Todos sabem quem comandava e governava a Alemanha na 2ª Guerra Mundial. Muitos conhecem também que era o presidente “atômico” Roosevelt que estava na sala oval durante a guerra. E claro, o aliado de Hitler, Mussolini, infestava a Itália com seu ódio incabível. Além deles, Stalin mandava seus soldados para a morte certa. Mas se olharmos para trás, durante nossas aulas de História, quem estava segurando a onda na Inglaterra? Alguns podem até saber quem era, mas muitos desconhecem a personalidade que foi o Rei George VI, o rei gago.
A II Grande Guerra está prestes a explodir na Europa. O rei George V está doente e caminhando para a morte. Futuramente o herdeiro do trono, o breve Rei Eduardo VIII abdica e deixa o comando para seu irmão mais novo, Albert Frederick Arthur George, ou Bertie, para os mais íntimos. Bertie sofre de gagueira constante que não permite sua fala em público, exatamente no momento em que o povo mais precisa de uma voz em tempos de crise. Para evitar futuras tragédias, Elizabeth, sua esposa, procura um especialista em problemas de voz fora dos padrões, Lionel Logue, que promete curar a curiosa gagueira do rei temperamental.
Gago na medida certa
O roteiro escrito por David Seidler parece ser centralizado no tratamento da gagueira de Bertie. Mas, na verdade, o foco narrativo se concentra totalmente na amizade de Lionel e Bertie. E é justamente o desenvolvimento conturbado, cheio de brigas e desabafos, que encanta o espectador ao longo do filme.
Uma coisa que o roteirista gosta de relevar é a apresentação de seus personagens. Repare que Bertie é apresentado como uma figura constrangida, incapaz, tímida e nervosa, enquanto seu irmão, Edward, entra em cena aterrissando um avião com muita confiança, um personagem digno de ser rei. E por fim, o “humano” da história – Lionel, que aparece, assim, saindo do banheiro para receber Elizabeth.
A experiência adquirida pela gagueira que Seidler sofria, permitiu que o roteiro se aproximasse de uma maneira realista, mostrando as causas cruéis que a causam e suas diferentes intensidades dependendo do meio. Explicando melhor, no ambiente familiar é quase ausente, em lugar público, é constante e intensa.
David prefere assumir o tratamento pela comicidade dos métodos de Lionel, um menos ortodoxo e caricato que o outro, mas, que, realmente existem. Eu já fui gago quando criança e fui tratado em apenas uma sessão na base do terror psicológico.
Como todo bom inglês, Seidler soube paparicar a família real. Ele expõe as relações desequilibradas da família real de forma muito sucinta, mas sempre imunizando Bertie da frieza retratada pelo Rei George V, sua mãe Maria de Teck e seu irmão assumindo os postos de antagonistas. Quando tenta explicar as causas da abdicação do trono por parte de Edward, faz sem enfatiza-las passando quase despercebida para os olhos menos atentos. Entretanto, retrata como a corte adora “entreter” o Rei – a única crítica do filme para com a Realeza até então. Ao contrário do ambiente cruel da família real, as famílias de Bertie e de Lionel convivem com muita harmonia sempre transparecendo união e solidariedade.
Seidler também consegue uma proeza surpreendente em seu roteiro conseguindo transformar um personagem completamente desinteressante e apático em um protagonista único, peculiar e encantador. Alias, praticamente todos os personagens são carismáticos o suficiente para despertar a atenção do espectador, principalmente o trio principal da obra.
Fora os personagens espetaculares, os diálogos são igualmente importantes, ricos em detalhes e memoráveis. Eles tendem a puxar para a comédia na maioria das vezes, com os debates entre Logue e Bertie – os melhores do filme. Mas quando o drama aparece, consegue criar um impacto profundo chegando a emocionar o espectador. Por exemplo, a cena que Lionel vira um psicólogo para Bertie. Também é importante citar que muitos dos diálogos entre o especialista em problemas da voz e o Rei foram tirados diretamente do diário de anotações do Lionel Logue real.
Do you know any jokes?
