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Análise | Kingdom Hearts III – 13 Anos para Isso?

Poucos games trazem um enorme sentimento de nostalgia em mim do que Kingdom Hearts. Apesar de eu ter iniciado minha jornada justamente no confuso Kingdom Hearts II, a Square Enix, Totsuya Nomura e a Disney conseguiram capturar a atenção de um moleque de doze anos de idade.

Mesmo que eu não tivesse entendido praticamente nada da história na época, ter a oportunidade de visitar os mundos de diversas animações favoritas da Disney foi um sonho realizado. Apesar de muitos fãs da franquia se aprofundarem na questão da mitologia original da série, esse nunca foi mesmo o meu intuito na época. Eu só queria passar um ótimo tempo me divertindo nos mapas inspirados em Hércules, Aladdin, O Estranho Mundo de Jack, Piratas do Caribe, entre diversos outros.

Enquanto eu me divertia com o 2º título em 2006, a Square Enix optou por um modelo bastante infeliz para o seguimento da franquia. Todos os outros títulos restantes foram lançados para plataformas distintas como o PSP, GameBoy, DS, etc. Isso não ajudou em nada para grande parte dos consumidores compreenderem que esses títulos não numerados eram parte da história principal. Imagino que exista gente que só esteja descobrindo agora que Kingdom Hearts III não seja sequência direta do 2º game, mas sim de Dream Drop Distance.

Eventualmente, durante o longo período de produção de Kingdom Hearts III (5 anos), a Square foi remasterizando toda a jornada para as plataformas atuais, mas creio que a idade e o diferencial gráfico retirem um pouco o gás de cada um desses jogos gigantescos – são mais de 100 horas obrigatórias para entender tudo.

Logo, após treze anos esperando por essa bendita sequência numerada, mais de uma década para ver como a jornada de Sora termina, valeu tanto a pena preservar a paciência e as esperanças? Não. Para mim, não, mas temos um bom jogo em alguns momentos de lampejo criativo do diretor Tetsuya Nomura.

Corações, Sombras e Disney

Sendo muito honesto, Kingdom Hearts III é um game intrinsicamente bizarro. Nesse terceiro capítulo, finalmente vemos a conclusão da saga Xehanort que gerou praticamente nove games inteiros focados em trazer essa narrativa e toda a história do passado que gerou tudo isso. Aqui, vemos Sora, Donald e Pateta seguindo sua missão de encontrar o “poder do despertar” enquanto a Organização XIII segue seus planos em encontrar as peças necessárias para abrir novamente Kingdom Hearts e remodelar todo o universo.

Sem spoiler algum, essa é a sinopse do terceiro game. Porém, apesar dos esforços atabalhoados de Tetsuya Nomura de tentar explicar todo o lore massivo para todos os jogadores que não se aventuraram em nenhum dos outros títulos, além dos numéricos, ainda temos uma história confusa e repleta de pontas soltas, participações inexplicáveis e traições sem peso para a maioria dos jogadores.

Nem mesmo o melhor vídeo de resumo disponível no Youtube conseguirá abranger a miríade densa e complexa de personagens, suas relações e suas histórias. Logo, o único jeito de compreender 100% da narrativa é jogar os outros games em sua ordem cronológica – atente, não a de lançamento, pois há prequels no meio disso tudo com histórias totalmente distintas, mas que explicam suas presenças aqui no “terceiro” game da saga.

Justamente por conta dessa complexidade que supera facilmente a da saga Final Fantasy, afinal temos aqui uma história gigantesca que praticamente nunca se fecha, é muito bizarro notar como a escrita de Nomura é irregular ao longo de todo o game. Trazendo oito mundos inspirados nas obras da Disney: Enrolados, Toy Story, Ursinho Pooh, Piratas do Caribe, Big Hero 6, Hércules, Monstros S.A. e Frozen, Nomura faz de todo o possível para não prejudicar a marca, afinal a Disney tem se tornado muito rígida com os direitos de suas obras.

É simples notar isso. Basta ver a diferença entre os chefes do II com o do III. Praticamente nenhum personagem da empresa se torna alvo do trio protagonista. Os chefes geralmente assumem formas pouco inspiradas de Heartless gigantescos. O controle para a interação de Sora, Donald e Pateta com os novos personagens também é monumental, já que em alguns casos, praticamente não há momentos significativos entre os personagens – isso é muito mais notável em Enrolados e Frozen.

