Ninguém estava preparado para o clássico instantâneo que se tornaria Amor à Flor da Pele. Não só os espectadores e a crítica especializada que premiou a grande beleza da obra, mas também o próprio realizador, Wong Kar-Wai, não conseguiu esquecer a triste história de amor que criou com tanto zelo narrativo embalado em uma proposta estética realmente única.
Sequências geralmente funcionam como um verdadeiro pesadelo para todo criador, pois o temos de a obra ficar aquém do original é sempre muito verdadeiro e, na maioria dos casos, o pior acontece. Mesmo assim, Kar-Wai apostou que a história de Chow Mo-wan ainda renderia mais um belo filme.
Dito e feito, eis que nasceu 2046 – Os Segredos do Amor. Apesar de ser uma sequência direta de Amor à Flor da Pele, Kar-Wai forneceu estéticas totalmente distintas para os dois longas, chegando até mesmo a ousar em sequências poéticas sci-fi como uma metáfora para os males que o protagonista reserva em relação ao seu caso amoroso anterior.
Amores Roubados
A essa altura, com dois dos melhores romances do cinema contemporâneo, já nem é preciso afirmar que Wong Kar-Wai se trata de um verdadeiro gênio para retratar todas as belezas e complicações em um relacionamento amoroso. Aqui, o roteirista/diretor apresenta a vida de Chow Mo-wan depois do fracasso de seu proto-relacionamento com a sra. Chan. Lutando para superar o amargor de ter conhecido o amor verdadeiro e não ter batalhado para conquistá-lo, Chow passa seus dias escrevendo novas ficções para o jornal enquanto se envolve diariamente com prostitutas. Até que uma delas se apaixona por ele.
De início, 2046 é um filme confuso pelas linhas temporais distintas que o diretor deseja trabalhar. Uma delas é a da ficção dentro da ficção, adaptando uma história escrita por Chow como uma tentativa de exorcizar todos seus demônios em relação as aventuras amorosas que ocorreram no quarto 2046 do motel do filme anterior. Nitidamente sendo o elo mais fraco do filme, apesar de haver grande investimento por Kar-Wai, essa historieta intermitente logo desaparece para dar continuidade aos eventos de Amor à Flor da Pele durante a década de 1960.
A abordagem visual é muito mais distinta, já que o personagem não está mais aprisionado em um relacionamento angustiante com pouca perspectiva de dar certo, apesar de ser tão intenso. Agora se trata de um renascer para Chow e, portanto, as cores outrora de vermelho tão intenso, se refugiam em solenes verdes repletos de desejo. Em muitas camadas, todo o discurso visual de 2046 ronda os espectros de tons verdes – assim como Hitchcock utilizara no genial Um Corpo que Cai. Aliás, este é um longa que dialoga em alguns níveis com o clássico do cineasta britânico.
Kar-Wai também cessa com a estética restritiva de enquadramentos apertados em corredores ou molduras criadas através do próprio design dos cenários. Tudo aqui é mais livre, leve e solto, com recuos mais generosos e enquadramentos menos fixos de outrora. Toda essa transformação é logo baseada neste contraste absurdo entre o visual das duas obras que, mesmo parecendo uma evolução natural, são bastante distintas – evidente que é necessário ter assistido a Amor à Flor da Pele para entender do que estou escrevendo.
Com essa estética renovada e, particularmente, muito mais agradável aos olhos pelo estilo orgânico – ainda que sacrifique aquelas composições maravilhosas engenhosamente calculadas, a atmosfera de 2046 é tão apaixonante quanto, mas dessa vez de uma chama que já não prefere arder com a mesma intensidade. É um fogo prestes a perecer. Isso é visto pela longa introdução com Chow narrando seus dias de bebedeira e festança para esquecer da mulher de sua vida. Ao se render ao passado, o protagonista parte para outro hotel em busca de um quarto de número 2046. Nisso, acaba conhecendo a prostituta Bai Ling.
Em uma relação ardente, repleta de provocações, Kar-Wai novamente consegue escrever outra história de casais totalmente distinta e repleta de originalidade. Chow, transformado pela dor da ruptura, agora é praticamente um pequeno aproveitador de bons momentos, não se lançando à emoção, ao rush da paixão, como antes. Por conta disso, se torna um manipulador perspicaz, já que seu coração é frio. Isso permite que ele acabe seduzindo Bai a ponto da prostituta, ironicamente, acabar totalmente envolvida na armadilha emocional criada por ele.