No primeiro diálogo que Colin Firth se encontra com Geoffrey Rush existe uma frase extremamente irônica. Firth diz que timing não é o forte dele: “Timing isn´t my strong suite”, quando na verdade seu timing é perfeito e preciso. Ele arrancou toda experiência que ganhou trabalhando em peças de teatro, utilizando, várias vezes, expressões corporais. Sua atuação é lotada de detalhes que surgem a cada cena deixando-a mais forte. Por exemplo, seus olhares e expressões contidas de terror e desespero evidenciam o enorme conflito interno que o personagem passa – é bem evidente isso na primeira cena do filme. Sua postura durante a maior parte do filme é um pouco curvada que lentamente vai se corrigindo conforme a autoconfiança do Rei começa a aumentar. E claro, o maior destaque de sua atuação – a gagueira, esta vem de forma tão natural e espontânea para ele, que é difícil acreditar que realmente esteja atuando. Ele soube ilustrar muito bem as exigências do roteiro no controle da gagueira e nos compulsivos sons guturais com uma dicção perfeita carregada de sotaque, provando o trabalho intenso que teve para exercitar a voz.
Geoffrey Rush é outro espetáculo a parte também utilizando diversas vezes técnicas tiradas do teatro. Ele diverte o público com seu personagem extrovertido, cheio de caretas e respostas elaboradas nos diálogos com Firth. Na verdade, os dois atuam em uma relação de mutualismo (entenda-se aqui a diferença entre o rei e o plebeu). Um depende do outro para brilhar tanto que as melhores partes do filme são as que eles contracenam juntos – uma verdadeira aula de teatro clássico. Helena Boham Carter voltou a ser humana deixando de interpretar os seres fantásticos de seu marido Tim Burton. Ela atua de maneira bem contida e elegante coerente com seu papel, além de conseguir aproximar sua personagem do público graças ao carisma proporcionado a sua personagem.
Timothy Spall interpreta um Churchill caricato cheio de caras e com uma voz cavernosa – muitos críticos disseram que seu personagem se assemelhou muito com a personalidade histórica. Guy Pearce interpreta Edward, criando um personagem arrogante e insosso assim como o verdadeiro. De vez em quando, arrisca o carisma e surpreende, principalmente na cena que se passa em Balmoral Castle onde solta a sua melhor frase: “Po-po-po positively medieval”. Derek Bishop também entrega uma atuação acima do normal encarnando o Arcebispo Cosmo Lang.
Um passeio fotográfico
A fotografia de Danny Cohen é pálida, fria e bucólica. E transforma sua iluminação de sombria para clara de acordo com o progresso do tratamento de Bertie e da amizade com Lionel. Também gosta de inserir elementos como a névoa a fim de deixa-la com um ar fantasmagórico e de depressão assim como Bertie no início do filme e do período pré-guerra.
Trabalha várias vezes com espaços apertados como corredores e quartos pequenos principalmente na casa do protagonista conseguindo passar a impressão sufocante da gagueira incômoda do personagem. Com esse efeito, consegue contrastar a identidade única do filme com vários outros que abordam essa temática da “família real inglesa” onde tudo é dourado, esplêndido, exagerado e enorme, tão grande quanto o ego inflado dos reis caricatos.
Fora isso, enfatiza a profundidade em seus planos inserindo alguma fonte luminosa no fundo da imagem criando uma perspectiva muito interessante e densa. O melhor exemplo de profundidade e perspectiva que posso dar é a caminha de Logue e Bertie no parque. Mesmo que essa cena não utilize o principio da fonte de luz que apontei anteriormente, usa a nevoa a seu favor trabalhando os diferentes níveis de nitidez das silhuetas dos figurantes espalhados pelo cenário.
Talvez o maior mérito da direção de arte tenha sido encontrar as maravilhosas locações em que o filme foi rodado. Ao contrário do que muitos pensam o consultório do Dr. Logue não é um cenário criado especialmente para o filme, mas sim uma locação já utilizada pela Amy Whinehouse. Foi bem decepcionante ter descoberto isso. Todavia, eles realizam um trabalho impecável na composição dos cenários, ou seja, nos objetos que os atores interagem durante o longa, principalmente as réplicas dos microfones.
