Crítica | Minha Vida de Abobrinha
A animação em stop-motion é uma técnica que teima em resistir em um mundo onde a animação em 3D impera. Difícil de produzir, leva-se anos para concluí-la e, na maior parte dos casos, não há o mesmo retorno financeiro que as animações produzidas em computação gráfica. Para o grande público, existem apenas dois sobreviventes do movimento, os ingleses do estúdio Aardman Animations (Wallace & Gromit, Fuga das Galinhas, Piratas Pirados), e os americanos do estúdio Laika (Coraline, Paranorman e Kubo). Mas há vida para esse tipo de animação em outros lugares, como é o caso do diretor Claude Barras, que há algum tempo vem produzindo curtas no gênero e finalmente pode mostrar sua técnica com o novo filme, adaptação de um livro escrito pelo autor Gilles Paris, Minha Vida de Abobrinha (Ma Vie De Courgette, 2016).
A animação franco-suiça conta a história de Icare (apelidado de Abobrinha), criança de 9 anos que, após a morte súbita de sua mãe, acaba sendo levado para um orfanato. Neste lugar, Abobrinha conhecerá outras crianças, que como ele, tiveram experiências traumáticas com seus pais. A procura de um amor fraterno e um passado traumatizante, todas as crianças dividem o mesmo fardo. Tal fardo que as transformou, fizeram-nas do jeito que Abobrinha encontra no início do filme.
As crianças são o ponto alto da película, com pensamentos existencialistas e mais maduros do que os adultos ao seu redor, a animação nunca esquece de que apesar de tudo elas ainda são crianças. Ainda brincam, fazem estripulias, tentam entender como é esse tal de amor e como isso leva os adultos a transpirarem muito e deixarem o “piu-piu explodir”. Outro elemento que ajuda muito na caracterização é o excelente elenco infantil na dublagem original, com vozes que transparecem a genuinidade dos diálogos.
Apesar do passado triste das crianças, o filme acaba sendo um sopro de esperança em seus futuros. Ao contrário do tom pesado nos diálogos que remetem às suas trágicas histórias, a trama equilibra bem o tom do filme e se torna aconchegante.
A animação consegue dar maturidade e camadas para os personagens sem perder sua essência e não confiná-los a apenas estereótipos do gênero. Simon, por exemplo, é um garoto que não é apenas o bully da história. Ele evolui de tal jeito durante o filme que ao final dele se torna um personagem completamente diferente do que é proposto no início. O roteiro não tem vergonha de discutir temas pesados quando se trata dos parentes ausentes das crianças, como abuso infantil e uso de drogas e álcool. Cada uma é bem explorada no roteiro e tem seu espaço no longa. Ao final, nos sentimos extremamente familiarizados com elas e até com certa vontade de continuar acompanhando suas jornadas ao final dos breves 60 minutos de filme. E isso é infelizmente um dos pontos negativos, já que o filme em alguns momentos parece passar rápido demais em alguns problemas e não há um senso de perigo tão grande. Alguns minutos extras não fariam mal para o desenvolvimento de certas passagens.
Indicado a melhor animação ao Oscar, à primeira vista já é possível perceber a razão pela ovação nos prêmios internacionais. A técnica de stop-motion da animação é extremamente fluida e com um cuidado muito particular nos detalhes dos cenários. Barras escolhe locais menores e fechados para dar ênfase na qualidade da animação dos personagens, ao mesmo tempo que prioriza o diálogo e a interação entre eles.
A direção de arte intensifica as emoções dos personagens e seus formatos dizem muito sobre cada um deles. Os olhos grandes, corpo pequeno e braços cumpridos, cada personagem tem sua identidade realçada pelos detalhes visuais. Das cores no cabelo, nas olheiras e nas roupas. A trilha sonora de Sophie Hunger também é um ponto forte, extremamente eclética, misturando ritmos de rock, jazz e blues.
Minha Vida como Abobrinha é uma linda e intimista animação em stop-motion francesa, que ganha o espectador pela forma madura de como desenvolve os temas de seus personagens. Abobrinha e seus amigos são crianças, entendem o mundo como crianças, mas refletem o abuso que sofreram através da auto-reflexão e a compreensão de seu papel no mundo adulto. Uma ótima estreia para o diretor Claude Barras.
Minha Vida de Abobrinha (Ma Vie De Courgette, Suíça, França - 2016)
Direção: Claude Barras
Roteiro: Céline Sciamma, Claude Barras, Germano Zullo, Morgan Navarro
Elenco: Gaspard Schlatter, Sictine Murat, Paulin Jaccoud, Michel Vuillermoz, Raul Ribera, Estelle Hennard, Elliot Sanchez, Lou Wick
Gênero: Animação, Drama
Duração: 66 min
https://www.youtube.com/watch?v=sCbQf-enVXs
Crítica | Eu, Olga Hepnarová
Em 1973, aos 22 anos, a tchecoslovaca Olga Hepnarová, dirigindo um caminhão da companhia em que trabalhava, atropelou propositalmente duas dezenas de pedestres em Praga, matando oito. Em 75, antes de completar seus 24 anos, foi enforcada. Depois dessa execução, na República Socialista Tchecoslovaca – hoje, República Tcheca –, nenhuma outra mulher foi condenada à morte. Hoje, o país não aplica mais esse tipo de pena.
O discurso oficial nunca é, ou não deveria ser, pelo menos, suficiente. Não à toa, massacres e atentados do gênero chamaram, e ainda chamam, a atenção de vários artistas. Gus Van Sant evidenciou a permanência da dúvida em Elefante, optando por uma narrativa fragmentária, dilatada por longos travellings, não conclusiva e – seu maior perigo – aberta para acusações de irresponsabilidade. Já Michael Moore, com sua gramática tão americana quanto seu objeto de investigação, produziu Tiros em Columbine: ao mesmo tempo, a antítese e um excelente complemento do longa de Van Sant. Os dois filmes guardam, em suas bases, a tragédia em Columbine como seus gatilhos. Esta sociedade do consumo, ou, como deixa bem claro o documentário de Moore, os Estados Unidos carregam uma bestialidade com raízes não apenas influenciadas por eventos históricos passados. A partir dessa lógica, Eu, Olga Hepnarová mostra-se um filme com uma diferença notável: trata de uma tragédia além do in media res da mídia em uma nação socialista na década de 70.
Michalina Olszanska vive o papel da protagonista e a acompanhamos desde pouco antes de atingir a maioridade, período em que passou em um colégio interno, até a sua execução. Diferentemente do tom confessional que o “Eu” do título poderia indicar, os diretores estreantes, Petr Kazda e Tomás Weinreb, optaram por refletir esse sujeito como centro de suas cenas a partir de uma visão plenamente observativa, quase documental, de maneira que não ficamos sabendo o que se passa pela cabeça da personagem. Fazer esse exercício reconstituinte seria perigoso e incerto. A fotografia em preto e branco e os planos estáticos remetem imediatamente ao polonês Ida. Porém, enquanto o vencedor do Oscar mostrava a desestabilização pelo deslocamento das personagens no quadro, Eu, Olga mantém um foco alinhado em sua protagonista. Para compensar o baixo contraste da fotografia – a monotonia e o estado de espírito daquela sociedade como um todo –, o olhar e a fúria da atriz principal rouba a atenção em cada uma das composições. Soma-se uma montagem cronológica, mas de rápida sucessão, provocando um movimento frequente contração e dilatação do tempo. Durante os primeiros vinte minutos, somos introduzidos à Olga, sua relação com a família e com a escola. São cenas curtas, passam rápido e, com isso, impactam ao aplicar um compasso memorial. Seria melhor que essa certeza estética fosse compartilhada pelas outras camadas do filme.
A frieza da família, a violência que sofreu na escola, sua homossexualidade e masculinização são os pilares da mensagem do filme. O problema é que, quando isso é desenvolvido como debate, fica a impressão de um julgamento depreciativo, valendo-se de uma conclusividade que associa seu passado e preferências rebeldes com uma doença. A primeira cena de masturbação entrega esse apetite fisiológico: a porta em frente à câmera, enquadra o corpo da garota, focando em seu torso, na virilha, em parte da perna, cortando sua cabeça e pés. Eu, Olga, de tão frio e distanciado da sua protagonista, faz da tela de projeção um vidro de zoológico. A protagonista, franzina e rebelde, vai se despe de pouco em pouco e só não mostra arrependimento. Começa com a puerilidade de um seio descoberto numa festa e parte para um sexo lésbico agressivo, incômodo. Ciente disso, uma ou outra cena parece tentar atenuar esse possível moralismo, como uma em que a garota fala diretamente para a câmera; um breve instante em que a cena fica mais brilhosa durante um cena de sexo, como um momento de graça; os departamentos da vida socialista; o clímax silencioso, bem à acta non verba das declarações de Olga Hepnarová.
Ao procurar perspectivar seu personagem central, os diretores de Eu, Olga Hepnarová tentam reciclar ideias no conto de um caso cativante. Pena que o ponto de fuga é mal definido. Vale, no final das contas, por não ser banal, acompanhando um ser que saiu da “sala de jantar” e parou de se preocupar só em nascer e morrer.
