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Crítica | Ataque dos Cães – Um Terror Psicológico de Masculinidade e Auto-destruição

Possíveis Spoilers à frente!

Há sempre algo de assustador na idéia do desejar. Não o mero sentimento, mas sim a idéia de ansiar por algo, que possivelmente nunca se concretizará, se sequer teremos a chance de o merecer, ou se nossa própria natureza de ser o afasta, ou é impedido pelas forças indistinguíveis do mundo. Um molde que sempre percorreu as narrativas exploradas pela soberba Jane Campion.

Em seu retorno ao longa-metragem desde seu último fabuloso Brilho de uma Paixão (2009), a diretora neozelandesa volta a mostrar a vertente que mais assola seu cinema e histórias: aquelas que envolvem relações conturbadas pelo anseio descontrolado e reprimido pelo mundo a sua volta, com o seu magnífico O Piano ainda se mostrando como o maior exemplar do mesmo.

Seu mais novo Ataque dos Cães (The Power of the Dog) oferece quase que uma visão de fora testemunhando essas relações humanas, impedidas por uma força inexplicável e indescritível. E com essa mesma força recebendo algo mais próximo de uma forma física em sua performance central.

O Funeral do Faroeste

À primeira vista de fato seu filme pode enganar exatamente com essas falsas aparências. No limiar, parece mais uma produção fora da curva vinda da Netflix em outra aposta para o Oscar, e oferecendo o que parece ser um faroeste encoberto por uma aura melodramática, envolto de um elenco de jovens estrelas, os melhores de sua geração.

O que não foge muito à realidade visto que o filme sim assume o faroeste como seu gênero molde, e até evoca uma visão revisionista que já vem preparada e com propósito de desconstruir certos conceitos que aqui são apresentados. Mas enquanto esse tom de faroeste revisionista onde o filme se passa em Montana em 1925, nada mais é do que um pano de fundo para a desconstrução dramática acontecendo em primeiro plano.

Um drama psicológico sobre masculinidade tóxica, refletido numa época onde esse mesmo comportamento se encontra ultrapassado e atua como uma doença viva. E nesse meio, masculinidade é o ponto central mais óbvio do que a trama pretende tratar. E no que se questiona sobre o que realmente significa ser um bom homem.

Para chegar a isso, o filme cria logo uma instantânea dicotomia entre personagens dos irmãos Burbank, Phil (Benedict Cumberbatch) e George (Jesse Plemons), dois rancheiros ricos de renome. E se o primeiro é apresentado como frio, calculista, controlador e másculo da maneira (acertadamente) estereotipada, o outro é gentil, doce, compreensível, que se bota no mesmo pé de igualdade para com uma mulher sem tratá-la com desaforo quando o mesmo conhece Rose (Kirsten Dunst) – em os raros minutos de docilidade e ternura do filme. Que é recebida de forma brusca e nada acolhedora por Phil que a vê como uma mera aproveitadora e ainda destrata seu filho Peter (Kodi Smit-McPhee) com comentários homofóbicos e de superioridade viril.

Isso por si só poderia ter sido toda a estrutura dramática para contar uma história interessante, mas Ataque dos Cães aborda ainda mais elementos e tramas que podem surpreender ao entrelaçar a atenção do público em sua veia de imprevisibilidade construída de forma natural e imediativa. Mas isso é só o mero aperitivo de um começo capaz de ser bem enganador!

Muito dito no pouco dito!

O filme não tem pressa alguma de apresentar seu universo, mas também não perde tempo algum em revelar as complexidades escondidas nas nuances individuais de cada personagem que vão mover a narrativa. Criando-se um ambiente que se forma entre ciúmes e abusos, muito dito no pouco dito.

Enquanto que a personalidade de Phil parece moldada para desestruturar tudo que tenta tomar fruto à sua volta. Ele quer um relacionamento sólido com o irmão, mas apenas se for moldado em seus critérios pessoais, e por ver de forma quase que imatura a presença de Rose como uma invasora que vai sugar tudo que eles possuem, o que se desenrola em todo o miolo central é ele, descontando suas frustrações na forma de um abuso psicológico latente e agressivo.

E isso é empregado de forma natural no contexto que se esconde por detrás de cada olhar e gesto. Há toda uma história do passado que cada um carrega dentro de si e nunca é preciso ser emanada já que vemos seus efeitos reagindo consistentemente ao longo do filme.

Muito do que vem do livro original de Thomas Savage é apresentado com elegância e bem costurado com muito material próprio de Champion, que molda toda a carga de contexto por detrás de cada personagem exatamente como esses segredos e passados reprimidos dentro de si, e que constroem personalidades que parecem todos ter uma desestabilidade tanto emocional, quanto psicológica.

