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Crítica | 3%

Cuidado: crítica contém spoilers.

Distopias e utopias são representações simbólicas de um futuro remoto. Enquanto essas se referem a uma idealização completa e paradisíaca de como a raça humana se portará no futuro, aquela traz uma visão pessimista, onde temas como opressão e desigualdade social são recorrentes e a segregação de classes é levada ao extremo. As mais famosas obras distópicas que conhecemos, tanto no cinema quanto na literatura, são 1984 e Admirável Mundo Novo, romances de George Orwell e Aldous Huxley, respectivamente, e Metrópolis, de Fritz Lang – um dos filmes pioneiros da ficção científica.

Desde então, tivemos diversas releituras desse tema que culminaram em franquias muito populares entre os jovens e que introduziram alguns temas polêmicos de forma muitas vezes didáticas, como a futilidade, o conceito de meritocracia e outros, citando aqui Jogos Vorazes e Divergente, as quais trouxeram consigo um ótimo conceito, mas que por vezes não se concretizou da melhor forma possível.

O tema entrou em decadência, do mesmo modo que a estética em found footage. E então, em 2015, a gigante do serviço de streaming, Netflix, anunciou que adaptaria um piloto de baixo orçamento lançado em 2011, 3%, para uma produção original de oito episódios, seguindo o ritmo semelhante de outras séries distópicas, como o sucesso Black Mirror. Tal notícia se espalhou pelos quatros do Brasil de forma a causar bastante fervor, visto que seria o primeiro show nacional a entrar para extenso catálogo do serviço supracitado. E eu, como todos os outros apaixonados por entretenimento, não fiquei de fora. O que realmente me incomodava era a narrativa: uma mistura dos ideais meritocráticos defendidos pelos teóricos do século XVI com tecnologia – e mais uma vez o que suas trágicas consequências causariam na sociedade.

O grande problema foram as expectativas: conhecemos o nível Netflix de produção. Sabemos as mágicas que eles conseguem transportar das páginas do roteiro para a tela de diversos aparatos tecnológicos. E assim comecei a assistir a esta série, confesso que fiquei relativamente decepcionado.

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Primeiramente, devemos entender que a tentativa de diversos realizadores – tanto de cinema quanto de televisão – brasileiro tenta trazer elementos da cultura estrangeira e adaptá-los para a realidade, sem se esquecerem de que esse simulacro na maioria das vezes cai no absurdo. Apenas nas últimas semanas, tivemos Sob Pressão chegando às telonas, uma cópia barata da soap opera Grey’s Anatomy, e SuperMax, uma tentativa de transformar a famosa antologia American Horror Story em subtramas brasileiras que tinham como único indício de nacionalidade sua localidade. Felizmente, 3% sucede de forma exímia no quesito identidade: já no episódio piloto, vemos a caracterização de uma comunidade no extremo norte da Floresta Amazônica fadada ao descaso e à mortandade que não se relaciona de forma alguma com as distopias europeias ou norte-americanas. Até a paleta de cores contribui para essa unificação: tons de vermelho, verde e azul contrastam entre si para criar um clima brasileiro e estranhamente onírico.

A história é até bem simples de ser resumida: em um futuro remoto, a sociedade foi dividida em duas – aquela pertencente ao Mar Alto e aquela que se limita aos prédios destroçados de uma favela e de uma sociedade cuja escassez se mostra como símbolo. A cada ano, os jovens que completam seu vigésimo aniversário podem participar do Processo, uma série de provas psicológicas e físicas que selecionará apenas 3% dos candidatos para serem transportados a um novo e melhor mundo. O conceito se mostra bem interessante: mas os deslizes vêm com sua execução.

Em Cubos, o primeiro episódio, César Charlone encabeça a direção geral e usa e abusa de planos holandeses e composições mais fechadas com a câmera na mão, relembrando de sua estética no longa Cidade de Deus, no qual trabalhou como diretor de fotografia. Aqui, a opção por um trabalho mais intimista logo dá lugar a vícios de linguagem monótonos que varrem conceitos muito interessantes para debaixo do tapete. A inclinação dos planos supracitados entra como símbolo para o desequilíbrio e para uma estética mais onírica e irracional, mas aqui é tão mal executada que chega a incomodar. Vale ressaltar que em alguns capítulos, como Água, a utilização dessa estética combina perfeitamente com o tom de flashback da narrativa, onde o roteiro procura analisar o passado do antagonista Ezequiel (João Miguel) e o faz de forma bem construída, mas de forma geral não harmoniza e inclusive desvia a atenção dos espectadores para possíveis metáforas.