Crítica | Quase 18
Deve até soar um pouco cansativo quando ouvimos que teremos um novo filme "coming of age" sobre os problemas da adolescência e os difíceis problemas que essa fase traz, especialmente no colégio. Cineastas como Johh Hughes foram bem capazes de explorar essa questão nos anos 80, com um senso de humor único e um melodrama sutil que entregava uma mensagem afetiva, e mais recentemente tivemos casos como Boyhood, O Maravilhoso Agora, A Mentira e até o surpreendentemente doce e pervertido Superbad.
Não seria um exagero pensar que o gênero já havia explorado todo seu potencial, dada a qualidade das obras citadas acima. Porém, claramente é um erro, já que o ciclo da adolescência é um looping que se repete por gerações e gerações, o que praticamente garante que veremos muitas histórias do tipo pela frente - afinal, muitas destas são inspiradas na própria experiência de seus realizadores. Esse caráter fica bem claro em Quase 18 (por pouco o título não é confundido com um besteirol), que oferece uma ótica muito diferente e original para o tema, e ouso dizer que talvez seja o melhor exemplar do gênero dos últimos anos.
Simplíssima, a trama nos apresenta à Nadine (Hailee Steinfeld), uma adolescente de 17 anos que tem muita dificuldade para se encaixar aos demais colegas de sua faixa etária (rotulando-se como uma "alma velha"), algo provocado por sua personalidade irônica e, por falta de definição melhor, fora da caixinha. Sua única amiga é Krista (Haley Lu Richardson), mas tudo desanda quando esta começa a namorar seu irmão Darian (Blake Jenner), o que faz as duas se afastarem e Nadine ter uma bizarra crise de identidade, levando-a a desabafar com um professor aparentemente desinteressado (Woody Harrelson), ter uma relação embaraçosamente mais próxima com sua mãe (Kyra Sedgwick) e se aproximar de um estudante de cinema tímido (Hayden Szeto).
Eu sei, eu sei. Com a leitura da sinopse, você provavelmente pensaria que isso é mais um drama adolescente descartável e clichê; eu pensaria o mesmo, e nem quero arriscar em assistir ao trailer, visto que é um filme dificílimo de se vender sem torná-lo algo piegas. Porém, o que a estreante Kelly Fremon Craig faz com o material é algo verdadeiramente especial, vide tamanha honestidade e veracidade com que pinta sua história. Claro, todos os eventos e situações que acabam se desenrolando não são necessariamente originais (como acidentalmente mandar uma mensagem erótica para o crush, fugir de casa para um encontro), mas o tratamento de Craig a elas é o que torna tudo tão fresco e envolvente - até mesmo a abertura com um prólogo que se ambienta no meio da narrativa já desperta nosso interesse - assim como a presença fortíssima de sua protagonista.
Nadine é uma personagem como poucas no cinema americano recente. Verborrágica e simplesmente incapaz de parar de falar, seja com outros ou consigo própria, o que por si só é interessante considerando sua personalidade antisocial; quase como usar o discurso como forma de se manter isolada de interações sociais de verdade, o que constantemente a coloca em conflito consigo mesma ("por que você é tão esquisita?" resmunga ela no espelho durante uma festa desconfortável). Esse comportamento também resulta em Nadine dizer diversas coisas repreendíveis ou simplesmente erradas, como quando faz um jogo psicológico com seu irmão ao trazer à tona a morte de seu pai ou quando apela para um melodrama radical ao dar um ultimato para Krista sobre a relação das duas, sem nem ao menos pensar sobre. É uma personagem que mantém nosso interesse a admiração mesmo durante suas decisões mais infelizes - em determinado momento, me peguei observando uma escolha curiosa de vocabulário da menina, apenas para que segundos depois ela fizesse exatamente a mesma observação, já demonstrando como Craig foi capaz de criar uma figura que já conhecemos integralmente com pouco tempo de projeção.
Mas é quando Nadine revela o real drama de sua situação que o texto de Craig realmente fica mais especial. O grande problema da protagonista não é como aqueles a seu redor, mas consigo própria. Em uma das muitas divertidíssimas cenas com o professor vivido por Woody Harrelson, ela comenta sobre como é incapaz de se encaixar e que não tem o menor interesse nisso - constatação para a qual ele brilhantemente replica "talvez as pessoas simplesmente não gostem de você", gerando aqui um personagem que constantemente zomba e contraria sua aluna, mas que claramente forma um vínculo forte e de apoio. Porém, quando Nadine tem uma aguardada redenção catártica com seu irmão, percebi o caráter majestoso da prosa de Craig. É quando Nadine percebe que está infeliz consigo mesma, "que sua alma projeta-se para fora do corpo e fica triste com o que está vendo, e desesperada por ter que conviver com isso pelo resto da vida", que Quase 18 toca em questões universais e profundamente identificáveis. Isso é simplesmente uma jóia de prosa.
É um papel difícilimo e que depende muito da força de sua atriz para funcionar, e fico extasiado em observar como Hailee Steinfeld lidou com o desafio de forma fantástica. Desde sua estreia sensacional nos cinemas com Bravura Indômita, em um longíquo 2010, fiquei esperando para ver a grande promessa daquele filme se concretizar nas telas, decepcionando-me com a escolha pouco criativa de Steinfeld para uma variedade de papéis esquecíveis e uma carreira musical sem muito impacto. Nadine era exatamente o que Steinfeld precisava. Da mesma forma como Olive em A Mentira revelou o carisma imenso de Emma Stone, Nadine é um canivete suíço de emoções e nuances, de um humor ácido e palavrões que brotam a todo momento, e Steinfeld está absolutamente excepcional em todos os momentos - em especial na reconciliação com seu irmão, mencionada ali em cima.
Quase 18 é uma fantástica surpresa. É um filme pouco inventivo em termos de direção, mas que funciona por manter a força de seus excepcionais personagens e do excelentee sincero roteiro, que já coloca Kelly Fremon Craig como um nome para se seguir de perto. Que as angústias e dramas da adolescência continuem gerando obras tão inspiradoras e envolventes como esta.
Quase 18 (The Edge of Seventeen, EUA - 2016)
Direção: Kelly Fremon Craig
Roteiro: Kelly Fremon Craig
Elenco: Hailee Steinfeld, Woody Harrelson, Haley Lu Richardson, Blake Jenner, Kyra Sedgwick, Hayden Szeto
Gênero: Comédia, Drama
Duração: 104 min
https://www.youtube.com/watch?v=BabwExsIGVU
Crítica | Marguerite e Julien
Mesmo sendo o amor um sentimento universal, há muito tabu envolvido em alguns tipos de relacionamentos que certos sujeitos entram. Marguerite e Julien trata de um bem delicado. Sem pressa, não é o romance de seres de espécies diferentes, mas uma história em que o sangue familiar é o gerador do conflito. O romance incestuoso é baseado no roteiro escrito pelos parceiros François Truffaut e Jean Gruault há quatro décadas atrás, engavetado até esta produção da diretora Valérie Donzelli. Conhecendo os cineastas da Nouvelle Vague e a maneira como fazia suas adaptações (literárias, históricas), é bem provável que o roteiro original trazia uma visão quase oposta à que foi apresentada por Donzelli. O que, por si só, não é necessariamente ruim.
Em primeiro lugar, entenda-se logo na primeira imagem do filme, Donzelli destila o seu anacronismo proposital com a visão de um helicóptero – que poderá ser conectado com um dos momentos finais do filme. Quem ao menos já tinha uma ideia da história pela sinopse, da veracidade da história ocorrida no século XVI, é confrontado com um aspecto que nada reconstrói da época. Dois jovens fogem da polícia num floresta. Depois, no dormitório de um orfanato, menininhas reproduzem sons de deleite amoroso para acordar as companheiras e ouvir a história do amor proibido de Marguerite e Julien. Com esses elementos encenados, Donzelli – ciente de que uma história do gênero nunca é confortável – larga mão de uma pretensão arquetípica das histórias de amor mais realistas, apesar das idealizações, para erigir seu espaço ficcional. A cineasta, porém, não consegue. no próprio desenrolar do filme, prescindir dessas características, desfalcando os artifícios escolhidos.
Além das clássicas separações e proibições que recaem sobre o amor dos irmãos, que poderiam muito bem ser articuladas em outros romances, pouco é discutido sobre o incesto. A palavra, na verdade, aparece só nos últimos minutos do longa. Não há um momento de conversa entre os pais e os filhos, ou um discurso melodramático em que gritem: “Ela é a sua irmã! Vocês não podem fazer isso, meus filhos!” Donzelli monta, dessa forma, não um filme que se preocupa com a parcialidade, um julgamento definitivo de certo ou errado. Se assumisse algum dos dois posicionamentos, só perturbaria mais sua mediocridade estética – aspecto que retira o longa de um grotesco fracasso.
