Em 1973, o terror mudaria para sempre. Não só ele, mas uma das maiores referências para o medo é criada para toda a eternidade.
Há pelo menos dez anos, fui a uma locadora que tinha próxima da minha casa. Lá estava passando “O Exorcista” em uma pequenina tv de tubo de 15”. Como sempre ouvia alguns amigos da minha mãe comentando como ficaram aterrorizados ao vê-lo nos cinemas, minha curiosidade não era pequena para assisti-lo, apesar da minha pouca idade.
Com algum esforço, assisti, achei interessante e gostei do que vi, mas nada, nada se compara amadurecer e assistir a esse clássico no cinema depois de 42 anos de sua estreia. Outra experiência marcante!
William Peter Blatty – que assina o livro e a adaptação para as telas, criou um monte de clichês que vemos hoje em dia. Seja o uso de crianças correndo riscos, padres descrentes, famílias em crise, brincadeiras com o oculto, etc.
Porém, o melhor de seu trabalho é ter conferido profundidade psicológica para a maioria dos personagens do filme, em especial para o Padre Damien Karras – interpretado brilhantemente por Jason Miller.
Blatty consome tempo de tela construindo a teia de relações entre os personagens com muita eficiência. Além disso, Blatty e outros roteiristas da época entendiam algo que os roteiristas contemporâneos (Nolan e afins para citar nomes) não conseguem incorporar em seus textos de forma leve: a transgressão de gêneros.
Ele incorpora alívios cômicos através de dois personagens: o diretor de cinema Burke Dennings e pelo detetive William Kinderman. Sim, é possível dar ótimas risadas em “O Exorcista”. Porém, de nada adiantaria um texto de primeira linha sem um trabalho de elenco fantástico.
Realmente, ninguém deve nada. Todas as atuações principais são dignas de Oscar graças aos incríveis contrastes entre o desenvolvimento dos personagens durante o filme.
Ellen Burstyn, de diva maravilhosa do cinema para uma mulher acabada pela depressão, cansaço e desgaste físico e psicológico. Linda Blair, de pré-adolescente vivendo a inocência de um conto de fadas clássico para o terror explícito, pedófilo, cruel e insano da possessão demoníaca. Max von Sydow – grande presença em cena! —, de padre explorador de relíquias para no minuto seguinte ser o responsável por liberar um antigo terror e combatê-lo até o fim. E Jason Miller, de cético, racional, cínico e pacífico para crente, frágil, descontrolado e agressivo.
Mas acredito que quem faz toda a diferença na produção de “O Exorcista” é o gênio William Friedkin – hoje, completamente afastado dos grandes estúdios e realizando filmes de vez em quando.
Já em 1973, quando os estúdios, obrigatoriamente, soltaram as amarras dos diretores, confere características autorais para o filme de sua vida.
O terror é construído através do drama. Nós acompanhamos a árdua luta de Chris para descobrir o que está acontecendo com Regan através de inúmeros e dolorosos exames médicos e outros desgastes. Depois disso tudo, ele começa a trabalhar o horror em rápidas exposições.
Seu lance é mostrar por poucos segundos, chocar e colocar uma tela preta logo em seguida – as imagens persistem na sua cabeça durante o black aumentando o efeito do trauma.
Isso acontece quando Regan vira sua cabeça completamente para trás, desce as escadas assimilando uma aranha, durante alguns poltergeists que acontecem em seu quarto e na descoberta da estátua do demônio Pazuzu.
Friedkin também usa um recurso cinematográfico que muitos consideram que Fincher inventou em Clube da Luta, a inserção rápida de uma imagem que dura menos de um segundo em tela – no caso, o rosto estilizado do demônio (pra mim, também uma referência a Nosferatu de Murnau).
O diretor também se comporta como uma raposa, esguia, esperta e traiçoeira. Brinca com o sagrado e profano, misturando-os em diversas passagens.
Trata a instituição da Igreja Católica com muito respeito, sem muitos de deboches nos diálogos, para então mostrar uma santa profanada por uma colagem que simulam um falo gigante – este, presente na estátua diabólica do início do filme, e seios espetados. Usa o crucifixo como sinal de proteção para Regan, para logo depois usá-lo para a memorável cena da masturbação com o crucifixo, se automutilando.
Representa o ritual do exorcismo e a presença dos padres com planos onipotentes e depois usa um longo plano extremamente ambíguo com Sidow e Miller repetindo a mesma frase em sua tentativa de exorcismo.
Pouco depois, joga a ambiguidade no lixo e assume o profano de vez durante o clímax do filme trabalhando com excelente encenação. Regan sentada na cama, livre das amarras, com expressão cansada e Merrin, morto, estirado ao chão. Novamente, a conotação sexual é sugerida para os atentos. Ainda trabalhando no profano, expõe Damien espancando a possuída, ensandecido por ela ter matado Merrin, entre outros motivos. Ordena que o demônio a deixe e pegue sua alma em troca. O acordo é selado.
Em mais uma reviravolta nesse jogo espetacular de sagrado x profano, Merrin controla a possessão e se suicida. O crime espiritual mais hediondo condenado pela Igreja Católica é cometido por um padre. Mas sua causa é nobre, afinal ele salva Regan… Ou, a ele mesmo… Seria um suicídio? Ou um sacrifício?
Reforçando ainda mais a inteligência dessa sequência, o amigo mais próximo de Damien Karras, também padre, corre até o local que o exorcista agoniza, completamente quebrado esperando a morte chegar. Ainda combatendo a força da entidade que está em seu corpo, Damien se confessa para ser absolvido de seus pecados – sem a menor dúvida, esta é a cena mais tocante do filme.
Além da direção espetacular de Friedkin, outros artistas de ponta deixam sua marca como os mixadores de som Robert Knudson e Christopher Newman. Os dois pensaram na experiência sonora de uma maneira incrível para o cinema.
Tudo é muito bem distribuído nas diversas caixas de som. Ruídos, sons de picaretas esmagando a rocha, passos, assovios do vento e os próprios sons que Regan emite enquanto possuída. O Oscar de melhor som foi mais que merecido. Porém, é impossível notar como o trabalho realmente é incrível apenas com um sistema estéreo de som.
O fotográfo Owen Roizman faz outra maravilha com suas luzes muito peculiares. Seguindo um padrão estabelecido nas cenas noturnas de suspensa, Roizman brilha na cena do exorcismo. Posiciona as luzes sempre no plano inferior, no chão, abaixo dos atores – algo completamente estranho para a época.
Já neste esquema inusitado, ele utiliza luzes duras, gerando sombras características do movimento expressionista alemão. Tudo isso confere uma atmosfera única para as cenas de horror. Vide o plano histórico do padre Merrin chegando à casa da família MacNeil. Outro ponto, este do departamento de arte, é a transformação que o quarto de Regan vai passando conforme a possessão progride. Antes, repleto de brinquedos e móveis para virar um reduto abandonado apenas com a cama almofadada e abajures. De quarto infantil para hospício gélido.
“O Exorcista” é só mais uma prova de como os anos 1970 foram incríveis para o cinema – talvez sua última Era de Ouro. 42 anos não foram suficientes para tirar o brilho dessa joia do horror. O filme simplesmente não envelhece como tantos outros dos anos 1980 e 90.
Até hoje seus efeitos práticos impressionam – não faço ideia de como fizeram as levitações. Pode não assustar mais que o filmes de hoje, mas com certeza ainda é um dos mais aterrorizantes.
Afinal, poucos são os filmes que fixam imagens poderosas em sua mente na hora de dormir. Isso, meus caros, é obra de mestre.