Não sei se já deu para notar à essa altura, uma certa marca percussionista que vem fazendo parte dos ditos filmes de máfia e crime ao longo dos anos. Aqueles filmes que se propõem a mostrar em suas tramas o submundo da vida criminosa e daqueles homens e mulheres de moral duvidosa que o habitam, em constante luta contra o sistema de justiça que os caça e julga como podres da sociedade. Um subgênero, por assim dizer, que assumiu várias formas ao longo dos anos do Cinema, e continuou evoluindo até hoje. Vindo desde os tempos áureos de O Grande Assalto ao Trem repercutindo para o cinema Noir e o Western com seus anti-heróis em constante luta moral, depois indo para os filmes policiais truculentos dos anos 70 e 80.
Hoje, creio estes que parecem assumir duas patentes diferentes. Uma estabelecida por Martin Scorsese, que nasceu em Caminhos Perigosos e depois tomou forma com Os Bons Companheiros, onde mostra o sistema criminal da máfia como uma força operante impregnada e enraizada dentro da cultura e da política em de um meio social vivendo em uma deterioração de sanidade e moral humana, que viria a se repercutir mais tarde em seus sucessores Cassino e O Lobo de Wall Street, e os outros tantos filmes inspirados nos mesmos.
Enquanto a outra, se deriva do que Quentin Tarantino estabelecera tanto em Cães de Aluguel quanto em Pulp Fiction, os thrillers de crime que não são thrillers de crime. Filmes que se usam de sua faceta do subgênero para explorar perspectivas dramáticas e humoradas de personagens por vezes complexos (quando bem escritos) dentro do submundo do crime. No caso do até então estreante Martin McDonagh, o mesmo bebe dessa fonte, como Guy Ritchie e Matthew Vaugh também fizeram no início de carreira antes dele, e talvez mostrava aqui no seu Na Mira do Chefe querer ir um pouco além dessa técnica.
A trama tem início logo após os matadores de aluguel Ray (Colin Farrell) e Ken (Brendan Gleeson) acabam de realizar um “trabalho” em que tudo deu errado. Para esfriarem a cabeça, seu chefe Harry (Ralph Fiennes) os envia para a pequena cidade turística de Bruges, na Bélgica. Enquanto aguardam o telefonema chamando-os de volta, eles se misturam aos milhares de turistas na cidade medieval e vivem experiências inusitadas. Entram em brigas, saem com prostitutas holandesas, conhecem um anão americano que está rodando um filme, e Ray chega até a se envolver amorosamente com Chloe (Clémence Poésy), uma golpista de turistas. Mas quando Harry finalmente liga, o que parecia uma viagem de férias tranquila e monótona se transforma numa corrida de vida ou morte para ambos os homens.
Com isso, permitam-me daqui em diante me referir ao filme apenas como In Bruges, e ignorar esse seu título nacional alongado e desnecessário, que até descaracteriza a imagem que o filme quer passar, lhe fazendo parecer mais uma comédia britânica escrachada, o que com certeza faz parte de suas características, mas McDonagh procura surpreendentemente traçar um caminho muito mais dramático do que se possa imaginar com o material aqui, ainda mais em um terreno que já lhe era brevemente familiar. Afinal essa nem fora a primeira vez no qual ele viria a explorar o subgênero com um intuito humorado e dramático de forma tão rica como fizera aqui.
Anos antes com o seu excelente curta-metragem, O Revólver de Seis Tiros, que lhe rendeu seu primeiro Oscar, o diretor/roteirista já mostrava sua veia cênica teatral que trazia consigo de sua carreira nos palcos, e a adaptando para o cinema com grande louvor. Pegando uma pequena mas grandemente eficiente trama dramática, até pesada em seu tom na sua discussão quase sádica sobre o valor de uma vida perante a morte, com uma base narrativa intercalada com longos diálogos e inserindo nela um dinamismo de um suspense prestes a implodir em violência à qualquer momento, encontrando ainda espaço para inserir boas pitadas de um humor negro, bem sádico até, em suas entrelinhas.
