Poucos antes de atingir o ápice do caos do cinema político com Week-End à Francesa, Jean-Luc Godard mostrou sua face esquizofrênica com a inteligente sátira trazida por A Chinesa, seu primeiro filme verdadeiramente político se aproximando do ideal artístico de Bertolt Brecht. Digo esquizofrênico, pois aqui o diretor está totalmente focado em desconstruir a face pedante de jovens revolucionários de esquerda acomodados em todo o conforto burguês enquanto conspiram pela sangrenta revolução que nunca chega. Nada comum com a loucura ideológica que ele aborda em seu próximo filme.
Como geralmente gosta de fazer, Godard trabalha com uma farsa que só é revelada na culminação do clímax da obra. Antes disso, a maioria do longa trabalha com bastante seriedade o que os cinco jovens estudantes pregam entre diversas reuniões e aulas teóricas oferecidas por si mesmos em um método autodidata focado em preencher, também, diversos egos.
Maoísmo da Juventude
Godard traz a história de uma república de cinco jovens que moram juntos, totalmente aficionados pelas filosofias e pelas reformas políticas de Mao Tsé-Tung sobre o comunismo marxista-leninista. Três rapazes e duas garotas então passam os dias estudando ao máximo a ideologia na tentativa de aplicar o método do comunismo chinês na França.
Em toda sua filmografia, o diretor procurou ser engajado com a política sempre apresentando seus pontos de vista através de enfadonhos monólogos entre diversos personagens chegando ao ápice da monotonia com Masculino-Feminino. O problema mais evidente era que essa exposição massiva de ideias carecia sempre de conflito nos diálogos, tornando tudo muito artificial, como se fossem registros de diários pessoais do diretor.
Isso é muito bem resolvido em A Chinesa já que o grupo constantemente entra em discordância através de suas muitas discussões. Como cada personagem tem pontos de vista bastante distintos, o choque de ideias e o amor compartilhado por Mao oferece um dinamismo agradável para os diálogos bem escritos, por mais que o espectador discorde deles.
A fina ironia de Godard aqui se concentra na figura invisível de um entrevistador que parece realizar um documentário sobre o grupo. Ou seja, A Chinesa, além de ser um ótimo filme, é um exercício de metalinguagem bastante interessante. Através dessa abordagem de documentário, novamente temos enquadramentos elaborados para tal, além de Godard oferecer valiosos insights sobre a história pessoal de alguns personagens em nível bastante satisfatório, os tornando mais complexos e verossímeis.
É bem capaz que esse seja o longa com melhor tratamento de personagens desde O Desprezo, filme de 1963. De modo sutil, Godard quer exibir a diferença do discurso dos personagens com a prática. Todos os sonhadores apenas ficam no nível intelectual da masturbação psicológica imaginando a utopia comunista perfeita. O único trabalho deles para começar a converter os franceses é a distribuição gratuita do Livro Vermelho para transeuntes.
Godard também é competente para não focar somente na ideologia do grupo ao trazer as relações amorosas de cada um deles exibindo certa inocência sobre a vida e o funcionamento do mundo. Isso é evidenciado com a culminação inevitável do grupo pender ao radicalismo apelando para métodos terroristas para difundir suas ideias que o mundo parece não estar nada interessado.
Com muita pureza cinematográfica e maturidade como realizador, Godard insere uma sequência formidável na qual um comunista um pouco mais velho conversa com a líder do grupo durante uma viagem de trem. Diversas verdades são ditas que conseguem abalar firmemente com o âmago da personagem que se recusa a escutar os conselhos lógicos de um homem mais experiente, decidindo manter a contradição do discurso sobre a educação que transforma para apelar a forma mais covarde de violência.
Já desfazendo por completo a força ideológica dos garotos que somente a usam como ópio para escaparem da solidão, Godard ainda vai além com o final do longa estraçalhando completamente as esperanças do grupo que se vê obrigado a enxergar a cruel realidade repleta de indiferença para seus sonhos pueris. O fechamento do longa por si já é espetacular ao tratar o Livro Vermelho, até então visto como item religioso pelos estudantes, como um panfleto qualquer, abandonado na sacada de um apartamento que já havia sido recipiente de projetos utópicos.
A Política de Godard
Sem a menor sombra de dúvidas, A Chinesa é o melhor filme político de Godard na qual ele enfim consegue abordar seus pensamentos com um didatismo agradável através de diálogos bem estruturados repletos de choques de ideias e fervor juvenil. Há sequências satíricas repletas de humor inocente, além de uma pose impagável do elenco tentando almejar posturas adultas para esconder a insegurança típica dessa fase da vida.
Quando Godard finalmente consegue colocar suas ideias em ordem no papel, o resultado é arrebatador de tão eficiente. Uma pena que isso aconteça poucas vezes na filmografia desse diretor tão imprevisível, pois A Chinesa é tão antagônico à Week-End que é difícil acreditar que foram realizados em sequência.
A Chinesa (La Chinoise, França – 1967)
Direção: Jean-Luc Godard
Roteiro: Jean-Luc Godard
Elenco: Anne Wiazemsky, Jean-Pierre Léaud, Juliet Berto, Michel Semeniako, Lex De Bruijn, Omar Diop
Gênero: Comédia, Drama
Duração: 95 minutos