Um cenário que impressiona muito pela riqueza de detalhes e fidelidade histórica é o das ilhas de transmissão de rádio – esse sim foi trabalho da direção de arte. O figurino também é muito bem feito, mas a roupa da coroação do Rei George VI é simplesmente de cair o queixo de tamanha beleza.
A música que dá voz ao Rei
Alexandre Desplat já é familiarizado com a nobreza. Ele compôs a excelente trilha de “A Rainha” e repete a fórmula do sucesso neste filme. Suas composições ilustram a gagueira do Rei de maneira bem discreta, mas sempre carregadas de sentimento.
Repare que em boa parte das músicas existe uma repetição de notas e escalas contextualizando com a monotonia e repetição das sílabas e de sons que saem da boca do Rei. Algumas até contam com uma longa pausa completamente sem som, apenas com um violino constante e cruel a fim de deixar a cena mais angustiante como a que se passa no Estádio de Wembley e também retratar o problema de comunicação que o Rei sofre.
Muitas vezes, a música de Desplat ganha um reforço com a ajuda de Beethoven e de Mozart. Isto dá uma profundidade dramática e histórica inigualável ao filme porque um compositor é alemão – a nação que estava em guerra com o mundo era a Alemanha e Mozart é austríaco – Hitler também era austríaco. Isto consegue gerar uma ótima discussão sobre a proposta surpreendente da escolha das músicas destes compositores serem inseridas em um filme inglês sobre este período. É exatamente por este motivo que a cena do discurso do Rei é genial onde o 2º Mov. da 7ª Sinfonia de Beethoven casa com o ritmo da fala menos vacilante do Rei dando arrepios a quem assiste.
Os efeitos sonoros também são um show a parte, apesar de marcarem presença raramente. Eles são muito perceptíveis logo na primeira cena do filme onde a voz de Bertie é ecoada no estádio graças às caixas de som e os microfones precários da época.
Reapresentando o teatro clássico ao cinema
Tom Hooper surpreendeu o mundo quando levou o Oscar de melhor diretor do ano. Nem mesmo eu esperava que ele levasse. Sua direção realmente é muito boa e chama a atenção em diversos detalhes. O mais notável é a sua escolha de enquadrar os personagens no canto da imagem, conferindo um ar original a sua película.
Outra coisa é sua maneira de filmar muitas cenas com planos abertos para mostrar toda a atuação teatral de seus atores, até mesmo a movimentação fantástica de Geoffrey Rush pelo cenário denotando sua linguagem corporal. Ele também gosta muito de enfatizar os gestos e expressões de seus atores, como os closes na boca de Firth. Além disso, consegue transformar o microfone no maior vilão da história com closes exagerados sempre colocando-o entre o Rei e a platéia, deixando claro que o microfone também é uma das causas do nervosismo de Bertie. Algumas vezes, sua edição consegue ser criativa e inteligente, por exemplo, a cena do inicio do tratamento de Bertie quando a câmera aproxima a imagem no sofá e depois a distancia novamente, mudando o exercício de locução que os dois praticavam.
O maior mérito de Hooper foi ter conseguido criar um filme que agrada ao mesmo tempo os mais críticos quanto ao público casual.
Finalizando o discurso
“O Discurso do Rei” é um filme que ensina teatro clássico aos espectadores. Tenha isso em mente quando for assisti-lo, não vá esperando coisas revolucionárias ou pirotecnias hollywoodianas. Ele é feito nos moldes clássicos do cinema, o que não é uma coisa ruim no meio tantas idiotices sem qualidade e despretensiosas que bombardeiam o cérebro do espectador todos os anos. Eu o recomendo para todos que quiserem ter um bom divertimento no cinema, àqueles que estiverem curiosos a respeito do vencedor do Oscar de Melhor Filme de 2010 e também aos que realmente querem absorver toda a história e cultura que ele tem a oferecer. E, claro, a todos que quiserem descobrir o porquê de Colin Firth ter ser tornado o dono de tantos prêmios como melhor ator. E que saiam como eu saí – certos que, através da amizade, todas as dificuldades podem ser vencidas.