O mesmo volta a se refletir em In Bruges, com McDonagh seguindo parcialmente a base do subgênero de filmes como Pulp Fiction e cria uma narrativa estruturada em fluídos diálogos, focando estritamente na relação entre os personagens e o desenrolar das suas vidas no espaço em que atualmente habitam, carregando em si inicialmente uma boa carga de humor que aos poucos revela sua faceta dramática, sem uma destoar da outra em nenhum momento. Com o filme conseguindo realmente enganar aos mais despercebidos que inicialmente podem pensar que o filme realmente trata de ser uma comédia devido ao hilário humor pontual que McDonagh emprega em seu roteiro, sem se descarrilhar até o final.
Um daqueles raros roteiros que conseguem trazer consigo uma boa leva de diálogos e frases tão espirituosos, que rapidamente se tornam memoráveis e quotáveis no dia a dia. Fica até difícil eleger um melhor entre tantas boas escolhas, que vão do bizarro ao ‘fantástico’ (“Eles estão filmando pessoas pequenas!”), passando pelo sarcasmo (“Purgatório é entre o céu e o inferno. Você não foi tão ruim, mas também não foi tão bom. Como o Tottenham.”) e chegando até a metalinguagem (“Cale a boca. Este é o tiroteio final.”), ou o meu favorito quando o anão Jimmy (Jordan Prentice) recita sua teoria sobre a futura guerra apocalíptica que irá assolar a humanidade, entre todos os anões do mundo contra as pessoas de estatura normal, onde até mesmo os anões negros vão lutar contra os negros de estatura normal – puro ouro.
Se utilizando de referências e alegorias de forma original e mesclando diálogos espirituosos com sequências inesperadas de violência que surgem como catarse humorada. Elementos assim que mostram a forma com que McDonagh mostra mesmo construir uma obra que segue o estilo de Tarantino, e ainda brinca de forma inteligente com a linguagem dos personagens, fazendo piada com o uso dos sotaques e gírias britânicas e escocesas para criar um sutil humor galhofa proveniente de Guy Ritchie. As pitadas de humor negro presentes aí também mostram como McDonagh realmente entende dos melhores três jeitos do humor negro de Tarantino e dos irmãos Coen, se utilizando dos diálogos de valor temático de um e o uso do escrachado caricato natural dos outros, ao mesmo tempo carregando uma sobriedade dramática/trágica, marca dos diretores, presente nas caracterizações dos personagens e o seu percurso onírico à percorrer na história. A mesma proposta que McDonagh faz aqui com os seus próprios personagens.
A estrutura quase teatral que o filme invoca em sua construção já denota um pouco das ambições que McDonagh tem para construir o drama presente na narrativa dos personagens. Posto de forma simples, esse realmente não é um filme onde muito acontece, onde basicamente vamos do ponto A ao ponto B do desenrolar da trama assistindo apenas a recorrentes conversas entre Ken e Ray durante sua tediosa estadia em Bruges. Com Ken admirando toda a história que os monumentos históricos da cidade revelam para sua senilidade artística, enquanto Ray se enfastia em tédio e facilmente se impressionando, como uma criança presa num corpo adulto, quando vê algo diferente na cidade como as filmagens de um filme bizarro envolvendo anões e depois se apaixona por Chloe.
Mas para além disso, o filme realmente consegue sim capturar sua atenção devido aos bem amarrados diálogos. Não só pela carga de bom humor como já mencionado, mas também nas tonalidades existencialistas que lhes são incorporados. Junte isso à encenação teatral que McDonagh é um especialista em criar e você tem assim em Bruges uma perfeita tragédia grega com fortes toques de humor. E a pequena Bruges para McDonagh é esse perfeito palco para se discutir a moral em constante balanço de ambos os homens vivendo sob essa vida fora da lei.