Seguindo muito artifícios que Wes Anderson repercutiu, e que poucos (talvez nenhum) conseguiram deglutir e usufruir com inteligência, Donzelli adiciona aos seus cenários uma mistura de tempos e tecnologias (os cenários campesinos do século XVII encontram carros, helicópteros), invocando uma imaginação infantil e que desperta prazer – afinal, uma das camadas narrativas é justamente a de crianças ouvindo a história. Soma-se a esse ambiente peculiar uma coleção de transições de desenho animado e planos slideshow de apresentação. No último terço do filme a jocosidade dá lugar a uma secura, inclusive na representação do sexo, apelando para uma simbologia agressiva (literal e expositivamente). Por exemplo, enquanto estão em fuga para Londres, mais perto do final do filme, há uma segunda cena de sexo entre os irmãos. Os antecedentes são o plano de uma coruja, seguido de um close em um tronco no qual escorre uma absurda quantidade de sangue (um “pau” transbordando vitalidade). A transa, em si, é rápida demais, sem apuro visual ou dramático. A relação se desgasta, se esvazia. Marguerite chega pedir perdão a Deus pelos seus pecados.
Em comparação com o resto do filme, que tem um interesse muito grande pela frontalidade, por uma composição visual bem definida, por uma violência seca (destaque para duas cenas de morte sem cortes), os minutos finais mostram uma caretice enorme. Se o trabalho pobre de atuação dos protagonistas, vividos por Anaïs Demoustier e Jérémie Elkaïm, era justificado pela relação cênica configurada, sem eufemismos, quando essa coragem deveria atingir sua epítome, a câmera foge. Para que tantos floreios, então, se o caminho a ser seguido é o atalho mais próximo?
Incapaz de terminar até numa nota grave, Marguerite e Julien sabe esconder bem os temas sob as sua narrativas, mas que não carrega em suas decisões metade do amor e da coragem que moveu o amor dos irmãos até as últimas consequências.
Marguerite e Julien (Marguerite et Julien, França – 2015)
Direção: Valérie Donzelli
Roteiro: Valérie Donzelli e Jérémie Elkaïm
Elenco: Anaïs Demoustier, Jérémie Elkaïm e Frédéric Pierrot
Gênero: Romance
Duração: 105 minutos
Crítica | Showgirls
O holandês Paul Verhoeven fez a clássica rota migratória do cinema: após fazer sucesso em seu país natal, o diretor foi para Hollywood e fez sucessos de crítica e de público como RoboCop – O Policial do Futuro, O Vingador do Futuro e Instinto Selvagem. Porém, em 1995 a sua carreira nos Estados Unidos morreu por conta de Showgirls. Quando lançado, o longa foi um dos maiores fracassos da indústria e foi destruído por público e crítica, ao ponto de ganhar seis prêmios do Framboesa de Ouro, inclusive Pior Filme e Pior Diretor. Quando se escuta sobre um filme quem tem tal fama, todos têm vontade de ver o porquê dessa reação tão negativa, mas diria que este foi um filme subestimado na época de lançamento e que merece ser revisto hoje. O que Verhoeven conta é uma jornada se autoafirmação feminina e uma visão muito honesta sobre o jogo do show business.
A história é a típica busca por sonhos: Nomi (Elizabeth Berkley) é uma jovem dançarina que sonha em se tornar uma showgirl nas grandes atrações dos hotéis de Las Vegas. Mesmo começando como stripper em uma casa noturna, Nomi cresce graças à ajuda de Cristal (Gina Gershon) uma dançarina muito respeitada no meio que começa a ver na garota uma nova estrela, desde que ela aceite as regras do jogo.
Refazendo a parceira com o roteirista Joe Eszterhas (Instinto Selvagem), o longa se mostra objetivo desde o primeiro take, ao mostrar Nomi indo para estrada e conseguindo a sua carona para Vegas. Essa sequência já mostra o senso de moral particular da personagem. E essa moralidade da protagonista é colocada à prova durante todo o filme: se no início mostra ela apontando uma faca ao caroneio por tocar em seu cabelo, mais para frente a vemos fazendo sexo com um homem mais poderoso dos bastidores para conseguir o que quer. E o interessante é que durante todo o filme ela reafirma várias vezes que não é uma prostituta, mas suas ações a colocam em uma linha muito tênue. A maioria dessas ações ocorrem por ela ter que se adaptar as regras do jogo dadas pelo show business que é retratado de maneira crua. Se durante as apresentações há um grande espetáculo com dançarinos lindos e uma grande produção, nos bastidores vemos homens sem escrúpulos que tratam as showgirls como se fossem pedaço de carne - tanto que quando Nomi faz a sua primeira audição para um show em um grande hotel, o diretor do espetáculo fala: “Venda o seu corpo.”
Aliás, outro ponto que chama a atenção em Showgirls é como Verhoeven discorre sobre Las Vegas e os homens. A cidade do pecado não é mostrada como um lugar luxuoso e grandioso, mas sim como um local brega e decadente. Tudo é visto de maneira afetada. Todas as luzes utilizadas pelo diretor junto com o diretor de fotografia Jost Vacano aumentam a sensação de artificialidade do local. Não que seja feio, pois o longa é muito bem filmado e visualmente muito bonito, mas o uso dessas luzes e cores quentes que berram durante a projeção demonstra a visão kitsch do diretor. Isso vai desde a concepção visual do filme até as atuações, que são em sua maioria muito exageradas. Elizabeth Berkley está acima do tom em todas as cenas do filme; Gina Gershon é péssima de tão artificial; Kyle MacLaham usa toda a sua canastrice para criar um personagem de aparência bondosa, mas no fim se revela uma crápula da pior espécie. Isso é um fator que pode distanciar o espectador é essa estratégia do diretor em que tudo é falso, além das cenas provocantes de sexo.
Quem conhece a obra de Verhoeven sabe que ele nunca teve pudor para mostrar cenas de violência e sexo, mas nunca usou de maneira explícita com o simples objetivo de chocar apenas para incomodar o espectador. Há uma coerência com o universo do filme: em Showgirls vemos um mundo no qual tudo é movido pela luxúria e pelo desejo. A existência dessas sequências e dessas atuações cartunescas faz todo o sentido. Em uma dessas passagens em que o caráter de Nomi será posto à prova, temos uma longa cena de sexo na piscina. Ela é tão exagerada e brega, que chega a ser hilária. Esse é o tom do filme. É quase como se o diretor estivesse falando para o espectador: “Essa é a minha história e essa é a minha protagonista. Se não gostou, o problema é seu”. É compreensível quem não compactue com essa ideia.
Mencionei que o filme tem uma visão peculiar sobre os homens. Na época ele foi apontado como um filme misógino e acho uma acusação injusta. Todos os personagens masculinos apresentados são canalhas da pior espécie, que acham que as mulheres são apenas instrumentos de prazer. E mesmo que as mulheres tenham que se submeter aos seus desejos, elas o fazem por ser a grande regra daquele jogo: o homem é o poderoso. Mas a protagonista renega essa condição durante todo o filme. Até quando está trabalhando como stripper no primeiro ato, ela não baixa a cabeça para o dono da boate. E no fim, ela faz uma ação que mostra todo o seu orgulho feminino em nunca compactuar com essa “imposição” existente no mundo em que entrou. Nomi tem noção que não entrou por conta de seu carisma ou de suas habilidades como dançarina, mas sim por sua beleza.
Não que o filme não tenha defeitos. As atuações são inconstantes; alguns diálogos são horrorosos e a trilha vai do breguice para o mau gosto mesmo. Mas mesmo não sendo dos melhores de Paul Verhoeven, ele discute um tema importante e mostra uma realidade que acontece até os dias de hoje. Quantas moças não conseguiram suas carreiras apenas por sua beleza? Quantos poderosos ainda têm a visão da mulher como objeto? Pode ser que a forma escolhida pelo diretor não agrade a todos e é compreensível quem não compre. Mas aos fãs de Verhoeven, vale conferir Showgirls e mostrar que ele não merece o título de Um dos Piores Filmes dos Anos 90. Há obras muito piores e que não têm a relevância que esse filme tem.
Crítica | Cinquenta Tons Mais Escuros
E.L. James conseguiu o mais improvável. E não dúvido nada que tenha acontecido por um feliz acidente do acaso. Tornar um projeto que se iniciou como uma fanfic da saga Crepúsculo em uma das trilogias literárias mais vendidas da História. A história de Anastasia e o excêntrico milionário Christian Grey movimentaram a imaginação das pessoas, seja pela enorme polêmica repercussão na mídia ou com a improvável eficiência da técnica de narrativa da autora ainda amadora.
Como de praxe, tudo que movimenta quantidades massivas de dinheiro na literatura, logo tem seus direitos cinematográficos comprados. O enorme desafio em adaptar uma história bastante erótica com diversas passagens de sadomasoquismo caiu nos colos do centenário estúdio Universal. O dilema enfrentado era a questão monetária. Devido às passagens de sexo que praticamente sustentam toda a relação entre os protagonistas, o filme receberia uma censura alta – algo quase sempre incompatível no desejo dos estúdios com seus blockbusters.
Entretanto, o ano de 2015 seria um dos melhores para a Universal. Dois de seus carros-chefe atingiram a marca do bilhão de dólares em bilheteria. E os fãs de Cinquenta Tons de Cinza foram fidelíssimos, mesmo com as notas abissais conferidas pela crítica especializada. O filme foi um grande sucesso, ainda que não tenha agradado a todos. Com muita polêmica nos bastidores das futuras sequências, a diretora abandonou o cargo que foi conquistado por James Foley, um dos diretores da prestigiada House of Cards. Com muito dinheiro para contornar as crises diversas da produção, é possível afirmar que Cinquenta Tons Mais Escuros é um longa superior ao original? De certa forma, sim, mas ainda deixa muito a desejar como discutiremos em detalhes agora.