No pouco que realmente temos do personagem de George em cena, Plemons revela tudo que precisamos saber do personagem: um anti-social, alguém que não se encaixa direito na visão de mundo e comportamento ecoando o passado do irmão, que o parece fazer andar em cascas de ovo sempre que passa ao seu redor, incapaz de revelar seus verdadeiros sentimentos ou pensamentos por medo de ser ridicularizado. E reprimido pelo mesmo na forma com que é tratado na base de insultos, embora feitos sem a intenção de ofender, pois Phil claramente ama o irmão, mas parece sempre exigir algo à mais que George é incapaz de dar.

É um recluso que nunca lhe foi permitido abrir o seu eu interior verdadeiro para alguém, mal consegue expressar direito com o irmão com medo de ser julgado, até conhecer Rose que o faz criar uma personalidade própria com atitude. Mas é também falho, um modernista querendo se encaixar socialmente, até força a esposa para uma situação que ela claramente não se sente à vontade em um jantar com um político local. Mesmo que o faça com boas intenções, e o desconforto geral cai na conta de Phil novamente sendo desagradável como de usual, e que piora tudo.

Já Rose é alguém que dá pra contar nos dedos quando seus problemas quando começam a desflorar. Indo do Alcoolismo à pura depressão, andando de mãos dadas. Resultado óbvio da pressão psicológica que ela sofre no tratamento frio que Phil lhe dá de forma quase tortuosa, lhe assombrando com míseros assobios zombatórios ou até um mero ranger de uma porta que o personagem deixa, e que a afetam profundamente, lhe atingindo em um raro momento em que ela apenas buscava uma realização própria.

Com Phil, temos esta presença ameaçadora silenciosa, onde sua ausência fala mais do que sua presença. Mas sempre que ele está na tela, ele emite suas falas de forma estóica e agindo como se estivesse prestes a sacar uma arma a qualquer momento, num verdadeiro estilo do clássico protagonista de faroeste. Buscando realmente ser esse centro das atenções, o chefe do rancho, aquele por quem todos olham, celebra as glórias do passado de seu passado e seu mentor deificado Bronco Henry.

Tem sua imprevisibilidade constante, ele pode ir do cruel ao gentil num piscar de olhos. Exercendo uma intensa força psicológica sobre os outros personagens do filme. Ao mesmo tempo, esse é o tipo de personalidade que você teria visto caras como Marlon Brando interpretando em seu tempo áureo, ou até em uma encarnação mais recente e similar como Daniel Day Lewis e seu Daniel Plainview de Sangue Negro.

Embora Cumberbatch o atue com certo comportamento de estrelismo, dando ênfase aos tiques e à brusquidão do personagem, ele também surpreende com um grau de humanidade tangível por debaixo de toda a sua carcaça performática – a mesma que seu personagem carrega, o que legitima o certo ar de “em falso” que a personalidade e sua atuação sugerem – Phil está ele mesmo atuando.

Em sua preocupação excessiva em querer se comportar de forma máscula e rude, mantendo essa aparência de poder e comando – seria para evitar sua verdadeira orientação sexual enrustida e deixada bem óbvia nas entrelinhas, ou seria realmente uma forma de mostrar esse fator da masculinidade como um elemento definitivo de mostrar personalidade de respeito frente à todos.

Um vaqueiro bronco e áspero, que até se recusa a tomar um bendito banho para parecer másculo, e repudiando tudo que é considerado feminino e frágil, trata como inferior e um sentido de superioridade natural, mantendo uma autoridade com medo de questionamentos de sua legitimidade.

Mas fica bem óbvio como tudo é moldado envolta de um ato, causado por uma profunda insegurança, enchendo sua cabeça com o medo das pressões da sociedade e de não corresponder às expectativas. Seu raro pingo de humanidade se mostra quando seu eu de verdade é exposto à Peter que o leva a começar a agir como um mentor, ensinar ao rapaz a ser um homem de verdade, um vaqueiro como ele, a velar sua fragilidade e criar sua persona de másculo.

Já Peter, que se à primeira vista não impressiona em sua proposital fragilidade em cena, o próprio cria uma atmosfera intrigante e perturbadora tanto quanto, se não mais, que Phil. Que talvez remetam o bronco Phil à reflexos de um passado que ele mesmo suprimiu dentro de si e nunca teve a chance ou a coragem para viver. Peter pode ser apenas o garotinho magricelo, mas ele é tão confiante de si mesmo em um nível intelectual, em um nível emocional, tudo que Phil não é! Há também um claro complexo de Édipo envolvido em sua forte afeição pela mãe e uma atitude super-protetora. Alguém capaz de defendê-la não importa os limites que isso o leve.