Não só sobre isso exatamente, as conversas entre Ray e Ken embora sempre humoradas, levantam interessantes conotações morais e existenciais que definem a personalidade de ambos os homens, vivendo em um constante balanço sobre suas vidas. Como quando Ray diz que se tivesse nascido em uma fazenda e fosse retardado é que ele se impressionaria com arte e cultura. Ou quando diz que ser um anão deve ser extremamente difícil e que a taxa de suicídios com anões é muito alta, evidenciando claramente que ele se identifica com anões por se sentir um “outcast”, um rejeitado pela sociedade graças às suas escolhas de vida que constantemente pesam em sua consciência. Principalmente o último “trabalho” que deu completamente errado devido à morte de um inocente, o que afetou seriamente a vida de ambos os homens. Não só suas relações problemáticas com o chefe mas também na forma com que encaram suas vidas.
Bruges assim se torna o purgatório de ambos os homens, enquanto esperam seus destinos para a “próxima vida” serem traçados pelo seu chefe Harry à qualquer momento, refletem sobre suas vidas e feitos confinados num espaço limitado, cercados de monumentos históricos e religiosos que parecem aprisionar à ambos Ray e Ken. Que começam, de forma bem quase onírica, a influenciar à vida dos personagens.
É quase um lado de conexão contemplativa e espiritual com o abstrato humano, algo que até lembra em partes o Nostalgia de Andrei Tarkovsky, algo que McDonagh busca inserir na narrativa e mostrar como a arte em si começa a influenciar a vida de ambos Ray e Ken sem eles notarem. À certa altura do filme, quando Chloe conta a Ray que o filme que estão gravando na cidade não se trata de um remake, mas sim uma homenagem à obra-prima de Nicolas Roeg, Inverno de Sangue em Veneza (ironicamente o filme favorito de McDonagh). Um filme onde acompanhamos um casal após perderem a filha em um afogamento, se isolando na cidade de Veneza à trabalho, enquanto tentam superar a morte da criança e refletirem sobre o seu casamento e ao mesmo tempo investigam a possibilidade de sua filha estar viva. Que, de forma interessante, se assemelha em tom dramático à In Bruges em certos momentos de sua aura carregada de sentimentos quebrados que passamos a descobrir dos personagens (e ironicamente também envolve a morte de uma criança em ambos os casos), especialmente no clímax que de forma semelhante em ambos os filmes, envolve uma corrida tensa pela vida com o sentimento de iminente tragédia prestes a acontecer.
Também é à partir desse momento como notamos o quão “sensíveis” à arte Ray e Ken se tornam. Uma simples ida ao museu se torna, de forma metafórica, uma caminhada pela história da humanidade, onde três quadros de caráter pragmático religioso entram em destaque para a dupla. Um deles envolvendo a morte vindo buscar uma dívida, a segunda um julgamento de um homem que aceitava subornos e o terceiro, que imediatamente capta o interesse de Ray, envolvendo o apocalipse onde Jesus desce a terra no meio de criaturas animalescas e desfiguradas e pune aos pecadores de forma tortuosa. Que resulta em só deixar a dupla na forma como que refletem juntos o caráter individual de cada um e Ray desabafa o crime mortal que tanto lhe aflige envolvendo o último trabalho. Deixando bem claro a partir daí, que não importa o quão arrependidos eles estejam de seus feitos criminosos, seus destinos de pecadores já estão traçados.
Destino que chega na forma do chefe Harry, que é introduzido ao filme em uma cena igual forma “artística” recaindo em um deles, nesse caso Ken que enquanto assiste a intro de A Marca da Maldade de Orson Welles na televisão, recebe em seguida uma ligação de Harry. Com a sequência a seguir se passando em um sutil take longo, assim como a intro do filme de Welles, que se lá terminava em uma caótica explosão, na de In Bruges termina para Ken como uma missão de grande impasse moral. E a presença de Harry se torna um calafrio na espinha de apreensão e antecipação para o que está por vir.
Crédito seja dado ao exímio roteirista que McDonagh já mostrava ser desde cedo. Não só pelas ricas temáticas que aborda junto de um humor afiado, mas também a forma com que ele lida com os três personagens com uma atenção ampla de protagonismo e desenvolvimento emocional, com maior destaque claro, ficando à cargo do Ray de Colin Farrel que fizera facilmente aqui uma de suas melhores atuações. Longe de um certo cinismo (embora também sempre versátil) que sempre mostrara, e cria em Ray um jovem adulto com a pureza de uma criança mas com picos inesperados de violência com teor bem tragicômico, e um bom coração almejando algo maior na sua vida, uma felicidade e redenção que lhe parecem impossíveis e encontra na Chloe de Clémence Poésy, que não tem muito o que fazer aqui embora venda o charme e doçura da personagem.
