas em um inevitável novo jogo. Aqui, isso de certa forma é compensado com revelações muito interessantes dessa versão que os roteiristas trazem sobre a mitologia nórdica, trazendo o pior da personalidade dos deuses através de fatos sangrentos ocorridos no passado.

Uma Nova Era de Guerra

Superado esse ponto vital sobre a narrativa, é chegada a hora de comentar sobre a reforma completa e muito bem-vinda dos consagrado gameplay da franquia. Nessa roupagem de RPG, além de termos uma câmera com um campo de visão bastante restrito que com certeza irá te prejudicar em alguns dos combates mais caóticos, há muito o que se admirar aqui.

Primeiro, com a “simplificação” do combate agora realizado através dos botões traseiros do controle, há uma pegada mais firme e visceral também permitida pela proximidade com o Machado Leviatã, além da adição bem-vinda do escudo e do combate com mãos nuas – sim, a velha e boa porrada na mão que Kratos serviu a Zeus. Funciona e é muito prazeroso de jogar e destroçar milhares de inimigos ao longo do game. As magias são substituídas pelos ataques rúnicos mais modestos, mas igualmente eficientes, além de termos todo o cenário de customização em pauta.

Mesmo que tenhamos um menu de inventário/habilidades e compra esteticamente feio e repleto de informações para ler, é possível se organizar eficientemente para adquirir os melhores itens aprimorando a armadura de Kratos e suas armas, além do próprio Atreus – isso é feito através das lojas de Sindri e Brok, os ferreiros que te auxiliam ao longo do jogo. Além de termos impactos diretos no gameplay pela adição dessa estrutura de itens e aprimoramentos, isso incentiva o jogador a procurar muitos baús e monstros para loot a fim de conseguir o melhor equipamento disponível possível.

A árvore de habilidades está mais generosa do que nunca e é vital que o jogador invista seu tempo estudando e experimentando essas adições que tornam o combate muito mais complexo e interessante. Um dos poucos aspectos negativos, mas ainda assim relevante, é a relativa escassez de inimigos comuns e principalmente da notória falta de bosses relevantes já que toda vez temos a presença de Trolls que forçam as mesmas estratégias, além de termos que presenciar sempre a mesma animação de finalização – isso também é um problema com os inimigos comuns. É bem decepcionante experimentar isso já que além dos Trolls, somente temos a presença de outros três chefes distintos.

Aliás, é justo também apontar o tom violento muito mais abrandado deste game em uma franquia conhecida justamente pela ultraviolência. Mesmo que faça sentido para esse Kratos mais comedido que luta ao lado do filho, não termos ao menos uma sequência na qual ele revela sua verdadeira monstruosidade ao apelar na brutalidade é, também, decepcionante.

Enquanto o combate é renovado, os puzzles, curiosamente também são, mas não no sentido que muitos podem imaginar. Aqui eu aplaudo as sacadas de Cory Barlog e dos responsáveis pelo level design sempre muito criativo apostando ferrenhamente em porções bem abertas do mapa – é muito curiosa a concepção circular geral da topografia de Midgard, ou através da verticalidade em locais mais lineares. Mesmo que tenhamos mais puzzles a la Uncharted ainda há a forte presença dos clássicos enigmas da franquia, além das armadilhas que continuam irritantes, mas mais toleráveis pela nostalgia.

Os elementos e magia, como sempre, são essenciais, mas agora divididos entre as habilidades de Atreus e Kratos. Isso varia em ritmo saudável, mesmo que haja certo exagero no uso do congelamento provocado pelo Machado. Vale mencionar também que por conta da liberação tardia de diversas magias, como sempre aconteceu na franquia, temos um processo inevitável de backtracking que felizmente não é doloroso pelas recompensas, mas tampouco é perfeito.

Em termos de conteúdo, este é de fato o jogo mais completo de God of War até então. Beirando as 20 horas somente no modo história, a Santa Monica Studio criou um mundo repleto de surpresas, além de termos missões paralelas que incentivam o jogador a liberar toda a névoa do mapa e explorar a ponto do jogo facilmente atingir 40 horas de conteúdo – inclusive com liberação de territórios totalmente inéditos na jornada principal.

Técnica dos Deuses

Tendo jogado cada exclusivo do Playstation 4, posso afirmar sem medo que do ponto de vista tecnológico, God of War é uma maravilha inacreditável que possa rodar tão bem no console base no qual joguei. Temos os gráficos mais bonitos da geração aqui. Basta reparar no nível alto de tantas texturas exibidas ao mesmo tempo em momentos mais calmos do jogo. É algo surreal ver o couro da ombreira de Kratos, os entalhes do cabo do machado, das rugas da nuca de sua cabeça e da colorização distinta de suas articulações como a do cotovelo, além da polidez rústica do aço da arma.