Ciclo Sem Fim
Previamente, era esperado que E.L. James, autora dos livros, adaptasse sua segunda obra como roteirista. Porém, quem assume a escrita é Niall Leonard. Como esperado, a narrativa se dedica a mostrar uma reaproximação do casal após o rompimento do contrato no filme anterior. Grey percebe que sua vida fica vazia e sem sentido com a ausência de Anastasia e se prontifica a reencontrar a moça.
Anastasia conseguiu um emprego assistente de um jornalista da mídia independente de Seattle, tentando normalizar sua vida após os episódios intensos com Grey. Após reencontrar a antiga paixão, Anastasia aceita reatar com o milionário, mas sob algumas novas condições em seu contrato: dessa vez, eles terão um relacionamento normal como namorados e Grey terá de mostrar seus segredos mais profundos de seu passado que, infelizmente, ressuscitará alguns fantasmas que prometem ameaçar a vida do casal.
Mesmo com uma premissa mais interessante em oferecer um estudo maior ao personagem de Christian Grey, o roteiro de Leonard costuma falhar, apesar de manter uma integridade aceitável até metade do segundo ato do filme. Aqui, os holofotes abandonam a protagonista de outrora para oferecer insights dramáticos sobre o passado do homem milionário tentando justificar, em uma versão de boteco da filosofia de Édipo, as taras sadomasoquistas praticadas constantemente pelo personagem.
Sua misoginia de outrora é desconstruída passo-a-passo de modo bastante frisado. Os diálogos continuam bastante expositivos entre as muitas conversas entre o casal. Christian é apresentado como um homem vulnerável e mais humano para Anastasia e, por consequência, consegue virar um personagem com maior empatia por parte do público. Seus ataques de ciúmes e possessão ajudam a criar um humor involuntário em torno de diversas das ações que toma quando confrontado por Anastasia. Claro que seus eventos traumáticos do passado obscuro que flertam com horror, são totalmente clichês, manjados e nunca explorados de fato, já que o roteirista tem imensa pressa para contar uma narrativa deveras simplória.
O personagem expõe os abusos sofridos por conversas que rapidamente são interrompidas ou através de algumas situações bregas para definir certa ‘transformação’ como quando desenha limites em seu corpo cheio de cicatrizes para que Anastasia possa tocá-lo e demonstrar afeto amoroso. O maior progresso do trabalho de Leonard é mesmo desenvolver Grey no limite da possibilidade que o material base oferece. O personagem cresce solidamente tentando se livrar dos vícios sadomasô – mesmo que nada disso seja mostrado em tela, apenas discutido em diálogos.
Aliás, um dos pontos mais criticados de Cinquenta Tons de Cinza foi a péssima qualidade que os diálogos carregavam. Aqui, há certa melhoria. Como o filme inteiro acompanha a dinâmica do casal praticamente investindo somente cenas nas quais os personagens contracenam, a maioria deles se concentram em joguinhos de sedução apaixonados, propostas de audácias sexuais e muita, mas muita discussão de relacionamento que trazem à tona as breguices genuínas da franquia. Raramente isso é quebrado quando ambos encontram outros coadjuvantes totalmente pálidos, mas que trazem conflitos mais pertinentes para tirar o filme de um marasmo repetitivo dessas conversinhas.
A volta dos que não foram
Os personagens que quebram o ciclo insuportável de "confidências amorosas > sexo > discussão de relacionamento > sexo > confidências amorosas/passado obscuro de Grey > sexo" também são pálidos, porém injetam mais vida ao filme. Três pontas antagonistas fazem presença para mover um conflito externo ao casal. O mais interessante e funcional é o chefe de Anastasia que claramente tem segundas intenções para com a moça. Jack Hyde é justamente o monstro sob a pele da inocência. Seu nome é referência direta ao romance O Médico e O Monstro no qual o protagonista Jakyll é possuído diversas vezes pela sua personalidade assassina, Hyde. É algo bem rasteiro, no nível da escrita de E.L. James.
Apesar do potencial que o personagem poderia ter em tornar a relação de Anastasia com Grey mais interessante e explosiva, autora e roteirista desperdiçam Jack para cumprir um papel clichê de vilão renegado obsessivo que deve dar as caras no próximo filme.
As outras duas personagens que também tentam desestabilizar o romance protagonista acabam prejudicadas pelas más escolhas de Leonard em não investir tanto tempo para que elas se tornem criveis. A primeira é Leila, uma ex-submissa obcecada por Christian Grey. Tão logo, ela passa a perseguir e tentar machucar Anastasia. O problema é que essa mulher é considerada uma grande ameaça latente, porém Leonard parece esquecê-la completamente por enormes segmentos do filme. Mesmo que haja propósito em sua existência ali, o espectador nunca levará a sério uma antagonista tão ausente por tantos minutos de projeção.
Na conclusão de seu arco, praticamente nada é aproveitado. Gera um conflito tosco e injustificado entre os dois personagens que também logo se resolve em uma das muitas sessões de sexo de reconciliação. Por fim, Kim Basinger encarna a cougar Elena Lincoln, a srta. Robinson – referência de A Primeira Noite de Um Homem – de Christian Grey. A base do conflito de Lincoln com Anastasia é fundamentada com bastante preguiça e seu desfecho é pior ainda ao conseguir transformar uma das últimas cenas em uma verdadeira novela mexicana com direito a tapa na cara e outros clichês do tipo. Impossível conter o riso.
E a protagonista?
Bom, toda a trilogia de Cinquenta Tons é a história de Anastasia. Mesmo que aqui a ênfase seja em Grey, Anastasia tem seus momentos. O roteirista tenta criar uma mulher mais independente, irreverente que tenta virar a dominadora da relação. Infelizmente, o desenvolvimento de Anastasia é bastante fraco devido a enorme inconsistência da escrita de Leonard. A protagonista praticamente quica por todos os lados continuando sempre restrita ao mesmo lugar.
O texto a transforma em uma bipolar por conta das indecisões sobre a desistência ou a fascinação com as sessões de sadomasoquismo. Não somente com isso, mas em praticamente tudo que ela finge decidir para então ceder a alguma pressão de Grey que acaba em sexo. A compreensão dos terrores do passado de seu namorado também não é algo elaborado. É tudo muito simplório resolvido em diálogos fracos traindo a proposta de transformar Cinquenta Tons Mais Escuros em um filme de drama.
Nem mesmo no núcleo que acompanha seu crescimento profissional, há algum tipo de boa realização. Enquanto o texto se mantém medíocre em contar uma história de namorados como qualquer outra, o filme é ótimo. Se sustenta pelo carisma do casal e das boas tiradas de humor ou pelos pequenos momentos de criatividade nas atividades sexuais com brinquedos. Porém, a partir do instante no qual Anastasia é confrontada por Leila, o filme descarrila.
É uma curva descendente que impressiona os mais céticos dos espectadores. O ápice do besteirol sem sentido surge na cena mais deslocada e tosca do ano: um passeio infeliz de helicóptero com Grey. Sua função é provocar uma catarse básica sobre tempo e vida para Anastasia, porém tudo é resolvido de modo tão pateta e inacreditável que eclipsa até mesmo o joguinho de sadismo psicológico que a protagonista arquitetava contra Grey. Novamente, é difícil conter o riso.
Nisso, ao longo das inacreditáveis duas horas de projeção, Anastasia termina exatamente no ponto que o filme começa o que revela uma falta de capricho completa por parte do roteirista ao submeter o espectador na tortura cíclica e redundante que o filme revela ser.
House of Bondage
Se havia algo para ser elogiado em Cinquenta Tons de Cinza, certamente era o trabalho de Sam Taylor-Johnson na direção, além do competente setor técnico do filme. Dessa vez, temos James Foley ocupando o cargo e, estranhamente, consegue ser um trabalho tão bipolar quanto a protagonista.
Por vezes, Foley tem um capricho absurdo com encenação como a famosa (e desperdiçada) cena do baile de máscaras que marca o ponto mais alto do filme. Em maioria, o diretor faz o básico se preocupando em fornecer enquadramentos bonitos. Mas já nesses momentos, em estranhos jogos de plano/contraplano, Foley enquadra os personagens com um enorme espaço vazio no terço direito do plano. É algo que não agrega nada simbolicamente e sacrifica o equilíbrio dos enquadramentos que moldam o restante das cenas. Certamente não é algo que incomodará muitos espectadores, porém é uma imperfeição técnica sem sentido.
Também é bizarro notar como Foley aposta em uma mesma encenação em cenas de “suspense”. Repare, toda vez que a música de Danny Elfman fica um pouquinho mais tensa, a fotografia mais sombria de cores mudas, alguém surge na profundidade de campo, completamente desfocado. Todos os três antagonistas têm momentos bregas com essa mesma encenação já datada que confere roupagem de novelão de Jorge Fernando a uma obra cinematográfica.
Outro detalhe que é uma grande fraqueza do longa são as cenas de sexo. Enquanto Taylor-Johnson conseguia configurar um aspecto único para cada uma das anteriores, Foley basicamente repete o modo de filmar nas que surgem na história. Também é um tanto engraçado notar como o roteiro não é nada inventivo para as atividades ou brincadeiras sexuais que os protagonistas trocam. Cinquenta Tons Mais Escuros é um dos filmes eróticos mais broxantes que eu já vi. Justamente no aspecto de encenação que o longa tinha que brilhar, ele falha espetacularmente.