De modo geral, as histórias dos mundos Disney são decepcionantes ou fracas. Simplesmente não há muita maleabilidade para que Sora, Donald e Pateta estejam em situações mais criativas e interessantes que tornem os filmes mais distintos de suas versões originais – diversos mundos são apenas adaptações dos filmes originais.

Apenas nos mundos relativamente menores de Toy Story, Big Hero 6, Monstros S.A. e de Hércules que temos diálogos verdadeiramente originais já que alguns desses mundos se comporta muito bem como sequências dos filmes, resolvendo algumas pontas soltas deixadas em suas histórias originais.

De todos, o melhor escrito é de Toy Story, já que os personagens entram em conflitos bastante dignos e descobrem o valor da amizade juntos. Logo, sendo honesto, justamente o principal atrativo desses games foi uma decepção forte, mas compreendo totalmente os recém-chegados que devem se encantar pela proposta do game – apenas tenha em mente que existem outros game da franquia que são superiores.

O Padrão do Xadrez

O diretor/roteirista do game, Nomura, faz questão de que o jogador perceba que estamos em uma situação de Xadrez. Não só pelo jogo em si que surge como peça fundamental de uma importante cutscene ou dos figurinos de praticamente todos os personagens do bem do elenco original.

Com esses padrões quadriculados por diversos lugares, é fácil também notar como o game é repleto de padrões. Ou seja, ele é repetitivo ao extremo. Mesmo que o jogador visite oito mundos distintos, com estilos artísticos bem realizados e diferentes, os objetivos nunca variam de fato. Sora, Donald e Pateta sempre estarão em uma missão de escolta ou de busca/resgate.

Não existe variedade ou um gameplay mais distinto para cada mundo, além de alguns especiais oferecidos em abundância durante os combates nos quais vemos uma integração mais íntima entre os personagens lutando juntos contra os heartless. De resto, nada de diferente ocorre.

Estranhamente, não há o menor senso de urgência para esse game que, em tese, encerra a jornada do grupo conta Xehanort. Simplesmente não faz o menor sentido em qualquer narrativa que se aventure em uma “trilogia” – sei que não é o caso aqui, mas é algo que só torna isso mais grave – não possuir essa pressa, o perigo iminente que pode pegar os heróis desprevenidos.

Na verdade, Sora e seus amigos se encontram diversas vezes com os membros da malévola Organização XIII. Eles aparecem em quase todos mundos Disney, falam algumas besteiras sobre maldade e escuridão, além de afirmar o clássico: que o herói vai perder. Então, sumonam alguma criatura forte, um sub-chefe, e somem. É algo tão fácil e tão pedestre que até mesmo para o nível da escrita de Nomura, surpreende negativamente.

Por conta disso, os dois primeiros atos recheados com os mundos Disney possuem um problema exorbitante de ritmo. Acredite, há níveis simplesmente tediosos. E como temos menos mundos em relação a outros games da franquia, eles se tornam inchados com atividades extras obrigatórias insuportáveis.

Isso é muito evidente no caso de Piratas do Caribe. Adaptando porcamente a história de No Fim do Mundo, somente quem viu o filme conseguirá entender a situação que ocorre com Jack Sparrow. Embora traga os elementos mais diversos como o divertido combate subaquático e também o nem tão bom combate naval, atividades despropositadas como coletar 300 caranguejos simplesmente tiram qualquer um do sério. É evidente que esse tipo de missão foi concebida apenas para inchar a experiência do jogador.

Em vez de mundos maiores, teria sido mais interessante contar com um gameplay variado com mais mundos das animações Disney. Felizmente, os dois filmes Pixar que entram no rol, fogem disso pela graça da exploração dos mapas bastante criativos e interessantes. Já Enrolados, Frozen e Big Hero 6 sofrem bastante com mapas gigantescos, mas que não despertam muito interesse.