Mas Brendan Gleeson não deve se passar despercebido. Impressionante como só McDonagh até então conseguiu criar um personagem tão doce e divertido para que o ator pudesse mostrar seu ALTO nível, que infelizmente ainda persiste subestimado até hoje. E enche seu Ken com um carisma e charmes encantadores que quase não nos faz acreditar que ele é realmente um assassino frio. Embora esse seja exatamente o intuito de McDonagh para a dupla, criando uma palbilidade no serne emocional e característico de ambos, criando nuances sutis na forma com que interagem com objetos e afazeres do dia a dia, como apenas trocar uma lente de contato ou tentando trocar umas moedas para comprar um ingresso, que só servem para humanizar em um nível bem íntimo com os personagens, e Gleeson e Farrel tem uma ótima química e timing juntos em cena.
Não sei se o mesmo possa ser dito sobre o Harry de Ralph Fiennes, no que diz respeito à sua humanidade quero dizer, porque o ator rouba todas as cenas em que aparece. Seu personagem mal aparece até metade do filme, e já no exato momento em que finalmente dá as caras, instantaneamente já arranca risadas (“VOCÊ QUE É A PORRA DE UM OBJETO INANIMADO!”). E McDonagh também faz um bom trabalho em não caricaturar o personagem à um típico papel de vilão, e mostra as nuances de um homem de boa índole e honra logo em seus primeiros diálogos, principalmente seu primeiro tenso e hilário encontro com Ken pessoalmente, mas sem deixar de evidenciar a figura intimidadora e mortal que é.
Isso se trata de ser um daqueles raros casos onde grandes estrelas aceitam reduzir seus salários e participar de produções pequenas, com orçamento reduzido. E isso acontece quando eles têm a certeza e confiança de se tratar de um projeto interessante e original, capaz de realmente render uma boa obra cinematográfica, exatamente como o caso desse filme e tudo graças ao talento de Martin McDonagh.
Que traz o humor, o drama, a morte, a arte e o questionamento moral que formam o caráter de grande originalidade que faz de In Bruges, ou Na Mira do Chefe, um filme tão especial e que ainda merecia ser melhor reconhecido hoje. Bom saber que McDonagh voltou à ativa recentemente com o seu aclamado e divisor de águas Três Anúncios para um Crime, talvez assim seu valor autoral como artista e grande diretor seja melhor reconhecido. Mostrando desde cedo aqui ser alguém proveniente da escola de Tarantino e Coen de tratar temas profundos usando como escudo um humor negro afiado e sem escrúpulos no que é politicamente correto.
Fazendo do suposto filme de crime, uma análise íntima e quase intrusiva da moralidade do homem frente às suas escolhas de vida, no cenário de um mundo pós moderno onde os valores de honra, amor e amizade tão raros de se encontrar, acabam se tornando formadores de caráter para até os mais quebrados perturbados e psicóticos dos seres humanos. A linguagem, a trágica ou a engraçada, o purgatório e moralidade, para McDonagh, são refletidos em In Bruges como instintos naturais de uma vida, que todos nós temos que carregar e lidar em nossos destinos traçados por nossas escolhas diariamente. Aproveite para rir, refletir e apreciar esse ótimo filme!
Na Mira do Chefe (In Bruges – Reino Unido/ EUA, 2008)
Direção: Martin McDonagh
Roteiro: Martin McDonagh
Elenco: Colin Farrel, Brendan Gleeson, Ralph Fiennes, Clémence Poésy, Jordan Prentice, Zeljko Ivanek, Elizabeth Berrington, Eric Gordon, Anna Madeley, Jérémie Renier, Thekla Reuten, Mark Donovan
Gênero: Comédia, Crime, Drama
Duração: 107 minutos