Claro, Foley traz decupagens que valorizam o corpo de Dakota Johnson e também de Jamie Dornan para fazer o gosto dos espectadores em geral. Não que o diretor nem se esforce em trazer algo mais apimentado para as telas. Em certos momentos, até tenta sincronizar as batidas mais fortes de uma canção com reaction shots de Dakota esbanjado expressões de prazer. Entretanto, é um recurso pífio utilizado em uma cena enquanto as outras carecem de qualquer identidade, além de uma fotografia diferenciada. Filmes dos anos 1990/200 como Proposta Indecente, Infidelidade, Pecado Original ou Instinto Selvagem estão a anos-luz em termos de linguagem visual do que o material apresentado aqui.
Não se trata de pornografia, obviamente, porém cenas que deveriam nutrir sentido ou exalar paixão são totalmente estéreis prejudicando a história de amor proposta. Esses problemas de encenação e montagem assombram outras diversas cenas da obra, principalmente todas as cenas concentradas após o arco do helicóptero.
No que Foley consegue se sair melhor e imprimir alguma identidade sua se dá com as atuações de Dorner e Johson que demonstram melhor química e menor constrangimento em cena. Como as cenas entre os dois são divertidas, o filme se torna fluído até certo ponto no qual se arrasta em uma chatice sem fim. Outro bom elemento, é o design visual bastante distinto do filme anterior.
Enquanto tínhamos uma paleta monocromática emulando os 50 tons de cinza, este aqui conta com cores saturadas acompanhadas pela elegante iluminação de John Schwartzman. O visual abandona aquele clima soturno e secreto para representar a vida de Grey. Tudo é mais “normal” acompanhando a proposta de Anastasia em ter um namoro ordinário com Christian.
Ode ao Nada
Apesar de tudo o que apontei no texto, Cinquenta Tons Mais Escuros não é um filme de todo ruim. O crescimento de Christian Grey como personagem e os doces momentos iniciais do novo namoro do casal conseguem sustentar o filme em um leve tom divertido. A última meia hora é que realmente desmorona a qualidade de uma obra que seria boa em retratar a efemeridade corriqueira de um começo de relacionamento.
Todavia, há muitos erros técnicos, algumas bizarrices de narrativa, os péssimos antagonistas, o mau uso de trilha licenciada que conferem ares de videoclipe para muitas cenas, além da estrutura cíclica irritante para contar uma história tão simples que não exige tantas reviravoltas tontas para estender sua duração.
Em geral, mesmo que o longa consiga agradar, a sensação que perdura no fim da sessão é a do enorme desperdício do filme que se contenta em transmitir nada para o espectador enquanto o potencial de sua proposta amarga esnobado na profundidade de campo, assim como os inimigos invejosos do casal Grey.
Cinquenta Tons Mais Escuros (Fifty Shades Darker, EUA – 2017)
Direção: James Foley
Roteiro: Niall Leonard, E.L. James
Elenco: Dakota Johnson, Jamie Dornan, Eric Johnson, Eloise Mumford, Bella Heathcote, Rita Ora, Luke Grimes, Kim Basinger, Marcia Gay-Harden
Gênero: “Drama”, Erótico, Romance
Duração: 118 minutos.
Crítica | A Sangue Frio
O jornalismo enquanto atividade é algo tão mutável, efêmero e volátil como a sociedade. Pela História, encontram-se diversas e diversas maneiras de exercê-lo, de maneira mais elitista, mais popular, muito texto, pouco texto, preocupando-se com o factual ou encarnando um comportamento oblomoviano. E, se faz parte da História, e é, também, uma criação artística (de grau discutível) corre o inevitável risco da ciclicidade, no bom sentido. Acompanhando os movimentos contra produtos fast, ou seja, as frentes que privilegiam o cuidado à rapidez (slow food, slow travel, slow home…) temos na área jornalística, hoje, a ascensão do slow journalism, que tem como uma de suas diretrizes o interesse maior em ver como as histórias decorrem e terminam do que simplesmente constatar os fatos que as iniciaram. Neste decorrer da segunda década do século XXI é quase impossível não encontrar no passado influências ou referências que sustentam nosso pós-modernismo. No caso, a Delayed Gratification, uma das revistas mais famosas do movimento hoje, tem várias influências óbvias tiradas da The New Yorker, a mesma que possibilitou a formação do New Journalism na década de 60 do século passado.
Dos escritores mais notáveis e fundadores dessa supracitada geração, destaca-se Truman Capote (1924-1984), contista, dramaturgo, roteirista e autor de A Sangue Frio, visto por muitos como sua obra-prima. Publicado originalmente em quatro partes na própria The New Yorker, o grande sucesso da história levou os textos a serem compilados poucos meses depois do seu fim pela editora Random House em 1966. A edição analisada foi a mais recente, publicada no Brasil pela Companhia das Letras, 432 p., com prefácio de Ivan Lessa e posfácio de Matinas Suzuki Jr. Para quem só leu a capa e seu subtítulo mais do que revelador, esses textos são de integral importância para contextualização do livro. O excêntrico autor é uma das figuras mais polêmicas da área em sua época, tanto pela sua personalidade como por sua escrita – criticada ferozmente inclusive por colegas e também pelos escritores da geração beat (Burroughs, principalmente). A apresentação de Ivan Lessa mostra uma fala do escritor que dá o tom perfeito de como era seu caráter: “(…) a verdade é que eu escrevi uma obra-prima”.
Mais do que apenas revelar o final da narrativa, a capa, hoje, gera expectativas, o que pode ser tanto bom quanto ruim. Bom porque o leitor curioso e que não tem problemas com essa atitude vai ficar ainda mais instigado. E àquele que tem problemas levará um soco no estômago, vai (ou ao menos, deveria) amadurecer intelectualmente. Ruim porque pode trazer à tona uma impressão errada: os EUA guardam uma fama macabra pelos casos de serial killers, cada uma mais psicótico que o outro. Com obras como Helter Skelter, de 1974, e o impecável O Massacre da Serra Elétrica, do mesmo ano, fundou-se todo um imaginário de estereótipos. E A Sangue Frio nada tem a ver com isso.
Capote leu uma notinha no jornal sobre um crime em que uma família (o pai, a mãe, o filho e a filha adolescentes) foi brutalmente assassinada na própria casa, em uma pequena cidade do Kansas. Depois de digerir e refletir sobre o conteúdo, o escritor viu nessa pequena e desastrosa notícia algo muito interessante de ser investigado. Então, o autor viaja para a cidade e passa a acompanhar as investigações e a fazer muitas entrevistas com as mais diversas pessoas da cidade. Vale notar que é uma cidade pequena, com menos de 300 habitantes, que mal tinham o hábito de trancar as portas de suas casas durante a noite. Não é surpresa que o choque de encontrar de repente uma família brutalmente assassinada foi avassalador. Capote, entretanto, utilizou uma técnica muito inteligente, porém muito perigosa: as conversas não eram registradas na hora. Não havia anotações em papel ou gravadores. Dizia que tinha uma memória muito boa e era capaz de reproduzir com aproximadamente 95% de fidelidade o que via e ouvia. A proposta era tentar intimidar o menos possível os entrevistados, pensando que um caderno ou um gravador poderia fazer com que as pessoas alterassem seus discursos, não tivessem tanta confiança ou omitissem certos detalhes. Poderia, logo, estabelecer um contato muito mais próximo com o seu interlocutor e, diferentemente de um jornalista clássico, que se atém à fidelidade dos fatos e falas, traçar e penetrar a “alma” dos entrevistados. Justifica o que Capote chamaria da escrita do “romance de não-ficção”, gênero que se gaba de ter inaugurado com esse livro. E, ao mesmo tempo em que produz algo deveras interessante e aproveitável, cria também conflitos literários e éticos.
É dito que o material bruto da investigação é de aproximadamente oito mil páginas de manuscritos. Algo, no mínimo, ilegível. Não há como negar que condensar essa história não é trabalho para um fulano qualquer. Truman Capote já havia publicado quatro romances, e diversos contos e ensaios, ou seja, já possuia um bom (ou mal) reconhecimento no meio literário. O fato é que se somou à massiva quantidade de dados relações muito mais profundas do que a “simples” relação fonte-entrevistador. Capote teve de entrar em contato com os próprios assassinos para poder concluir seu romance e, segundo boatos, teria estabelecido uma relação homoafetiva com um deles, Perry Smith, que é muito humanizado na obra. É notável a diferença de tratamento entre ele e seu parceiro, Dick Hickock, descrito como muito mais brutal, perverso e traiçoeiro. E talvez realmente tenha sido. E reside aí esse grande mistério, essa grande ameaça à credibilidade. E mesmo que Truman Capote sempre tenha se declarado muito mais escritor do que jornalista, a atitude tomada por ele é muito perigosa. E isso sem falar da polêmica que essa perspectiva causou para os outros membros da família Clutter que leram o livro.