Para resolver a questão do ritmo desajustado dessa aventura, bastaria colocar alguns acontecimentos importantes que estão acumulados no terceiro ato no meio dessas aventuras, exatamente como acontece em outros games da saga. Para criar um épico grand finale, Nomura acaba cortando o potencial da maioria do jogo.

Obviamente que a questão do roteiro não ajuda em nada. Os diálogos de Kingdom Hearts nunca foram incríveis ou até mesmo ótimos, sofrendo com as presepadas mais clássicas de animes shonen com discursos infindáveis sobre o bem, o mal, o poder da amizade, do amor, etc. Entretanto, por conta da falta de acontecimentos relevantes na grande maioria, a troca desses diálogos, extremamente lentos por sinal, se torna repetitiva. Uma enrolação sem fim para não permitir que a história avance.

Aliás, Nomura injeta tantas pausas estranhas nos diálogos, seja com os personagens se encarando, grunhindo em afirmação para os outros, parando para pensar (sempre com a mesma animação) ou até mesmo para rirem de uma piada sem graça, que até mesmo a maioria das cutscenes se torna um fardo de assistir.

Ao menos, felizmente, ainda com diálogos péssimos, existe melhor detalhamento para Sora que não precisa ficar comentando que vai resgatar Kairi ou Riku a todo momento. O protagonista recebe mais detalhamento e aprende algumas lições valiosas nos mundos que visita. O mesmo ocorre com Pateta e Donald que mostram mais do valor de sua amizade para o protagonista.

Infelizmente, já para os vilões, a história não melhora em nada. Continuam sendo superficiais como sempre foram, incluindo Xehanort que recebe um desfecho, no mínimo, questionável. Nos duelos finais contra os membros da Organização XIII, Nomura revela algumas das motivações de alguns antagonistas, mas, sinceramente, seria melhor não ter nem apresentado isso aos jogadores. Os motivos são patéticos para se aliar a um algoz que deseja aniquilar o universo.

Aperte X para prosseguir

Quem conhece o gameplay de Kingdom Hearts sabe que se trata de um RPG de ação com a maioria das ações centradas apenas em um único botão X ou A (no caso do Xbox). Assim sendo, com mais de trinta horas de duração, prepare-se para apertar muito X com a montanha de inimigos que Kingdom Hearts III traz em seus combates.

Mesmo que seja um combate repetitivo, afinal se trata apenas de apertar um único botão, é uma experiência divertida já que o game possui coreografias de combate excelentes com grande favorecimento ao combate aéreo. O que torna as coisas mais fluídas, além do ótimo sistema de movimentação, são os especiais das keyblades permitindo que elas troquem de forma a depender do seu combo.

Apesar de alguns especiais serem muito parecidos, existe diversidade o suficiente para satisfazer o jogador mais exigente. Além dessas trocas de formas que substituem os especiais clássicos vistos em Kingdom Hearts II, temos algumas magias que se tornam atrações dos parques temáticos da Disney. Extremamente poderosas, conseguem eliminar rapidamente a massa de oponentes. Uma pena que esses especiais não sejam tão diversificados para um jogo tão longo.

Aliás, é notável sim que Kingdom Hearts III tenha uma escala de dificuldade bem menor se comparada a outros games da franquia. Em grande parte dos chefes, não é preciso traçar estratégia alguma. Basta sair apertando X e se curar algumas vezes que já é o suficiente para vencer diversos combates – com exceção dos chefes finais nos quais é preciso se esquivar.

Além do gameplay ser funcional e agradável em doses controladas, o game é um verdadeiro festim para os olhos. Os gráficos são incríveis trazendo diferentes detalhes a depender do estilo artístico predominante em certos níveis. Como temos um filme live action e outras animações tridimensionais como inspiração para adaptação, há um capricho incrível na recriação de personagens e cenas dos filmes.

Obviamente que não chega no nível dos longas já renderizados e reproduzidos, mas como se trata de algo que é renderizado em tempo real, é incrível o resultado obtido. Na próxima geração de consoles, já será realidade jogar games que possuem qualidade visual similar a de lançamentos nos cinemas. Destaque para as animações faciais de Jack Sparrow que incorporam os tiques de Johnny Depp para o personagem.