Kar-Wai torna Chow um personagem ambíguo desta vez, já que ele nunca pretende enganar a mulher afirmando que aquela relação é apenas passageira, mas também exibe de tantas formas como a química entre o casal funciona a ponto de ambos tentarem machucar um ao outro ao forçarem relacionamentos com cônjuges troféus bastante supérfluos. Felizmente, o roteirista sabe os momentos ideias para intercalar essa curiosa história com outra envolvendo um relacionamento de Chow com uma terceira, a srta. Wang, filha do dono do hotel.
Amores Mortos
Esse núcleo é o que mais explora o voyeurismo de Chow, já que ele é um personagem passivo até cerca da metade do longa, pois somente observa a dor de Wang em investir em um romance proibido com um namorado japonês. Com ‘batidas’ similares a de Shakespeare em Romeu e Julieta, Kar-Wai desenvolve essa penúria completa de Wang como uma mimese do amor que o protagonista viveu em Amor à Flor da Pele.
Todo o investimento inicial desconjuntado desse núcleo logo se faz valer a pena quando Chow acaba atraído por Wang já que os dois partilham da mesma paixão pela escrita de ficção. É um romance mais similar ao do filme anterior, já que Wang é uma mulher comprometida, além de haver muito ênfase no flerte do que no ato de amar. Mas é aí que reside a genialidade da história, pois ao contrário de Chow, Wang acaba seguindo seu sonho e desafiando as normas ‘castas’ da moral chinesa sem se importar com seu próprio futuro.
Com isso, Chow é desmontado e logo volta a conversar com Bai. Aqui ocorre justamente o contrário. Bai é perdidamente apaixonada pelo protagonista, assim como ele era apaixonado por Chan no filme anterior. Ela é disposta a ceder tudo pelo homem que acaba definindo o destino de ambos em uma jogada egoísta, se privando de uma vida amorosa forte por ainda estar preso ao misticismo do chamado ‘2046’, a simbologia do amor ‘verdadeiro’ experimentado com Chan.
É algo bastante belo e complexo que confere uma realidade para essas personagens machucadas de Kar-Wai. Tudo se torna mais inteligente quando o diretor recria alguns enquadramentos e até mesmo cenas icônicas de Amor à Flor da Pele em 2046 – por exemplo, a ótima cena em preto e branco durante uma volta silenciosa em um táxi. O mesmo pode ser dito quando o cineasta trabalha com a contemplação buscando evidenciar contrastes profundos.
O melhor exemplo que posso encontrar acontece quando Chow chama outra prostituta mais voluptuosa que Bai para dormir com ele no hotel. Como os dois são vizinhos. ela observa e depois escuta toda a ação enquanto sofre silenciosamente em seu quarto sombrio. Uma imagem poderosíssima capaz de sintetizar o desequilíbrio de interesses entre os dois.
Por fim, em nível imagético, Kar-Wai também se torna um verdadeiro cínico ao apresentar o futuro tanto de Bai quanto de Chow na figura de uma viúva misteriosa, totalmente elegante e mal resolvida com seu passado, sem conseguir dar o próximo passo para se ver livre do confinamento de um amor já falecido.
Nisso, o cineasta confirma que sua estética mais livre é uma farsa muito bem engenhada – assim como as tramoias vistas em Um Corpo que Cai, pois Chow ainda está totalmente aprisionado, mas agora por algo ainda pior: o idealismo de algo intangível, incurável, insaciável. O verde espectral que permeia toda a fotografia do filme é apenas o reflexo desse desejo de ser amado – não por todas, mas por Chan que já foi embora há tempos. Assim como John é completamente fissurado por Madelaine no filme de Hitchcock, impossibilitado de amar seu ‘verdadeiro’ amor na figura de Judy Barton.
A Beleza do Cinema Maleável
Com 2046, Wong Kar-Wai praticamente define seu estilo reconhecível, apesar de sempre ser tão transformado entre homenagens singelas a mestres admirados assim como explora os limites da sua própria originalidade. O próprio longa revela onde sua ambição acerta e também onde falha, já que apenas a narrativa de 1960 com Chow desperta um interesse bem mais profundo no espectador. Novamente em uma obra repleta de camadas inteligentes e um virtuoso realismo para compreender todas as burocracias humanas envolvendo a paixão do humor, é bem capaz de Kar-Wai ter conseguido criar uma sequência tão boa quanto, ou melhor, que o excelente filme original.
2046 – Os Segredos do Amor (2046, China, Hong Kong, França, Itália, Alemanha – 2004)
Direção: Wong Kar-Wai
Roteiro: Wong Kar-Wai
Elenco: Tony Chiu-Wai Leung, Li Gong, Faye Wong, Takuya Kimura, Ziyi Zhang, Maggie Cheung
Gênero: Drama, Romance, Ficção Científica
Duração: 127 minutos.