Como se já não bastassem essas polêmicas, o produto final, enquanto peça literária, é também complexo e, por vezes, defeituoso. Como um psicopata que executa seu plano torturante, milimetricamente planejado e à sangue frio (diferentemente dos facínoras da história real, que, no final das contas, levaram poucos dólares depois das execuções brutais e impensadas), Capote inicia uma narrativa congelada, truncada. Na primeira da quatro partes do livro, intitulada “Os últimos a vê-los com vida”, Capote usa de quase uma centena de páginas apresentando e descrevendo detalhadamente não só a família Clutter como também outras residências e personagens da pequena cidade. A escrita afiada dilui-se em um detalhismo inepto, assemelhando-se à mediocridade do descritivismo dos piores escritos de Eça de Queirós, por exemplo. Essa ferramenta não serve nem como tempo para respiração, nem como analogia (os usos mais comuns). Teoricamente, seria a parte do romance que mais se aproxima do modelo jornalístico. Porém a abundância de detalhes confronta, novamente, a credibilidade. A não ser sob um olhar virgem, ingênuo que se é possível não torcer o nariz para certas passagens. Seria mais coerente intitular essa passagem de “A Sangue Coagulado”. Imagina-se, talvez, que essas figuras apresentadas tomem suma importância no decorrer da narrativa. E realmente algumas servem como plano secundário para explicação de certas consequências. Destaca-se a equipe policial, principalmente o xerife. Mas nada perto de uma sensação de algo como feito em Watchmen, por exemplo. A cidade, Holcomb, não entra para a lista de personagens.
Por sorte, as próximas partes são menos empelotadas. Capote prefere injetar um anticoagulante eficaz durante a metade da segunda parte, “Pessoas desconhecidas”, ao invés de administrá-lo por via oral desde o início da narrativa. As pedras da leitura se desmancham gradativamente e o fluído pode, finalmente, circular entre o livro e o leitor. A rima entre a forma e conteúdo se torna mais clara, ágil, e o conhecimento invejável do escritor na construção de seus parágrafos fica agradável e, pontualmente, surge um humor sutil, até mesmo em passagens mais absurdas – o que acaba sendo um tanto involuntário, diga-se de passagem. Mistura-se raiva e familiaridade com os dois lados, tanto dos assassinos quanto do lado da família e conterrâneos. Fica bem claro que houve uma desestabilização comercial e social da cidade, mas, repito, soa deslocado e secundário na movimentação da narrativa. Uma movimentação composta de picos e vales. Analogicamente, mais parecido com oscilações barrocas do que com a excitação e os impulsos de jazz. Também, como não ser carregado por essa “síndrome barroca” dentro do redemoinho em que o escritor se arriscou a adentrar? Como não se empolgar e costurar William Steffe e seu Battle Hymn of the Republic, cantado por Perry e Dick no final da segunda parte (“Glory! Glory! Hallelujah!”), com o clássico Hallelujah de Messias de Händel? Ou ainda comparar, já na terceira parte, “Resposta”, ao “Inverno” de Vivaldi, oscilando freneticamente entre núcleos narrativos, colocando a história em um desenrolar de alta velocidade? Sob essa perspectiva, a narração de Capote personifica um caráter cinematográfico: muitas imagens, muito precisas, acompanhadas de trilha e ritmo.
Essa cadência alucinante tem uma freada, não brusca, na quarta parte, onde os assassinos são pegos pela polícia, interrogados, julgados e executados. A marcha diminui gradativamente. É um capítulo do livro muito interessante, pois aborda questões sobre pena de morte, as prisões da época, os tratamentos, o famigerado corredor da morte… Um detalhe soturno fica muito explícito: Capote preferiu a injeção direta do anticoagulante do decorrer da narrativa, mas fica claro que ele adicionara, desavisadamente, pela via oral certas abordagens em relação aos criminosos (em relação à Perry, principalmente) para colocar o leitor em uma situação complicada, de indecisão, raiva ou pena. Trágico, o final também pesa como uma última sequência de um longa, com a imagem de um pôr-de-sol em fade-out e a música em fade-in.
Vale também um comentário sobre a tradução. Sergio Flaksman, que já traduzira seu primeiro Capote aos 18 anos (Breakfeast at Tiffany’s ou Bonequinha de Luxo), retorna em mais um trabalho impecável. Sem subestimar o escritor de A Sangue Frio, mas para quem já traduziu Shakespeare, Philip Roth e Henry Miller, esse caso é só mais uma tarefa. Curiosa, a língua proporcionou para o português o mérito de uma ambiguidade involuntária para o título da quarta parte: em inglês “The Corner”, chegou para nós como “O Canto”. É o canto, o ângulo reentrante formado pelo encontro de duas superfícies, posto a um canto, afastado, desprezado. É o canto, o derradeiro canto, que se calará com o encerramento das gargantas pela oposição do peso do corpo e da tração da forca. Mesmo se as histórias são verdadeiras, A Sangue Frio não é uma obra-prima, mas, para Capote, é, ao menos, “a morte do cisne” do carnaval de seus demônios.
A Sangue Frio (In Cold Blood, 1966)
Autor: Truman Capote
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 440
Crítica | Toni Erdmann
Fazer uma boa comédia é realmente mais difícil do que parir um drama eficiente. Esses dois tipos de histórias têm seus vícios, suas facilidades e apelações, variando de território em território, de cinema em cinema. Fugindo das atualidades que o tempo pode devorar como um salgadinho barato – encarregue-se o jornalismo humorístico dessa seara –, as boas histórias encontram ressonância atingindo os temas universais. Com o passar das gerações e a atenuação dos regionalismos, da truculência explícita do patriarcado e uma consciência maior do que é preconceito, relações possíveis parecem ter se ampliado na sociedade ocidental. Possibilidades que se tornaram clichês, capazes de se engancharem nos momentos políticos, ora atraindo saudosos de uma comédia “proibida” (raras vezes inteligente, mas ao menos expansiva) e uma comédia “jovem” (baseada na repetição do cotidiano, das situações como espelho exagerado da realidade, pelas gírias, caras e bocas, que tomam corpo principalmente nos vídeos e nas arestas que tentam agarrar do cinema). A distância entre Os Trapalhões e Eu Fico Loko é enorme. Mas como soube a alemã (que ironia) Maren Ade construir um filme que, se o grande público der uma chance, encontrará uma das melhores comédias dos últimos tempos. Verdade que a forma levada por Ade está longe de trazer aquela iluminação horrível ou a gritaria das globochanchadas. Porém, soube fazer das ferramentas dos cinemas autorais um catalisador da sua extensa, ao mesmo tempo curta, comédia.
A diretora alemã segue por uma via aberta pelos belgas Luc e Jean-Pierre Dardenne. Os irmãos que outrora fizeram uma das melhores obras em questão de cinema político, Rosetta (1999), parecem ter esquecido da eficiência da câmera aliada à dramaturgia para se dedicarem a um fluxo puramente narrativo no mais recente A Garota Desconhecida. Parecia indicar uma exaustão criativa. A experiência jovial da cineasta de apenas 40 anos, porém, conseguiu reverter essa impressão.
Pai e filha, Winfried (Peter Simonischek) e Ines Conradi (Sandra Hüller) são os dois sóis da narrativa. A filha, uma adulta que está desbravando as perigosas e masculinas matas do mundo dos negócios, trabalha em Budapeste. Ela vive longe do pai, um idoso bonachão que vive na bênção de sua mediocridade, ajudando asilos e escolas com o seu humor performático (ele adora usar dentaduras falsas, perucas, roupas coloridas, alterar a voz) e dando aulas de piano. Com as suas férias, a figura kaufmaniana aproveita para visitar a filha e tentar revitalizar a relação dos dois. E como o humor já é inerente ao seu cotidiano (na primeira sequência do filme, em que a personagem atende a campainha, isso já fica claro), o pai vai tentar usar suas artimanhas para reconquistar o afeto da filha.
O primeiro contato dos dois se dá numa reunião familiar. Ines está apenas de passagem e Winfried, desavisado, chega de uma apresentação com pasta d’água no rosto. A materialidade do palhaço, a maquiagem, ao encontrar as vestes da filha num abraço é automaticamente rejeitada. As marcas de uma figura que transmite o prazer são rejeitadas pelo paletó de Ines.
Durante sua estada com a filha em Budapeste, Winfried ficará, num primeiro momento, apenas na forma de pai. Percebendo que seus esforços de aproximação são inúteis frente à realidade infeliz e por vezes humilhante que a filha enfrenta todos os dias, ele coloca uma peruca longa, dentes postiços, um terno e se transforma em Toni Erdmann – um Tony Clifton sob a identidade de coach. Vestindo as roupas do mundo empresarial, Toni vai se infiltrar no cotidiano da filha com suas mentiras bem intencionadas e chamar a atenção de todos ao seu redor.
Nesse jogo que só aparece de vez no filme depois de uma hora, a câmera sempre próxima mostra a que veio. Sem poder revelar para os colegas que aquela figura estranha é seu pai, Ines fica presa às pegadinhas e situações desconfortáveis que Toni inventa. Os planos longos dão vazão a todo o talento dos atores e da fluidez do texto (roteiro de ferro, é certo; os improvisos aos inexperientes!) que para o espectador são tão engraçados quanto desconfortáveis para as personagens. A câmera raramente se move durante os diálogos, apenas no campo-contracampo, não dando chance para saídas. Como estamos sempre mais ao lado de Ines do que de Toni, a câmera na mão abraça o espectador e instala uma imprevisibilidade iminente, quer dizer, nunca se sabe quando, como ou o que o pai vai fazer para chamar a atenção. E quando chama, não há uma estrutura óbvia de quando cada situação vai durar. Por outro lado, a dilatação incômoda, uma vez hilária, faz com que as duas horas e quarenta de filme não pesem.