Michele (Bianca Comparato), Fernando (Michel Gomes), Rafael (Rodolfo Valente), Joana (Vaneza Oliveira) e Marco (Rafael Lozano) são os protagonistas da primeira temporada, e decidir colocá-los como pertencentes a uma mesma massa foi um tiro saído pela culatra. Mais uma vez, a execução pelo roteiro deixou a desejar – e pior: deixou-os sem personalidade até mais ou menos a metade da série. Vez ou outra era possível perceber nuances em alguns dos personagens, mas colocando-os um do lado do outro, apenas conseguimos pensar que todos eram rebeldes de sua própria maneira, com ressalvas para Joana, que mostrou-se como uma das melhores criações e cujo arco ajudou a conexão entre personagem e público. E aqui, o deslize continua: a química do elenco parece inexistente até os quarenta e cinco minutos do segundo tempo. Michele e Fernando desenvolvem uma relação amorosa ao acaso e sem precedentes, impedindo qualquer compaixão quando os dois se separam no season finale, Botão, sem dizer que Comparato traz pouquíssima expressão para as telas.

Vale lembrar que todos estes erros se desenvolvem no episódio piloto e se alastram para dois episódios consecutivos. Assim que nos acostumamos ao ritmo frenético e não balanceado de uma montagem completamente irregular, os personagens parecem criar uma personalidade e começam a conversar com o público, trazendo-o para a realidade em que vivem, mas infelizmente não permitindo que mergulhemos em suas preocupações. Falando em termos geométricos, nenhum deles realiza uma parábola completa na primeira temporada, mantendo-se na linearidade total.

Um dos pontos positivos reside sobre a paleta de cores, como supracitado. Dentro da instalação do projeto, que aparenta sem bem menor por dentro do que por fora, somos apresentados a contraposição entre o neutro utópico do branco e às cores quentes próprias de uma irracionalidade exacerbada e condenável. Neste momento, estamos no ponto de vista dos antagonistas: do chefe do processo interpretado por Miguel, da chefe da segurança Cássia (Luciana Paes) e da nova secretária-sênior Aline (Viviane Porto), bem como seus inúmeros funcionários: todos eles veem os participantes como bárbaros animalescos que pertencem a uma classe inferior até serem purificados – e nós passamos a vê-los deste modo. A partir do quinto episódio, os tons de azul tornam-se predominantes, talvez indicando uma possível ameaça e angústia para a “sociedade perfeita”, mas que também não se mostra tão presente assim.

As provas deveriam ter cunho psicológico e físico, mas em sua maior parte permanecem no psicológico. Resgatando elementos de Admirável Mundo Novo, os habitantes do Mar Alto não se expressam com tanta facilidade como nós e se assemelham a máquinas pneumáticas: quando o fazem, estão em desequilíbrio, e tudo o que ameaça a paz da suposta utopia brasileira devem ser ignorados – neste caso, são internados no Centro de Tratamento. Os testes têm a intenção de levá-los ao extremo da barbárie para depois ascenderem a um plano quase transcendental de pureza.

Falando deste modo, dá-se a entender que as diversas tramas e subtramas de 3% se desenrolam de forma bem abrangente, mas infelizmente não é isso que acontece. O tema que se supera e que é altamente explorado é a pressão e o transtorno psicológico decorrente da própria escolha individualista inerente ao ser humano – e a melhor representação disso na série emerge na caracterização da personagem de Julia (Mel Fronckowiak), uma das grandes surpresas da série inteira. Seu arco transparece de forma tal maravilhosa que traz mais peso aos ideais medíocres de Ezequiel e que nunca se postam de forma plena em toda a primeira temporada. Enquanto isso: temas como desigualdade são construídas de forma por vezes escrachada, e não metáfora. Talvez se Pedro Aguilera, o idealizador e criador original de 3%, optasse por diálogos menos autoexplicativos e que trouxessem um real significado arquetípico para cena, as coisas tivessem saído de forma diferente; não é difícil criar várias linhas narrativas, o problema é equilibrá-las.

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Infelizmente, para uma distopia, a utilização do verborrágico funciona em partes. Mas para que haja um equilíbrio, faz-se necessário também a ação – e 3% simplesmente não tem nada do tipo. As poucas cenas viscerais são mal coreografadas e servem como catalisadoras para sequências futuras e que nos fazem esquecer do passado. Entretanto, a morte de Marco – uma das composições mais belas de toda a série – trouxe certo ressentimento por parte de seu personagem, o qual mostrou-se como conservador e reacionário durante todo o Processo apenas para cair no jogo corruptível do poder e do comando tirânicos.

Em suma, a primeira série original Netflix brasileira é um ótimo início para futuras criações. E apesar de divertir, não podemos deixar de sentir uma pontada de decepção ao vermos tantos conceitos interessantes jogados ao mar. 3% não chega a ser um simulacro de Jogos Vorazes, por exemplo, por ser identitário, mas tem muito a melhorar – e com uma possível segunda temporada já confirmada, Charlone e Aguilera podem e devem ousar mais.

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Publicado por Thiago Nolla

Thiago Nolla faz um pouco de tudo: é ator, escritor, dançarino e faz audiovisual por ter uma paixão indescritível pela arte. É um inveterado fã de contos de fadas e histórias de suspense e tem como maiores inspirações a estética expressionista de Fritz Lang e a narrativa dinâmica de Aaron Sorkin. Um de seus maiores sonhos é interpretar o Gênio da Lâmpada de Aladdin no musical da Broadway.

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