Terror e Desejos reprimidos

Um pouco nisso, o filme até lembra um pouco o esnobado Vida Selvagem (Wildlife) de Paul Dano. Não exatamente em história, mas sim no que revela sobre as mudanças fundamentalistas de uma estrutura familiar dentro de um drama que também exprime entre o clássico e o moderno, e como o filho, o personagem central, é quem rege o destino final que a auto-destruição que os seus familiares adultos levaram a si mesmos, claro que por um caminho bem mais esperançoso do que o apresentado aqui.

Mas Dano o fez com uma leveza esperançosa dentre seu melodrama de percursos assustadoramente íntimos, no final o filme de Champion acaba mais se assimilando quando traça uma semelhança com Rastros de Ódio de John Ford, onde também o protagonista central Ethan Edwards (John Wayne), um ser moralmente repugnante em todos os sentidos possíveis, nutre em uma relação com a figura de um jovem que vai contra sua visão de mundo.

Seja a sobrinha de Ethan se tornando uma índia – a raça que o protagonista mais despreza na face da terra no filme de Ford, e aqui o jovem Peter que é visto como um afeminado, que no terço final forma um laço com Phil depois de uma relação de abusos, talvez porque Peter lembre a Phil como ele mais novo, o lado que ele quer enterrar e manter suas crenças intactas. E tal qual como foi com o filme de Ford, Ataque dos Cães mostra essa transição clara do clássico para o moderno.

Champion já é um cachorro velho, e lida com uma penumbra ácida e sombria, embora que coberta com uma carga de romantismo clássico. É muito paciente em sua direção e lida muito na construção gradual de detalhes e implicações, lentamente lançando uma atmosfera sinistra de repressão destrutiva.

O silêncio predominante em várias cenas segue os personagens como uma penumbra, muito remete ao cinema de Monte Hellman em filmes como A Volta do Pistoleiro (China 9, Liberty 37) ou A Vingança de um Pistoleiro (The Ride in the Whirlwind), na tensão pungente e crescente que nunca cessa o ritmo na sensação crescente de pavor. O que aumenta a sensação geral que o filme carrega, de que há algo mal e vil pairando no ar.

Não emanando só de Phil, mas todo o conjunto, o ambiente árido de um calor inóspito preso a horizontes montanhosos labirínticos que vendem um falso senso de conforto, a sombra de um lobo pairando a distância nas montanhas como uma força do mal à vista, a natureza dos homens aflora em seus instintos mais primários, seus passados e dividas emocionais nunca acertadas, o poder sugestivo que uma corda é visto quase como um ato sexual de dominância e sedução, se torna um símbolo tanto de redenção como morte.

Enquanto o anseio oculto por desejo, um toque físico nunca alcançado pois o comodismo da estrutura hollywoodiana não o permite – beijos e abraços são vistos de longe, um ato de sexo é escutado entre paredes, nunca mostrado; um momento intimo de nudez e prazer parece um crime escondido. E nessa latência reprimida, vem-se a violência que paira no ar, no veneno que se espalha e afeta uns aos outros.

Cinema de verdade

O melhor de Ataque dos Cães na verdade é como se mostra ser um cinema que não se reprime por assim dizer, não tem medo de ser um cinema desafiador e estimulante. É bonito e estruturalmente perfeito, encontra sua diretora no topo de suas habilidades em uma produção de luxo, entrega um manjar técnico para os fissionados em estilismo, mas o mesmo é usado para trazer e expressar suas nuances mais dúbias, deixando-as dominar o primeiro plano a todo o estante.

É até desconfortante em certos pontos, você se sente na mesma sujeira que se expele em volta dos personagens. A trilha formidável de Jonny Greenwood exprime uma ameaça latente que parece a espreita a todo o estante prestes a explodir, mas sua atenção nunca deixa de estar instigada para ver até onde tudo vai.

Não se atém a desenhar antagonistas claros para pautar uma mensagem política enrustida, nem entrega conclusões absolutas, há sempre algo a mais a se ver aqui, algo a mais a se notar e sentir, é algo que vai além do próprio plano físico. As sensações de medo e a repudia podem vir de forma fácil da performance mecânica de Cumberbatch, mas também há aquele pingo de simpatia e pena pela humanidade que ele revela em seu comportamento introspectivo.