A originalidade de Maren Ade é de uma simplicidade notável no cenário do cinema mundial, sobretudo do europeu que povoa festivais. Principalmente porque aproveita o que as raízes clássicas dos norte-americanos tem a oferecer ainda hoje. Seu esmero pelo que está na tela, sem focar no extracampo (um comentário complexo acerca da Europa atual) para além do necessário da construção dos personagens (as dificuldades da mulher no mercado de trabalho) confere a Toni Erdmann status de referência contemporânea. Certamente suas influências não estarão explícitas no futuro, afinal, não inventa nenhuma roda. Ao contrário, exibe sem ostentação nenhuma, a eficiência de suas ferramentas.
Kenneth Lonergan é outro que se arriscou numa escala épica com Margaret, com um processo de montagem e edição conturbado. O filme tinha seus experimentos expostos demais. A ópera era para Lonergan um artifício de busca pelo (melo)drama. Ade, em comparação, parece não fazer força para parir o milagre que é Toni Erdmann, sem usar som extradiegético nenhum. Ainda assim, a música tem papel fundamental em algumas cenas.
Se em Manchester à Beira-Mar há uma das mais difíceis e dramáticas cenas do cinema recente, Toni, com uma festa “diferente” no final e o climático abraço entre pai e filha, invoca todos os tipos de reações com o seu humor inteligente e a sua história de reencontro nada conformista. A risada, taxada de ferramenta passageira, frívola, ou até desrespeitosa sob a ótica religiosa, nas mãos de Ade é a chave perfeita para capturar a complexidade do nosso mundo.
Crítica | Lego Batman: O Filme
O plano de dominação de mercado da LEGO é invejável. Com ótimo olho para negócios com licenciamentos, a empresa dinamarquesa já dava passos certeiros em apostar nos videogames ao trazer marcas como Star Wars e Indiana Jones para adaptação em games LEGO. A expansão de multimídia que a fabricante investiu consolidou um império de negócios especializados em séries de televisão e filmes animados, além dos jogos. A única coisa que faltava era uma expansão em longas metragem blockbusters de Hollywood. Bom, isso até 2014 quando Uma Aventura LEGO surgiu e surpreendeu muita gente com sua qualidade e humor refinados.
Porém, é justamente aqui que entra o olhar empreendedor atento às demandas do mercado. Com o teste da inserção do Batman como um personagem marcante da aventura anterior, a empresa se preocupou em reconhecer a repercussão entre o público para encaminhar um filme exclusivo para o personagem. Dito e feito. Três anos depois, temos a primeira aventura LEGO Batman para os cinemas que prova ser o melhor filme Batman desde a trilogia Nolan.
Meu Super Ex-Arqui-Inimigo
A narrativa de LEGO Batman é bastante interessante por se nortear através de um fiapo de história. Porém o insight do roteiro capitaneado por Seth Grahame-Smith, toca um cerne extremamente profundo da filosofia e psicologia por trás das histórias consagradas do Batman. Na história, acompanhamos Batman prendendo novamente todo seu grande rol de inimigos psicopatas. Porém, no desfecho de uma perseguição, Batman e Coringa discutem por conta das tentativas do vilão convencer o herói de ele é o seu arqui-inimigo mortal, o maior de todos os bandidos criminosos.
Com as negações de Batman, Coringa fica magoado e arquiteta um plano perverso para que o herói se dê conta que, sem ele e os outros vilões, ele não teria propósito em existir. Além de ter que enfrentar uma crise existencial provocada por um Coringa ciumento, Batman adota por acidente um garoto muito entusiasmado chamado Dick Grayson que em pouco tempo vira seu novo aliado, Robin.
Essa breve sinopse é o máximo que é possível revelar sobre a história do filme, pois se encaixasse mais algum detalhe do plano do Coringa, já teríamos chegado na metade da narrativa. Grahame-Smith é um autor muito famoso por suas paródias como Abraham Lincoln: Caçador de Vampiros. Visto que o trabalho muitas vezes é medíocre, seu roteiro em Lego Batman surpreende muito justamente por captar tão bem a essência e o principal conflito do herói que com certeza ofereceria margem para um filme mais adulto do vigilante.
Mesmo com muita simplicidade e diversas esquetes cômicas que justificam os mais de 4 nomes que assinam o roteiro, Grahame-Smith oferece insights valiosos sobre família, solidão e propósito. Como esperado, o Batman é o melhor personagem do filme que percorre uma ótima narrativa baseada em contrastes. Como muito do desenvolvimento ser dá através de jogadas visuais inteligentes criados pelo diretor Chris McKay, o texto é focado em trabalhar com ironias e tiradas que moldam a personalidade narcisista, niilista e egoísta do protagonista. Em pouquíssimo tempo, vemos que o Batman desse universo Lego é um personagem escapista que mais trabalha como vigilante para atender suas necessidades de ego do que realmente salvar a cidade, fazer bem ao próximo.
O drama e o conflito aparecem com passagens bonitas sobre a memória do casal Wayne e alguns outros diálogos com o mordomo Alfred. Dick Grayson/Robin também é outra pérola cheia de bons significados disfarçada pelo humor excepcional trazido pelo roteiro. Smith praticamente transporta toda a excitação que uma criança teria em trabalhar com o Batman nessa versão do Robin apresentada aqui. O desenvolvimento não é tão elaborado quanto o do protagonista, mas é impossível ficar indiferente com a fofura atrapalhada do garoto-maravilha que busca apenas a aprovação de seu pai adotivo. A relação tragicômica que dá margem para abusos non-sense entre os dois é extremamente engraçada marcando um dos pontos mais altos do filme.
Porém, o que faz o trabalho de Grahame-Smith com essa história ser tão bom vai além do tratamento dos personagens e das parcelas iniciais do filme que acompanham o peculiar cotidiano do Batman. Assim como em Uma Aventura Lego, Lego Batman tem plena consciência de que sua narrativa se trata de um filme. Mas aqui, tudo é superdimensionado e mais explícito e, portanto, muitas vezes o filme não se leva a sério inventando algumas saídas de roteiro absurdas, mas que sempre elevam a criatividade do texto.
Amarelo e Preto
E é justamente no quesito criatividade que Lego Batman estoura a mente do espectador. Se você achou Uma Aventura Lego um filme divertido e corajoso, espere para ver o que apresentaram aqui. Já em primeiro momento, o diretor Chris McKay organiza uma enorme sequência de ação que define o tom do filme inteiro: muito barulho, muita ação e muita comédia. Nesse primeiro momento, o festival de referências tem seu início, além de uma ótima quebra de quarta parede. Toda a sequência com Coringa parece flertar diretamente com os minutos iniciais de O Cavaleiro das Trevas Ressurge.
Para reparar quantas referências há nesse filme, garanto que será preciso assistir diversas e diversas vezes, pois o design de produção encaixa desde referências ao seriado de 1966 com Adam West, aos filmes de Christopher Nolan até ao filme do Esquadrão Suicida lançado no ano passado. A Batcaverna é um dos cenários mais repletos dessas pequenas homenagens.
Esbanjando um trabalho precioso pela riqueza visual e do dinamismo das sequências de ação eletrizantes, a especialidade de McKay é o timing impecável. O diretor é veterano de uma das produções mais engraçadas da televisão americana: o seriado Frango Robô que até foi exibido aqui no Brasil pelo curto período de tempo que o Adult Swim ficou no ar na grade do Cartoon Network. Como o seriado se valia de diversos esquetes paródicos elaborados através da animação em stop motion, a experiência que McKay adquiriu foi um grande diferencial.
Trabalhando um humor que consegue divertir tanto adultos quando crianças, McKay trabalha consideravelmente com o slapstick aliado ao non sense principalmente entre os esquetes protagonizadas por Batman e Robin. Porém, mesmo seguindo com o exagero típico da comédia e das cenas barulhentas, McKay constrói um discurso de contraste temático exemplar e bastante óbvio. Dentre a quantidade considerável desse jogo de opostos os que mais se destacam estão a celebração de mais uma noite de sucesso no combate ao crime vs. a solidão pacata da mansão Wayne e, a segunda, um discurso sobre papéis de heróis e vilões. São jogos simples, mas de mensagens edificantes para as crianças.
Com o destaque da proeza técnica tanto do roteiro e direção, Grahame-Smith e McKay praticamente transformam o filme a partir de uma reviravolta nada previsível. Entrar nesse mérito é revelar um pouco das características surpresa do filme, mas vou me ater a poucos elementos, pois é injusto tirar a grata surpresa que tudo isso proporciona. Há participações muito especiais que aumentam o rol e possibilidades de humor. Pela magia do licenciamento da LEGO, temos uma segunda metade inteira transformada em uma aventura perto do que é proporcionado pelo jogo de sucesso, LEGO Dimensions.