As cutscenes evidenciam esse trabalho feito com muito esmero então é uma pena que a qualidade delas variem bastante em qualidade ao longo do game. Algumas são frígidas e insípidas, porém outras ressoam positivamente com muita emoção. É algo que envolve direção e maior empenho em animação para o trio principal – é possível notar diversas animações recicladas ao longo do jogo.

Entretanto, apesar de termos esses avanços espetaculares nos gráficos, isso vem a um custo alto. O game sofre bastante com quedas de frames nos consoles tradicionais como o PS4 e Xbox One S. Além desse problema que atrapalha sim a jogatina, a câmera não funciona muito bem durante os especiais mágicos que Sora lança. O mais problemático deles com certeza se trata do trenzinho colorido que ele conduz em momentos-chaves do game.

O Terceiro Capítulo é sempre o mais fraco

Então, após todos esses anos, o que há com Kingdom Hearts III? Tetsuya Nomura certamente queria fazer algo especial aqui, mas por vezes, as melhores intenções não são o suficiente. Quando o jogo enfim começa a seguir seu próprio caminho no terceiro ato, fica a sensação incomoda de pressa.

Pressa para trazer os embates contra os nêmesis da Organização XIII, pressa em resgatar heróis perdidos há muito tempo, pressa em resolver interesses românticos, pressa em terminar essa história com Xehanort. Tanto que Nomura encontra problemas e recorre incessantemente a deus ex machina, soluções implausíveis do roteiro, para conseguir dar alguma sustância nas reviravoltas bizarras que a história apresenta.

Por conta disso, diversos desses momentos cheios de fan service se tornam falhos ou simplesmente vazios. As coisas acontecem, mas não de modo inspirado que finalmente ofereça um payoff, a recompensa que os fãs tanto aguardavam. Evidentemente que falo por parcela dos gamers então diversas pessoas também podem aprovar o que acontece aqui.

Para complementar essa análise, também é preciso salientar a existência de mini games criados para o celular de Sora chamado de Gummiphone que se tornam um bom passatempo em algumas ocasiões. O mesmo ocorre com o mini game envolvendo Remi e seus talentos culinários apesar de serem muito simples. Os segmentos com a Gummiship também foram aprimorados, apesar de ainda servirem como um inchamento artificial da duração do game.

Fica o lamento de não vermos praticamente nenhum personagem da saga Final Fantasy, além das presenças de mero luxo com Pete e Malévola. Ao menos a trilha musical continua firme e forte mesmo que reutilize ótimos temas antigos para conseguir emplacar a emoção. Em termos de trilha de combate, temos um trabalho bem mais fraco.

No fim, é difícil recomendar Kingdom Hearts III para qualquer um que nunca jogou a franquia. Apesar de Nomura se esforçar com muito diálogo expositivo maçante, acho simplesmente impossível compreender direito o que ocorre nesse game ainda que ele seja pensado como um título de convite a novos jogadores.

Quem já acompanha a saga há tempos, obviamente já terá adquirido o game, mesmo que tenham crescido e amadurecido bastante entre um lançamento e outro, afinal faz cinco anos que não vemos um novo título da franquia. Portanto, com essa história complexa repleta de diálogos bastante bobos, é quase impossível compreender para quem Nomura tenta contar sua narrativa mirabolante.

Admito que passei longe de gostar ou odiar esse título. Fiquei exatamente no pior dos termos: totalmente indiferente. Há esse incrível desequilíbrio no título que simplesmente não ajuda a compensar toda a espera que tantos aguardaram para finalmente se reunir com Sora, Donald e Pateta.

Realmente, é difícil fugir desse senso-comum: o terceiro capítulo é sempre o mais fraco.

Kingdom Hearts III (Japão – 2019)

Desenvolvedora: Square Enix
Estúdio: Square Enix
Gênero: RPG de Ação, Aventura
Plataformas: Xbox One, PS4

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Publicado por Matheus Fragata

Editor-geral do Bastidores, formado em Cinema seguindo o sonho de me tornar Diretor de Fotografia. Sou apaixonado por filmes desde que nasci, além de ser fã inveterado do cinema silencioso e do grande mestre Hitchcock. Acredito no cinema contemporâneo, tenho fé em remakes e reboots, aposto em David Fincher e me divirto com as bobagens hollywoodianas.

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