Ele não é um mero monstro sem escrúpulos, há uma legítima sensação de tragédia envolta dele. Enfrentando sua própria pequena história de um estudo de personagem sobre um homem lutando com sua própria natureza e existência. Há até mesmo uma sugestão de uma mudança esperançosa no final de que ele parece ter alcançado, não visto pelos outros personagens, o que cimenta seu destino final antes que sua realização catártica se concretize no filme, e todo o ódio e desprezo que possamos ter sentido por ele no início, desaparece em um sopro de dúvidas.

E junto com ele, e a personalidade máscula de um vaqueiro do velho Oeste antigo que ele moldou para si mesmo, também se vão esses símbolos da masculinidade se perdendo, dos broncos e cuspidores de tabaco, de uma sociedade perdida e com valores se reformulando. E alguém que não aceita essas mudanças, tentando defender e passar a impressão de uma masculinidade já morta à décadas e vivendo como uma doença para as pessoas a sua volta, se torna o velho cão sarnento, pronto para ser poupado de sua dor com um golpe final de misericórdia final.

Basicamente você pode facilmente resumir Ataque dos Cães como essa fábula ala O Meu Melhor Companheiro (Old yeller) para adultos, escondido dentro de uma história sobre as forças destrutivas para manter a força e o controle sobre a mudança. Mas, no final das contas, tudo se resume a que seu título sugere e atinge o cerne do filme:

“Livra a minha alma da espada e a minha predileta, da força do cão.” – Salmos 22:20

Um salmo da coleção de David, o mesmo David que derrubou o gigante Golias em uma vitória que parecia impossível, da mesma forma que Peter derrota Phil não na força física, mas na força intelectual.

E que na interpretação básica, a espada é o poder do cão do titulo original, o poder e influência negativa que Phil emanava para todos a sua volta: o comportamento recluso de George; a recaída de Rose de uma mulher doce e respeitosa para então se tornar uma alcoólatra, deprimida em uma desoladora destruição auto-infligida; e o gentil, culto e puro Peter acaba se tornando um assassino à um passo de se tornar um psicopata na conclusão do filme; o poder de Phil vem de humilhar e destruir a alma das pessoas! Enquanto que sua “predileta” claro seria sua mãe, no  propósito de Peter de tirar a força negativa de perto para que ela e George possam finalmente usufruir de uma vida feliz.

Mas Peter ao se recusar a aprender esses ensinamentos que Phil lhe passa de como ser um homem de verdade frente ao mundo, se recusa a construir essa personalidade máscula forjada na força viril. Livrar sua alma da espada, livrar sua alma – o seu eu verdadeiro, dos ensinamentos de Phil. Matar seu pai simbólico que lhe ensina os meios de ser um homem à moda antiga, e com ele, enterrando um passado, para deixar o futuro se forjar.

Em um mundo onde alguém pode enfrentar imensas adversidades e pressões da sociedade para se encaixar e conformar com o que se espera de um homem em seu ambiente e estrutura social, com medo de ser insultado e excluído por seus inimigos e opressores – essa exclusão e alienação é o poder do cachorro – do titulo original!

Talvez Ataque dos Cães não funcione em tudo aquilo que se propõe, talvez deixe a desejar em uma plena realização de alguns personagens, com Plemons deixando a desejar por se sentir um pouco desperdiçado num todo que consegue absorver e extrair muito de Dunst, Cumberbatch e McPhee em bom pé de igualdade. E talvez essa seja o único ponto de possível implicância dentro de um filme onde todas as peças postas em sua proposta se encaixam perfeitamente.

Todos os elementos que formam um tipo de cinema que dificilmente não se torna memorável. É algo que fica consigo por um bom tempo depois de assistir, e atualmente isso definitivamente não deve ser reprimido!

Ataque dos Cães (The Power of the Dog, Reino Unido, Canadá, Austrália, Nova Zelândia, EUA– 2021)

Direção: Jane Campion
Roteiro: Jane Campion, baseado no romance de Thomas Savage
Elenco: Benedict Cumberbatch, Kirsten Dunst, Kodi Smit-McPhee, Jesse Plemons
Gênero: Faroeste, Drama
Duração: 126 min

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Publicado por Raphael Klopper

Estudante de Jornalismo e amante de filmes desde o berço, que evoluiu ao longo dos anos para ser também um possível nerd amante de quadrinhos, games, livros, de todos os gêneros e tipos possíveis. E devido a isso, não tem um gosto particular, apenas busca apreciar todas as grandes qualidades que as obras que tanto admira.

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