É um humor muito inteligente que consegue casar características únicas daquelas participações com a mitologia Batman em geral. Aliás, é preciso enaltecer o trabalho estupendo da dublagem e localização do texto para o Brasil. Muitas piadas são originais para o nosso país, seja com gírias perenes que fazer parte da nossa identidade como cidadãos até encaixando com os costumes de treinamento pesado do Batman.
E a animação? Bom, assim como em Uma Aventura LEGO, a tecnologia empregada pelos animadores se vale do mesmo software que simula a técnica do stop motion. A justificativa da ausência da técnica real é a enorme dificuldade que seria trabalhar, criar e produzir todos os cenários e movimentos com as pecinhas de brinquedo levando a produção a custos exorbitantes, além de prolongar o processo de criação do filme em anos.
Entretanto, isso nada desmerece o estupendo trabalho apresentado aqui. O software ainda constrói digitalmente os cenários com pecinhas de LEGO existentes e graças ao ótimo trabalho de texturas, a animação realmente parece ter sido fotografada e não construída digitalmente em sua totalidade. O lado positivo disso tudo pode ser testemunhado com as enormes e complexas sequências de ação ao fim do longa no qual o humor beira o absurdo. O trabalho de cores e fotografia digital se vale muito de tons quentes, mesmo que haja uma clara predominância de paleta amarelada e alaranjada no decorrer do filme.
Já em termos de design de produção, há outro espetáculo na confecção de cenários em sua riqueza de detalhes, texturas e acessórios, além dos designs únicos criados para os gadgets e veículos do herói com destaque para o Scuttler, um meca em formato de morcego que se transforma no batwing. Com os personagens, há pouco para comentar. Muitos vestem trajes inspirados em outras diversas obras e quadrinhos do Batman, porém Robin e Coringa ganharam um toque de fofura essencial para a natureza de seus personagens nesse universo.
Não somente a condução visual e narrativa é primorosa: a trilha licenciada e original também brilham. A licenciada é funcional e conversa a todo momento com as cenas encaixadas sendo utilizadas como escapes de humor muitas vezes. Já o trabalho composto por Lorne Balfe também assume o tom de referências que predomina no filme.
Suas músicas possuem diversos compassos originais, mas em momentos-chave, sempre há algumas melodias de sucesso consagradas pelas trilhas de Hans Zimmer e Danny Elfman ou até mesmo da música tema do seriado de 1966. O trabalho de Balfe é muito rico e ao aliar suas composições com as outras de modo tão orgânico, tudo fica ainda melhor. Aliás, até mesmo o departamento de edição de som consegue arrancar umas risadas com os barulhinhos infantis que as armas fazem ao disparar projéteis. Torna toda a experiência em uma grande brincadeira animada.
A Casa que o Batman Também Erguerá
Até aqui, só descasquei elogios para a produção que finalmente pode ajudar um pouco o saldo da Warner nesse começo de ano (ou do biênio). Afinal, há alguma coisa desagradável em LEGO Batman? Bom, sim, elementos que certamente retiraram a possibilidade de o filme conquistar a nota máxima. Por vezes, devido ao ritmo muito acelerado, ele se torna um tanto cansativo. Também há um exagera na quantidade de vezes nas quais Batman começa a cantar seus raps.
Tirando isso, estamos diante de uma obra inesquecível que marca um renascimento leve e divertido que o herói tanto merece. Uma obra capaz de marcar desde a infância o quão incrível e rico esse personagem é, em sua máxima versatilidade de conseguir ilustrar histórias tão densas e depressivas quanto narrativas fofas e divertidas para todas as idades.
LEGO Batman: O Filme (The LEGO Batman Movie, EUA, Dinamarca – 2017)
Direção: Chris McKay
Roteiro: Seth Grahame-Smith, Chris McKenna, Erik Sommers, Jared Stern, John Whittington
Vozes originais: Will Arnett, Michael Cera, Zach Galifianakis, Ralph Fiennes, Channing Tatum, Jonnah Hill, Rosario Dawson, Jemaine Clement, Seth Green
Gênero: Comédia, Animação Infantil, Aventura
Duração: 104 minutos
Crítica | Redemoinho
A parceira entre o diretor José Luiz Villamarim, o roteirista George Moura e o fotógrafo Walter Carvalho se mostrou muito produtiva na televisão. Os resultados foram as ótimas minisséries O Canto da Sereia e Amores Roubados, além do remake da novela O Rebu. O que chamava a atenção nessas produções era o tratamento cinematográfico e cuidado dado pelo trio. Aí veio a pergunta de quando essa equipe de ouro iria fazer algo no cinema. Agora estreiam nas telonas com Redemoinho, um longa que mesmo sendo esteticamente muito bonito, peca pela história desinteressante.
Baseado no livro de Luiz Ruffato, o filme se passa durante um dia – mais especificamente o Natal – na cidade de Cataguases, no interior de Minas Gerais. Luzimar (Irandhir Santos) reencontra Gilson (Júlio Andrade), um amigo de infância que se mudou para São Paulo. Durante as conversas, os dois acabam lembrando-se de um acontecimento que mudou a vida deles para sempre.
O roteiro de George Moura é muito irregular. Se ele acerta nos diálogos entre os dois personagens que vão lembrando de maneira orgânica dos acontecimentos e constrói uma boa relação entre eles, acaba errando ao colocar outros núcleos que são inúteis para a trama principal – como o da personagem feita por Dira Paes – e de não saber as vezes para onde ele vai. Em certo momento, o texto fica em dúvida para qual caminho ele está seguindo.
Além de subestimar a inteligência do espectador criando plots twists (reviravoltas de roteiro) que acha que são muito inteligentes, sendo que são óbvias. Não vou entrar em detalhes, mas no meio do segundo ato o espectador mais atento vai descobrir quais são as tais reviravoltas e para quem não entendeu, não tem problema, pois o filme fala três vezes quais são elas para que ninguém saia com dúvida. Se a escolha do roteiro fosse apenas o relacionamento entre os dois, que é um redemoinho de emoções por ter felicidade, amizade, afeto, amor e ódio seria muito mias plausível, mas ao colocar esses enfeites para tentar ser mais inteligente acaba dando um tiro no próprio pé. Além de ter um sério problema de conclusão.
Esteticamente Redemoinho é muito bonito. Diria que a força do longa está no visual. Fotografado pelo mestre Walter Carvalho que junto com o diretor José Luiz Villamarim, criam uma gramática visual que consegue ser mais interessante que o roteiro em si, por contar mais sobre os personagens e o local. Só notar que as cores vistas no longa são secas, não há cores vivas durante toda a projeção que mostra como a vida daqueles personagens naquela cidade são vazias. Há mais características na fotografia que mostram essa sensação de vazio: os personagens ficam na maioria da vezes no canto inferior do quadro, mostrando como eles se sentem inferiores; a própria imagem é estática, a câmera se movimenta poucas vezes; os planos são muito longos, que dão a sensação de ser um lugar aonde a monotonia dita os acontecimentos. É mais um trabalho grandioso feito por Carvalho, que já tem no currículo obras fortes como Lavoura Arcaica, Madame Satã e Central do Brasil.
Mesmo tendo essa gramática na sua mão, Villamarim infelizmente ele não a executa como deveria. Há um excesso de planos longos e do uso câmera estática. Tem momentos que não necessitavam se tão longos e que a câmera poderia ser um pouco mais solta. Não é um trabalho ruim, mas em seus trabalhos televisivos o diretor se saia melhor. A tentativa de ser autoral e a sua escolha estética, acabou o limando. Não é um trabalho ruim, mas poderia ser bem melhor.
O elenco está ótimo. O destaque fica por conta dos dois protagonistas que são dos melhores atores trabalhando hoje no cinema brasileiro e demonstram uma ótima química. O ótimo Irandhir Santos cria Luzimar como um homem que está satisfeito no seu lugar no mundo, mas tem os seus segredos que o fazem se questionar. E o ator usa muito bem o seu corpo, é só notar o seu tom de voz e como Luzimar fica olhando para baixo o tempo todo, que já demonstra que o personagem se sente inferior de certa maneira. Se Santos cria um personagem mais introspectivo, Júlio Andrade faz de Gilson uma figura mais explosiva. Sempre bebendo e lembrando do passado, Andrade cria um personagem que vai se tornando antipático pouco a pouco. Parece que por ter se dado bem em São Paulo, Gilson vê em Cataguases uma cidade atrasada que não terá futuro e seus moradores nunca se darão bem na vida. Quanto mais o personagem bebe, mais intensa é a atuação de Júlio Andrade. Dira Paes está bem, mas não tem muita função no filme enquanto Cássia Kis se mostra pontual como a mãe de Gilson, que em poucos momentos denota como é mal tratada pelo filho.
Mesmo Redemoinho tendo pontos positivos, ele é falho em criar alguma relação com o espectador. A gramática visual cansa em certo momento e o roteiro é irregular. No caso a forma ficou bem feita, mas o conteúdo infelizmente se mostra raso, fraco e desinteressante. Que a próxima investida da equipe de ouro no cinema, seja mais eficaz.
Redemoinho (Idem, Brasil – 2016)
Direção: José Luiz Villamarim
Roteiro: George Moura
Elenco: Irandhir Santos, Júlio Andrade, Dira Paes e Cassia Kis
Gênero: Drama
Duração: 100 minutos