Tudo isso sendo renderizado com milhares de efeitos em tela como de partículas, vento, iluminação ou névoa, além da inevitável presença de outros inimigos também muito bem detalhados. Se toda a técnica gráfica já impressiona de modo absoluto, o mesmo ocorre com o estupendo trabalho de concepção artística.

Se a mitologia grega oferecia grandes cenários luxuosos, além de outros lugares exóticos de modo deslumbrante, os nórdicos trazem um retrato relativamente mais modesto, mas que ainda tem espaço para mostrar riquezas grandiosas e espaços gigantescos. A maioria do clima é realmente de abandono em um lugar inóspito que, estranhamente, confere uma atmosfera amedrontadora para os minutos iniciais do jogo que dispõe de uma paleta de cores um pouco mais tímida se compararmos com o resto dos cenários mais coloridos.

Aliás, é importante mencionar o quão distintos são os locais entre si, variando de clima, cores, inimigos e terreno. É particularmente genial o uso do barco como o meio de transporte favorito já que a sensação de descobrimento fica mais forte, além de termos conversas muito interessantes durante essas viagens. Enfim, de modo geral, temos sempre um trabalho muito esforçado para corresponder os locais tanto com a arquitetura nórdica tradicional, além dos toques fantasiosos originais.

Novamente, a única decepção fica na adaptação do visual de alguns vilões, principalmente do Estranho, que não tem uma característica visual que o torne marcante de alguma forma. Apesar de ser desenvolvido mais que qualquer outro antagonista da saga, facilmente é um dos menos expressivos.

Também é previsível que um jogo deste porte apresente alguns pequenos problemas técnicos, apesar de eu não ter presenciado um único bug durante minha jogatina. O único fator bastante recorrente no jogo é a queda da taxa de quadros em momentos mais exigentes, mas nada realmente que destrua a experiência formidável que o jogador terá.

Além de um gameplay apurado, design artístico competente e uma história firme, a franquia sempre foi conhecida pela qualidade excepcional da trilha sonora. Mesmo que não tenhamos alguma composição que supere o tema inesquecível da trilogia original, há belos arranjos que refletem o luto e amargor constante que Kratos traz consigo. Novamente, condiz com o momento delicado que personagem experimenta, repleto de vozes guturais murmurantes masculinas em uníssono até chegarmos a um canto feminino delicado e solene na conclusão da jornada.

Um Deus Melhorado

God of War provou a máxima de que um cão velho sempre pode aprender novos truques. Mesmo com uma renovação quase que total, temos um jogo fantástico que evoca o poder dessa franquia já muito especial. Kratos cresceu como personagem, nós crescemos como jogadores e a Sony em conjunto com o estúdio Santa Monica clamam para que os desenvolvedores voltem a crescer e enfrentar riscos.

Afinal ninguém poderia acreditar que um jogo de câmera fixa pertencente ao gênero Hack n’ Slash se tornaria um excelente RPG de aventura medieval. A mudança deu certo e consegue trazer ares nostálgicos na medida certa – inclusive com alguns fan services que são capazes de colocar um sorriso no rosto de qualquer fã da franquia.

Espero que God of War conquiste os louros do sucesso para que tenhamos mais jogos que desafiem sua própria natureza e se reinventem de modos ainda mais inteligentes. Um deus que simplesmente melhorou. Um jogo que nos convida a uma experiência digna de Valhalla. Kratos, enfim, cresceu. E crescerá ainda mais.

Prós: Experiência única, representação original da mitologia nórdica, reforma da fórmula, combate ainda excepcional, rico em narrativa, diversos momentos épicos, Atreus e novos personagens

Contras: vilão pouco aproveitado, repetição de inimigos, chefes e animações, poucas finalizações, design atrapalhado do menu, violência abrandada

God of War (2018)

Desenvolvedora: Santa Monica Studio
Publisher: Sony Interactive Entertainment
Plataforma: Playstation 4
Gênero: RPG de Aventura

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Publicado por Matheus Fragata

Editor-geral do Bastidores, formado em Cinema seguindo o sonho de me tornar Diretor de Fotografia. Sou apaixonado por filmes desde que nasci, além de ser fã inveterado do cinema silencioso e do grande mestre Hitchcock. Acredito no cinema contemporâneo, tenho fé em remakes e reboots, aposto em David Fincher e me divirto com as bobagens hollywoodianas.

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